Wednesday, 15 January 2014

Uma entrevista com Michel Foucault

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Uma entrevista com Michel Foucault

No ano em que se completam três décadas da morte do filósofo francês, o Prosa publica uma entrevista concedida por ele em 1975 durante visita ao Brasil. Nela, Foucault discute as origens de seu método, fala sobre mecanismos de controle na sociedade e critica o ideal de humanismo fundado em "poder normalizador"

Poucos dias depois do assassinato de Vladimir Herzog por agentes do regime militar, em 25 de outubro de 1975, o jornalista e escritor Claudio Bojunga e o psicanalista e ensaísta Reinaldo Lobo entrevistaram o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), então em visita à Universidade de São Paulo. Publicada originalmente no “Jornal da Tarde”, vespertino de “O Estado de S. Paulo”, a conversa examinava as ideias do filósofo libertário das marginalidades sociais e das minorias culturais, raciais e sexuais. Ainda sob o impacto da violência cometida contra Herzog, os entrevistadores procuraram também esclarecer os conceitos de Foucault sobre os grandes aparelhos de poder e os micropoderes — a Justiça, a polícia, a confissão, a prisão, a psiquiatria, o asilo, a tortura.

No ano em que se completam três décadas da morte de Foucault, o Prosa republica a entrevista. Nela, o filósofo expõe uma visão da cultura e da História que não pretendia explicar o presente pelo passado. Preferia investigar os discursos que condicionam as formas de ver e julgar, e analisar a maneira pela qual a cultura contemporânea determina as condições de possibilidade do novo. Construiu assim sua arqueologia da cultura ocidental.

Foucault dizia que a tarefa do pensamento consistia em reconstituir os sistemas do subsolo da cultura sobre os quais flutuava a imagem da existência. Falava na “morte do homem", mas negava que ela produzisse um esvaziamento ético, assim como o anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus não propiciara um abismo de permissividade moral. Achava mesmo que essas mortes abriam espaços de liberdade. O pensamento devia pensar-se — para descobrir o que se encontrava na espessura inconsciente do que pensamos. 

Por Claudio Bojunga e Reinaldo Lobo*

Seus trabalhos gravitam em torno de universos fechados, circulares, concentracionários. Eles colocam o problema do hospital, da prisão. Por que essa seleção de temas?

Tenho a impressão de que, no século XIX, e ainda no século XX, o problema do poder político se colocava em termos do Estado. Afinal, foi no século XIX que se constituíram os grandes aparelhos de Estado. Eles ainda eram algo novo, visível, importante, pesando sobre as pessoas — e as pessoas o combatiam. Mais tarde, através de duas grandes experiências — a do fascismo e a do stalinismo — percebeu-se que sob os grandes aparelhos de Estado, e até certo ponto independente deles, em outro nível, existia toda uma mecânica do poder que se exercia de maneira constante, permanente, violenta e que permitia a manutenção, a estabilidade e a rigidez do corpo social, pelo menos tanto quanto os grandes aparelhos do Estado, como a Justiça e o Exército. Passei então a me interessar pela análise desses poderes implícitos, desses poderes invisíveis, desses poderes ligados a instituições de saber, de saúde etc. O que existe em termos de mecânica de poder na Educação, na Medicina, na Psiquiatria? E não acho que sou o único a me interessar por isso. Os grandes movimentos, em torno de 1968, foram dirigidos contra esse tipo de poder.

A prioridade atribuída pelos países do Terceiro Mundo a tarefas mais urgentes — luta pela independência nacional, contra o subdesenvolvimento — não tendem a sufocar as lutas contra os “pequenos poderes" (a escola, o asilo, a prisão) e contra outras formas difusas de dominação (do branco sobre o negro; dos homens sobre as mulheres)? Essas lutas podem ser simultâneas?

É um problema no qual nos debatemos. Será possível estabelecer uma hierarquia de importância entre esses diferentes tipos de luta? Uma cronologia? Caímos num círculo: privilegiar a luta no nível do “tecido” do corpo social às expensas das grandes lutas tradicionais pela independência nacional, contra a opressão, não seria manobra diversionista? Não colocar esses problemas não equivalerá a reconduzir no interior mesmo dos grupos mais avançados, os mesmos tipos de hierarquia, de autoridade, de dependência, de dominação? É o problema de nossa geração.

O jornalista Maurice Clavel, em sua confissão pessoal — “No que creio" — disse que Foucault o fez sair da esquerda, mas lamenta que Foucault continue na esquerda, não tenha dado o passo de ruptura...

Será que a pergunta está bem colocada? Não seria melhor perguntar: por que, de repente, a esquerda começou a se interessar por assuntos que me preocupavam há muito tempo? Quando comecei a me interessar pela loucura, pelo encarceramento, mais tarde pela medicina, pelas estruturas econômicas e políticas que subentendiam essas instituições, o que me espantou foi que os membros da esquerda tradicional não atribuíam a menor importância a essas questões. Nenhum relatório, estudo ou revista de esquerda falou sobre ou criticou meus pontos de vista por essa época. Essas questões não existiam para eles. Por uma série de razões: uma delas devido ao fato de que eu não apresentava os signos tradicionais de um pensamento de esquerda —não havia notas ao pé da página dizendo “como disse Karl Marx", “como disse Engels”, “como disse o genial Stalin”. E, na França, para se reconhecer um pensamento de esquerda, as pessoas olham logo as notas de rodapé. Mais grave era que a esquerda francesa não considerava esses problemas dignos de análise política. Para eles, a leitura dos textos de Marx ou a teoria da alienação é que eram trabalhos políticos. De forma alguma se colocavam problemas psiquiátricos. Foi apenas após 1968, no curso desse processo que não constituiu exatamente o triunfo do pensamento marxista, que esses problemas passaram a ocupar a reflexão política. Pessoas que não se interessavam pelo que eu fazia passaram de repente a me estudar. Eu me vi implicado com elas sem ter sido obrigado a deslocar meu centro de interesse. Os problemas que me preocupavam não eram pertinentes para uma política de esquerda antes de 1968. 

Na sua arqueologia do saber ocidental, Marx ocupa um lugar modesto, comparado com David Ricardo. Segundo seu livro “As palavras e as coisas”, “no nível profundo do saber ocidental, o marxismo não operou nenhuma ruptura real”. Por que se atribui a Marx, até hoje, uma importância que o torna tão discutido, negado, questionado?

Acho que na geologia da Economia Política, em seus conceitos fundamentais, Marx não introduz uma ruptura essencial. Houve mesmo alguém que o disse antes de mim: Karl Marx. Ele mesmo afirmou que, em relação a Ricardo, seus conceitos eram derivados. Agora, é evidente que a prática revolucionária do marxismo, referindo-se à obra de Marx, através de uma série de transformações e mediações, atravessou a história do Ocidente do século XIX e marcou tudo o que aconteceu desde o final do século XIX.

A dama dialética reina ainda hoje. Está presente nos estudos históricos, econômicos, sociológicos, filosóficos, na crítica. Qual o papel do “materialismo dialético” na cultura ocidental?

Pergunta difícil. No sentido pleno e forte da expressão “materialismo dialético” — interpretação da História, uma filosofia, uma metodologia científica e política — ele não serve a grande coisa. Você já viu um cientista usar o materialismo dialético? Na sua tática, o Partido Comunista não aplica o materialismo dialético. Mas é claro que o materialismo dialético constitui uma importante referência. Qual é o seu estatuto? Por que, até certo ponto, somos obrigados a “passar por lá”, pelo menos no discurso, nos signos, no ritual do discurso? Isso é um problema. O materialismo dialético é um significante universal cujas utilizações políticas e polêmicas são importantes, é uma marca, mas não creio que seja um instrumento positivo. Na Polônia, onde morei um ano, havia cursos obrigatórios de materialismo dialético nas universidades, aos sábados, como são as aulas de catecismo nos colégios cristãos. Um dia perguntei: os estudantes em ciências também são, como os estudantes de Letras, obrigados a seguir esses cursos? E o professor (bastante próximo do Partido Comunista Polonês) respondeu: “não, os estudantes em ciências ririam...”

Numa de suas conferências aqui você procurou demonstrar que vivemos numa sociedade “confessionária”, rica de confissões. Existe a confissão cristã, a confissão comunista, a confissão do escritor, a confissão psicanalítica, a confissão judicial etc. Essas diferentes confissões têm a mesma estrutura?

Não. O que tentei mostrar, através de uma polêmica com uma interpretação apressada de Reich, é que não nos encontramos numa época pudibunda, moralista, numa era de censura — e que os efeitos do moralismo e da censura são laterais em relação a algo essencial: a confissão. De uma maneira geral, a confissão consiste no discurso do sujeito sobre ele mesmo, numa situação de poder na qual ele é dominado, constrangido, e que modifica por essa confissão. Essa definição formal da confissão pode englobar as várias situações de confissão mencionadas. Mas já tentei analisar em detalhe a diferença, por exemplo, que existe entre o que é confessado na confissão cristã propriamente dita e o que se confessa ao diretor de consciência a partir do século XVII. Duas formas cristãs, ligadas uma a outra possuindo características diferentes e objetivos diversos.

Para deixar bem claro, você pode falar mais de sua definição de confissão?

É estranho que, na maior parte dos sistemas jurídicos, o que se diz contra si próprio constitua uma prova (o Direito britânico, que proíbe o testemunho contra si próprio, é exceção). Mas, na grande maioria dos outros sistemas, a partir do momento em que alguém diz qualquer coisa que o prejudique, essa coisa só pode ser verdade. Isso constitui um postulado. É perfeitamente possível imaginar alguém que deseje admitir algo contra si, ou para eximir outrem, ou para se eximir de outra falta. Em segundo lugar, a tortura e outras técnicas afins de confissão permitem obter testemunhos contra si mesmo, que não possuem nenhum valor de verdade. Nosso sistema jurídico atribui tal valor de prova à confissão que fica difícil retificá-la ou negá-la posteriormente. Se é verdade que a extorsão “selvagem” da confissão é prática policial habitual que a Justiça em princípio ignora — fingindo fechar os olhos sobre ela — é também verdade que, atribuindo tal privilégio à confissão, o sistema judiciário é um pouco cúmplice dessa prática policial que consiste em arrancá-la a qualquer preço. É muito comum, na Europa Ocidental pelo menos, o fingimento que consiste em manter a maior diferença possível entre a Justiça e a polícia. Os corruptos vêm sempre da polícia; e o que há de nobre e digno vem obrigatoriamente da Justiça. Na verdade, a infelicidade do sistema é que entre a Justiça e a polícia existe um acordo tácito — e é a Justiça, sem o dizer, que frequentemente suscita essas práticas policiais.

O que é a tortura?

Eu diria, brincando, que existe uma utilização “nobre” e uma utilização “ignóbil” da tortura. Na prática judiciária da Idade Média, e até o século XVIII, a tortura era um verdadeiro ritual pelo qual se tentava obter a confissão do acusado, mas era um ritual codificado. A tortura não era “livre” nas mãos do carrasco. Ele devia obedecer algumas regras, respeitar alguns limites que não deveria ultrapassar. Os séculos XIX e XX inventaram a tortura “selvagem”. A tortura que, empregando quaisquer métodos e durante o tempo que julga necessário, deve arrancar a confissão. É uma tortura policial, extrajudicial, extremamente diferente da célebre tortura utilizada pela Inquisição.

Acha que nos países que conheceram o trabalho escravo no século XIX o acusador desenvolveu uma relação diferente e particularmente cruel com o corpo do acusado? Talvez pelo fato de que o torturado, nesse caso, era alguém que equivalia a um zero como pessoa?

Certamente. Na Antiguidade clássica, na Grécia e no Império Romano, não se tinha o hábito de torturar um cidadão livre. Em compensação, a tortura do escravo era prática legítima e habitual. Como se o escravo fosse capaz de “dizer a verdade” e as pessoas fossem obrigadas a extrair essa verdade pela violência. Acho que esse direito que a Antiguidade Clássica se atribuiu, de torturar o escravo, deve ter reaparecido nas práticas escravistas reinstauradas no século XVI.

Essa prática não era acompanhada de um certo paternalismo, na medida em que ele não dizia a verdade porque era “incapaz” disso?

Não, acredito que o importante é a propriedade do corpo. Se o corpo do escravo pertence ao seu senhor e não a si próprio, a tortura, como a morte do escravo (se bem que ela não era legítima), são possíveis. A relação de propriedade nesse caso é mais importante do que a de paternidade. É o direito de usar e abusar — jus utendi et abutendi.

Essa sua análise em geral, da confissão e das relações de poder, é aplicada também ao conjunto de poderes nos países comunistas — a URSS e a China, por exemplo?

Eu gostaria de deixar a China de lado, pouca gente a conhece muito bem. Posto isso, é claro que sim. E é por isso que meu trabalho pode ser considerado “perigoso”. Mas eu acho que é preciso enfrentar esse perigo, aceitar esse risco. Esses mecanismos de poder, pelo menos seus principais elementos, existem por toda parte. A confissão nos grandes processos não pode ser considerada como sendo totalmente estranha a nossos procedimentos judiciários, à importância política e moral atribuída à confissão. E de uma maneira mais precisa ainda: o poder psiquiátrico em seus efeitos políticos, no seu servilismo político em relação ao poder soviético é, eu diria, aparentado ao poder psiquiátrico tal como ele foi exercido na Europa Ocidental durante o século XIX. Consideremos, por exemplo, o que aconteceu após a Comuna de Paris, em 1870. De uma maneira extremamente explícita, alguns opositores políticos foram enviados ao asilo como “loucos”.

O que mais impressiona no livro “A confissão”, de Arthur London, pelo menos como algo específico ou característico dos métodos empregados na Europa Oriental, é menos a utilização da tortura (encontrada no mundo inteiro) do que o ostensivo da farsa judiciária. Um aparato incrível e, ao mesmo tempo, se o acusado resolve “esquecer” sua confissão decorada, há um botão que desliga a transmissão pelo radio etc...

A trucagem judiciária... No Direito inglês e no Direito napoleônico foi concedido um papel excessivo, e excessivamente sério, ao ritual judicial para que ele possa atualmente ser transformado em guignol, como acontece nos países socialistas da Europa Oriental. Nossa maneira de trapacear um processo é diferente: trapacear para forçar o inculpado ao suicídio. Mas nunca se chega a essa “trucagem” totalmente teatral à qual os soviéticos se dedicaram. Por quê? Será porque atribuem mais seriedade ao ritual judiciário do que nós — fazendo questão de levá-lo até o fim sob o olhar dos jornalistas, dos observadores estrangeiros? Ou porque, ao contrário, não lhe atribuem nenhuma importância e por isso mesmo se permitem tudo? É mesmo possível que as duas coisas sejam verdadeiras. Que eles não lhe atribuam nenhuma importância e ao mesmo tempo tentem reinscrever em seu exercício do poder a simbologia e o ritual burguês. Os grandes processos devem ser vistos como relacionados à arquitetura stalinista ou ao realismo socialista. O realismo socialista não é exatamente igual à pintura ocidental como um todo, mas lembra incrivelmente a pintura acadêmica e pomposa de 1850. Foi um complexo de nascimento do marxismo: ele sempre sonhou ter uma arte, modos de expressão e um cerimonial social extremamente parecido com os da burguesia triunfante de 1850. Trata-se do neoclassicismo stalinista.

Em sua opinião, o psicanalista surge como um tecnocrata do saber. O instrumento de um poder repressivo que faz sua vítima falar de sua sexualidade. Tal monstro deve ser abatido, ou será possível imaginar outro tipo de clínico?

É preciso (sorrisos) não forçar o que eu disse. Não, na verdade ainda não estudei de perto o funcionamento da psicanálise. O que digo é que seria perigoso supor que Freud, e a psicanálise, falando da sexualidade, extraindo a sexualidade do sujeito através de suas técnicas, realiza de pleno direito uma obra de liberação. A metáfora da liberação não me parece adequada para definir a prática psicanalítica. E a razão porque tentei fazer uma arqueologia da confissão e da confissão sexual é mostrar como as técnicas essenciais da psicanálise preexistem (a questão da originalidade não é importante) no interior de um sistema de poder. É falso dizer que o Ocidente foi uma civilização que reprimiu a expressão da sexualidade, que a proibiu e a censurou. Ao contrário: desde a Idade Média, houve constante solicitação para obter a confissão da sexualidade. Houve pressão para que ela se manifestasse em forma de “discurso” — confissão, direção de consciência, pedagogia, a psiquiatria do século XIX — técnicas que precedem a psicanálise e que fazem com que ela deva se situar em relação a elas. Não em situação de ruptura, mas de continuidade.

Mas a relação paciente-analista não é sempre, segundo você, uma relação desigual, pela assimetria de poder?

Sim. O exercício de poder que se desenrola no interior da sessão psicanalítica devia ser estudado — e nunca foi. E o psicanalista — ao menos na França — se recusa a isso. Considerando que o que se passa entre o divã e a poltrona, entre o que está deitado e o que está sentado, entre o que fala e o que tira uma soneca, é um problema de desejo, do significado, da censura, do superego, problemas de poder no interior do sujeito, mas nunca questão de poder entre um e o outro.

Lacan acha que o poder do analista se manifesta quando ele se torna não o tradutor modesto das mensagens do paciente, mas o porta-voz de uma verdade dogmática. O que o separa dessa posição?

Não posso responder ao nível que se coloca a pergunta, e pelo qual Lacan me fala pela boca de quem me faz essa pergunta — não sou analista. Mas o que me chama a atenção é que, quando os psicanalistas falam sobre a prática analítica existe uma série de elementos que nunca estão presentes — o preço da sessão, o custo econômico global do tratamento, as decisões quanto à cura, a fronteira entre o aceitável e o inaceitável, o que deve ser curado e o que não precisa ser curado, a repetição do modelo familiar como norma, a utilização do princípio freudiano: doente é aquele que não consegue amar nem trabalhar. Tudo isso está presente na prática analítica e tem efeito sobre ela. Trata-se de um mecanismo de poder que ela veicula, sem colocá-lo em questão. Um exemplo simples: a homossexualidade. Os psicanalistas apenas abordam a homossexualidade pelo viés. Trata-se de uma anomalia? De uma neurose? Como a psicanálise manipula essa situação? Na verdade ela endossa certas fronteiras que fazem parte de um poder sexual, constituído “fora” dela, mas cujos traços principais ela valida.

Os psicanalistas costumam criticar os filósofos que falam da psicanálise sem tê-la experimentado. Você foi analisado?

A pergunta é divertida (sorrisos) porque atualmente os psicanalistas me acusam de “não” falar sobre a psicanálise. Na verdade estou fazendo uma série de estudos que convergem sobre algo que se passou no final do século XIX, e no século XX — a história da loucura, do saber da sexualidade — uma genealogia que para em Freud. E eles dizem que é uma hipocrisia não mencionar Freud. E agora você diz que eles me contestariam o direito de falar sobre a prática psicanalítica. Na verdade eu gostaria de falar e, num certo sentido, eu falo sobre a psicanálise, mas faço questão de falar “de fora”. Não acho que devemos cair na armadilha, aliás, antiga, armada pelo próprio Freud, que consiste em dizer que, no momento em que nosso discurso penetra no campo psicanalítico, ele cairá sob o domínio da interpretação analítica. Quero me manter em situação exterior à instituição psicanalítica — recolocá-la na sua história, no interior dos sistemas de poder que a subentendem. Nunca entrarei no discurso psicanalítico para dizer: o conceito do desejo em Freud não está bem elaborado ou que o corpo dividido de Melanie Klein é uma bobagem — não direi isso nunca. Mas eu digo que jamais direi (risos).

Qual foi a contribuição de Deleuze?

Deleuze demonstrou, com muita força, uma crítica que ele, como teórico do desejo, fez “de dentro”. E que eu, como historiador do poder, apenas sou capaz de fazer “de fora”.

Você disse que seu pensamento é essencialmente crítico. O que significa um trabalho crítico?

(Pausa)... Uma tentativa de desvendar o mais profunda e generalizadamente possível todos os efeitos do dogmatismo ligados ao saber, e todos os efeitos do saber ligados ao dogmatismo.

Existe uma frase de Deleuze sobre você: Foucault foi “o primeiro a nos ensinar algo de fundamental, em seus livros e através de algumas práticas — a indignidade de falar pelos outros”. Gostaria de perguntar se o discurso que utiliza a categoria do exotismo não é uma forma de exercer um poder difuso. Uma maneira de falar pelos outros?

Desde a época da colonização existe um discurso imperialista que falou com grande meticulosidade dos outros e os transformou em exóticos, pessoas incapazes de discorrer sobre eles mesmos. Para os europeus — talvez mais ainda para os franceses — a Revolução é um processo universal. E os revolucionários franceses do final do século XVIII pensavam em fazer a revolução no mundo inteiro, e até hoje não se livraram desse mito. O internacionalismo proletário relançou esse projeto em outro registro. Ora, na segunda metade do século XX só houve processo revolucionário no quadro do nacionalismo. Daí o mal-estar em certos teóricos e militantes da Revolução Universal. Eles são obrigados a adotar o imperialismo do discurso universal. Ou então adotar um certo exotismo.

O que significa a frase de Reich: “não, as massas não foram enganadas, em tal momento elas desejaram o fascismo!” Como se pode desejar um poder repressivo?

É um problema importante. E inquietante se colocarmos o poder em termos de repressão. Se ele se limita a censurar, impedir etc. Como então será possível amá-lo? Mas o que faz o poder forte é que seu funcionamento principal não é de ordem negativa: o poder tem efeitos positivos — ele produz o saber, induz ao prazer etc. O poder é “amável”. Se ele fosse só repressivo precisaríamos admitir ou o masoquismo do sujeito (o que é afinal o mesmo) ou a interiorização do interdito. E aí ele adere ao poder.

E a relação mestre-escravo? A recusa da libertação por parte de um escravo não pode ser explicada da mesma maneira?

A dialética mestre-escravo, segundo Hegel, é o mecanismo pelo qual o poder do mestre se esvazia pelo fato mesmo de seu exercício. A certa altura ele se encontra na dependência do escravo, não tendo mais poder porque cessou de exercê-lo. Quero mostrar o oposto: que o poder se reforça por seu próprio exercício — não passa sub-repticiamente para o outro lado. Desde 1831, a Europa não parou de pensar que a derrubada do capitalismo era iminente. Isso muito antes de Marx. E ele está aí. Não digo que ele nunca será desenraizado. Mas que o custo de sua derrubada não é o que imaginamos. 

O que é o homem? Isso existe?
Claro que existe. O que é preciso destruir é o conjunto de qualificações, especificações e sedimentações pelas quais algumas essências humanas foram definidas desde o século XVIII. Meu erro não foi dizer que o homem não existe. Foi imaginar que seria tão fácil demoli-lo.

Tomar partido pelas minorias não é humanismo? O termo humanismo deve ser conservado?

Se essas lutas são feitas em nome de alguma essência do homem, tal como ela foi constituída no pensamento do século XVIII, eu diria que essas lutas estão perdidas. Porque elas serão conduzidas em nome do homem abstrato, do homem normal, do homem de boa saúde, que é o precipitado de uma série de poderes. Agora, se quisermos fazer a crítica desses poderes, não se deve efetuá-la em nome de uma ideia do homem construída a partir desses poderes. Quando o marxismo vulgar fala do homem completo, do homem reconciliado com ele mesmo, de que se trata? Do homem normal, do homem equilibrado. Quando se formou a imagem desse homem? A partir de um saber e de um poder psiquiátrico, médico, um poder “normalizador”. Fazer crítica política em nome desse humanismo significa reintroduzir na arma do combate aquilo contra o qual combatemos.

*Claudio Bojunga é jornalista, escritor e professor da PUC-Rio. Reinaldo Lobo é psicanalista e ensaísta.

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