Sunday, 8 June 2014

O Movimento Modernista, visto por Mário em 1942

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O Movimento Modernista, visto por Mário em 1942

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Com linguagem provocadora, autor recorda escândalo da Semana de 22 e vulcão que o levou a arrancar do peito “Pauliceia Desvairada”
Por Mário de Andrade
Em fevereiro de 1942, para comemorar o 20º aniversário da Semana da Arte Moderna, Mário de Andrade publicou, em “O Estado de S. Paulo”, quatro artigos em que realiza um balanço do movimento.
Na série Oswald60, o texto será apresentando em dois momentos: agora e na próxima semana.
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O texto é uma verdadeira expressão antológica do movimento modernista e surpreende pelo grau de maturidade do autor para analisá-lo em perspectiva. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60”)

Capítulo 1
É todo um passado longínquo de que sorrio sem medo, mas que me assombra um pouco também. Foi gostoso, ficou bonito, mas como tive coragem para participar daquilo! É certo que com minhas experiências artísticas muito venho escandalizando essa minoria que é a intelectualidade do meu país, mas, na realidade, feitas em artigos e livros, minhas experiências como que não se executam in anima nobile. Não estou de corpo presente e isso desencaminha o choque da estupidez.
Mas como tive coragem para dizer versos ante uma assuada tão singular, que eu não escutava do palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?… Como pude fazer uma hórrida conferência na escadaria do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?…
O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encorajado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros. Apesar da confiança, absolutamente firme que tinha na estética renovadora, eu não teria forças para arrostar aquela tempestade de achincalhes. E se aguentei o tranco foi porque estava delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. Por mim teria cedido. Digo que teria cedido, mas apenas nessa parte espetacular do movimento modernista. Com ou sem a Semana, minha vida intelectual seria o que tem sido.
A Semana marca uma data, isso é inegável. É uma data que envaidece recordar. 1
Mas o certo é que a preconsciência primeiro, e em seguida a convicção de uma arte nova, de um espírito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo no… sentimento de um grupinho de intelectuais, aqui. Do primeiro, foi um fenômeno estritamente sentimental, uma intuição divinatória, um… estado de poesia. Com efeito: educados na plástica “histórica”, sabendo quando muito da existência dos primeiros impressionistas, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, em plena guerra europeia, mostrando quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram para mim a revelação. E delirávamos diante do Homem Amarelo, a Estudanta Russa, a Mulher dos Cabelos Verdes. E ao Homem Amarelo eu dedicava um soneto parnasianíssimo… Éramos assim.
Pouco depois, Menotti del Picchia e Osvaldo de Andrade, descobriram Brecheret no seu exílio do Palácio das Indústrias. E fazíamos verdadeiras “rêveries” simbolistizantes em frente da simbólica exasperada e das estilizações decorativas do “gênio”. Porque Brecheret era para nós no mínimo um gênio. Este era o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos a que ele nos sacudia. E Brecheret ia ser em breve o gatilho que faria Paulicéia Desvairada estourar.
Eu passara esse ano de 1920 sem fazer mais poesia. Tinha cadernos e cadernos de cousas parnasianas e algumas simbolistas, mas tudo acabara por me desagradar. Na minha cultura desarvorada, já conhecia até Marinetti, mas repudiava a maioria dos princípios futuristas, como já escrevera no Jornal dos Debates, de Pinheiro da Cunha. Só então é que descobri Verhaeren, desculpem, e foi o deslumbramento. Concebi fazer um livro de poesias modernas em verso livre, sobre a minha cidade. Tentei, não veio nada que me interessasse. Tentei mais e nada. Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha se acabado em mim?… E eu me acordava insofrido.
A isso se ajuntavam dificuldades morais e vitais de toda espécie, foi ano de sofrimento muito. Já ganhava para viver folgado, mas o ganho fugia em livros e eu me estrepava em arranjos financeiros temíveis. Estava criando fama de professor bom e fazia esforços para que meus alunos de Conservatório passassem com notas altas. Em casa o clima era torvo. Se mãe e irmãos não me amolavam com as minhas “loucuras”, o resto da família me retalhava sem piedade. Tinha discussões brutas em que os desaforos mútuos não raro chegavam àquele ponto de arrebentação que… por que será que a arte os provoca!… A briga era brava e, se não me abatia nada, me deixava em ódio, mesmo ódio.
Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesto dele que eu adorava, uma cabeça de Cristo. Mas “com que roupa”? eu devia os olhos da cara! Não hesitei, fiz mais conchavos financeiros e afinal pude desembrulhar em casa a minha Cabeça de Cristo. A notícia correu num átimo, e a parentada que morava pegado, invadiu a casa para ver. E brigar. Aquilo até era pecado mortal, onde se viu Cristo de trancinha! era feio, medonho!
Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era matar. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo, nem sei. Sei que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu Largo do Paissandu. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Estava aparentemente calmo. Não sei o que me deu…
Cheguei na secretaria, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Paulicéia Desvairada. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre exames, desgostos, dívidas, brigas, em poucos dias estava jogado no papel um discurso bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte fez um livro.
Mais tarde, eu sistematizaria este processo de separação nítida entre o estado de poesia e o estado de arte, para a composição dos meus poemas “dirigidos”, as lendas, por exemplo, o abrasileiramento linguístico de combate. Escolhido o tema, por meio das excitações psicológicas sabidas, preparar o advento do estado de poesia. Se este chega (quantas vezes não chegou…) escrever sem coação de espécie alguma, tudo o que me chega até a mão – a “sinceridade” do indivíduo. E só em seguida, na calma, o trabalho penoso e lento da arte – a “sinceridade” da obra de arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que eu…
Quem teve a ideia da Semana? Por mim não sei quem foi, só posso garantir que não fui eu. O mais importante era decidir e poder realizar a ideia. E o autor verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma figura como ele e uma cidade como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana.
Houve tempo em que alguns escritores do Rio cuidaram de transplantar para a Capital as raízes do movimento, estribados nas manifestações simbolistas e post-simbolistas, que existiam por lá. Existiam é inegável. Aqui, esse ambiente só fermentava em Guilherme de Almeida, e num Di Cavalcanti pastelista, “menestrel dos tons velados”, como o apelidei numa dedicatória esdrúxula. Mas eu creio ser um engano esse evolucionismo a todo transe, que lembra nomes de Nestor Vítor ou Adelino Magalhães, como elos ou precursores.
Seria mais lógico evocar Manuel Bandeira com o Carnaval. Não. O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia nacional. É mais possível imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra. E as modas que revestiram este espírito foram diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula. É esquecer todo o movimento regionalista aberto anteriormente pela Revista do Brasil primeira fase, todo o movimento editorial de Monteiro Lobato, a arquitetura e até urbanismo (Dubugras) neocolonial aqui nascidos. Isso sim eram raízes engrossadas desde o início da guerra. Mas o espírito e as modas foram diretamente importados da Europa.
Ora São Paulo estava muito mais “ao par” que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio tem um internacionalismo ingênito. São Paulo era muito mais “moderna” porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente.
Ingenitamente provinciana, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado na política. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social, mais espiritual (não falo “cultural”) e técnico com a atualidade do mundo.
É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro da sua malícia de cidade internacional, um ruralismo, um caráter tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o “exotismo” nacional (o que é prova de vitalidade do seu caráter), mas a interpenetração entre o rural e o urbano. Cousa impossível de achar em São Paulo, como funcionalidade permanente. Como Belém, o Recife, a Cidade do Salvador, apesar do seu urbanismo rescendente, o Rio ainda é uma cidade… folclórica.
Em São Paulo o exotismo folclórico não frequenta a Rua Quinze. Vive em núcleos mortos, não funcionais, abastardados na separação, Santa Isabel. Carapicuíba. Ora no Rio malicioso, uma exposição com a de Anita Malfatti, podia ter reações publicitárias, mas ninguém se deixava levar. Na São Paulo sem malícia, criou uma religião. Com seus Neros também… O artigo “contra” de Monteiro Lobato, embora fosse apenas uma baladilha zangadinha, sacudiu uma população, modificou uma vida.
Junto disso, o movimento renovador era nitidamente aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela gratuidade antipopular, era uma aristocracia do espírito. Era natural que a alta e a pequena burguesia o temessem. Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. E foi por tudo isto que ele pôde medir bem o que havia de aventureiro, de exercício do perigo no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura.
Uma cousa dessas seria impossível no Rio, onde não existe aristocracia tradicional, mas apenas sita burguesia riquíssima. E esta não podia encampar um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista. A burguesia nunca soube perder e isso é que a perde. E aqui foi isso mesmo. Se Paulo Prado, com a sua autoridade intelectual e tradicional, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de si os seus pares e… alguns outros que a sua figura dominava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de classe como a do espírito.
É delicioso lembrar que Amadeu Amaral, um dos espíritos mais aristocráticos que São Paulo já produziu, embora retraído pelo muito que o maltratavam alguns de nós, nos via compreensivamente. A ele eu devo o Estado de S. Paulo não ter estraçalhado Paulicéia. Saiu-se de suas ocupações e escreveu ele mesmo a nota sobre o livro, severa mas reconhecendo o direito da experiência.
Em compensação a burguesia semiculta (a aristocracia era inculta: e já irresponsável na sua decadência de então), essa espécie de intelectualidade réptil que abastece as cidades e acaba onde as cidades acabam, com que violência de fulgir e se defender, arremeteu contra nós! Hoje, é irônico evocar os nomes que brilharam lunarmente, iluminados pelo brilho próprio de um estado de espírito coletivo. Tanto os contra como os favoráveis. Destes, os que não desapareceram na poeira de outros caminhos, tornaram-se figuras visíveis da inteligência nacional. Dos contrários, os que tinham valor acabaram aceitando, e muitos aderindo ao movimento renovador. Os outros continuaram pura inteligência de abastecimento urbano. O nome deles acaba onde a cidade acaba.

Capítulo 2
Na verdade, o período “heroico” do movimento que traria tão maior necessidade coletiva às artes nacionais, foi esse iniciado com a exposição expressionista de Anita Malfatti e acabado com a “festa” da Semana de Arte Moderna. Durante essa meia dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo, caçoados, achincalhados, malditos, ninguém pode imaginar o delírio de grandeza e convencimento pessoal com que reagimos. O estado de exaltação gozado em que vivíamos era insopitável. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os outros a acomodações prodigiosas, mas aquilo era genial!
E eram aquelas fugas desabaladas dentro da noite, na cadillac verde de Osvaldo de Andrade, para ir ler as nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das Palmas… E os nossos encontros à tardinha na redação de Papel e Tinta… E a falange engrossando com Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, chegados da Europa… E a adesão, no Rio, de um Manuel Bandeira… E as convulsões de idealismo a que nos levava o Homem e a Morte de Menotti del Picchia… E o descobrimento assombrado de que existiam em São Paulo, quadros de Lasar Segall, já muito querido através de revistas de arte alemãs… E Di Cavalcanti, um dos homens mais inteligentes que conheci, com os seus desenhos já então duma acidez destruidora. Tudo gênios, tudo obras-primas geniais… Apenas Sérgio Milliet punha um certo mal-estar no incêndio com a sua serenidade equilibrada… E o filósofo do grupo, Couto de Barros, pingando ilhas de consciência em nós, quando no meio da discussão, perguntava mansinho: – Mas qual é o critério que você tem da palavra “essencial”, ou – ‘Mas qual é o conceito que você faz do “belo horrível”…
Éramos uns puros. Mesmo cercados de repulsa cotidiana, a saúde mental de quase todos nós nos impedia qualquer cultivo da dor. Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós. Ninguém pensava em sacrifício, nenhum se imaginava mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos, uns hitlerzinhos agradáveis. E muito saudáveis. Quanto a mim, mais intuída que emocionada, a consciência de culpa que depois perseguira bastante minha obra poética, apenas se entremostrara pela primeira vez nos versos finais de “Minha Loucura”, em Paulicéia Desvairada.
Era estranho… Aquela última frase me desagradava, eu não gostava daquilo.
Mas não tinha a menor possibilidade de renegar o que escrevera!
A Semana de Arte Moderna, ao mesmo tempo que coroamento lógico dessa arrancada gloriosamente vivida (éramos “gloriosos” de antemão…), era um primeiro golpe de pureza do nosso aristocratismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, e ainda sofreríamos por algum tempo ataques por vezes cruéis, a grandeza regional nos dava mão forte e… nos dissolvia nas impurezas da vida. Ao exemplo da vida principiavam as “intenções”, os cotejos idiotas, as enfraquecedoras revisões de valores.
Está claro que a aristocracia protetora não agia de caso pensado, e se nos dissolvia, era pela própria natureza do seu destino e do seu estado regional. Principiou o movimento dos “salões”. E vivemos uns seis anos na maior orgia intelectual que a história artística do País registra. Está claro que, na intriga burguesa, a nossa “orgia” não era apenas espiritual… O que não disseram, o que não se contou das nossas festas…
Champanha com éter, vícios inventadíssimos, as almofadas viravam “coxins”, toda uma semântica do maldizer… No entanto, quando não foram bailes públicos, como o do Automóvel Clube e os da S.P.A.M. (que foram o que são bailes desenvoltos de sociedade), as nossas festinhas nos salões modernistas eram as mais inocentes brincadeiras de artistas que se pode imaginar.
Havia a reunião das terças, à noite, na Rua Lopes Chaves. Primeira sem data, essa reunião semanal continha exclusivamente artistas, e precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna. Sob o ponto de vista intelectual foi o mais necessário dos salões, se é que se podia chamar salão aquilo. Às vezes doze, até quinze artistas se reuniam no estúdio acanhado, onde comíamos doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcoolzinho econômico. As discussões chegavam a transes agudos, o calor era tamanho que um ou outro sentava nas janelas (não havia assento para todos!), e assim mais elevado dominava pela altura, já não dominava pela voz nem o argumento. E aquele raro retardatário da rua ainda não calçada, parava em frente, na esperança de algum incêndio por gozar.
Havia o salão da Avenida Higienópolis, que era o mais selecionado. Tinha por pretexto o almoço dominical, maravilha de comida luso-brasileira de tradição. Ainda aí, se a conversação era estritamente intelectual variava mais e se alargava. Paulo Prado, com o seu pessimismo fecundo e o seu realismo, convertia sempre o assunto das livres elucubrações estéticas aos problemas práticos da realidade brasileira. Foi o salão que durou mais tempo e se dissolveu de maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornando-se por sucessão, o patriarca da sua família, a casa foi invadida mesmo aos domingos, por um público da alta que não podia compartilhar do rojão dos nossos assuntos. E a conversa se manchava de pôquer, nomes sociais, dinheiro. Os intelectuais vencidos foram se retirando aos poucos. É o salão que me deixou mais saudades felizes.
E houve o salão da Rua Duque de Caxias, que foi o maior, o mais verdadeiramente salão. As reuniões semanais eram à tarde, também às terças-feiras. E isso foi uma das causas das reuniões noturnas do mesmo dia irem esmorecendo na Rua Lopes Chaves. A sociedade da Rua Duque de Caxias era a mais numerosa e mais variegada também. Só em certas festas especiais, no salão moderno decorado por Lasar Segall, o grupo se tornava mais coeso.
Também aí o culto da tradição era firme, dentro do maior modernismo. A cozinha, de cunho afro-brasileiro, aparecia em almoços e jantares perfeitíssimos de equilíbrio. E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa mulher excepcional que foi dona Olivia Guedes Penteado. A sua discrição, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidão heterogênea que se chegava a ela, atraída pela sua figura e prestígio, artistas, políticos, ricaços, cabotinos, foi incomparável. O salão da Rua Duque de Caxias teve como elemento principal de dissolução a efervescência política que estava preparando 1930. A fundação do Partido Democrático, o ânimo politico eruptivo que se apoderara de muitos artistas, baixara um mal-estar sobre o salão. Os democráticos foram se afastando. Por outro lado o fachismo (fascismo – nota do editor) nacional encontrava algumas simpatias entre as pessoas de roda, e ainda estava muito sem vício, muito desinteressado para aceitar acomodações. E sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, dona Olivia soube terminar aos poucos o seu salão modernista.
O último em data dos salões foi o da Alameda Barão de Piracicaba, congregado em torno de Tarsila. Não tinha dia fixo, mas as reuniões eram quase semanais. Durou pouco. E não teve jamais o encanto das reuniões que fazíamos, quatro ou cinco artistas, no antigo ateliê da admirável pintora.
Isto foi pouco depois da Semana, quando esta, definitivando na compreensão conformista a existência de um espírito de revolução, principiou nos castigando com a perda de alguns empregos. Eu teria ficado literalmente no desvio, se o acaso da morte de meu pai em 1921, não fizesse com que o Conservatório, consagrando a memória do pai, elegesse catedrático o filho, um ou dois meses antes do fevereiro da Semana! O cargo era vitalício e não o perdi. Mas perdi todos os meus alunos particulares, menos alguém que ficou por motivos de nenhuma pedagogia. Belazarte contou um caso bastante parecido em Menina de Olho no Fundo. Mas dos três salões aristocráticos, Tarsila conseguiu dar ao dela uma significação de maior independência, maior comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponência de nobreza e tradição no ambiente, que não nos era possível nunca evitar um tal ou qual constrangimento. No de Tarsila jamais sentimos isso. Foi o mais “gostoso” dos nossos salões aristocráticos.
Embora lançando inúmeros processos e ideias novas, nós éramos, então, especialmente destruidores. Até destruidores de nós mesmos, porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a liberdade da criação. A aristocracia tradicional nos deu mão forte, pondo em evidência mais essa geminação de destino – também ela já então autofagicamente destruidora, por não ter mais uma significação verdadeiramente funcional. Quanto à aristocracia do dinheiro, sempre nos olhou com confiança e nos detestava.
Nenhum salão de novo-rico tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu. Os italianos, alemães, os israelitas se faziam demais guardadores do “bom-senso” nacional, que Prados e Penteados e Amarais!…
Mas nós
estávamos longe,
arrebatados pelos
ventos autofágicos
da destruição.
E o fazíamos pela festa, de que a Semana de Arte Moderna foi a primeira. A bem dizer, todo esse período destruidor do movimento modernista foi uma fase ininterrupta de festa, de cultivo do prazer. E se tamanha festança diminuiu por certo muito nossa capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos divertimos. Salões, festivais, bailes, Spam, semana em fazendas, Semanas Santas nas cidades velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, chegadas à Bahia, Itu, Sorocaba. Parnaíba. Era, ainda e sempre, o caso do baile sobre os vulcões… Doutrinários na ebriez de mil e uma teorias salvando o Brasil, construindo o mundo, na verdade nos consumíamos no cultivo amargo de uma necessidade quase delirante de prazer.
O movimento de Inteligência que representamos, em sua fase “modernista” não foi o gerador das mudanças político-sociais posteriores a ele no Brasil. Foi essencialmente um preparador, o criador de um estado de espírito revolucionário. E se numerosos dos intelectuais do movimento se dissolveram na política, se vários de nós participamos das reuniões iniciais do Partido Democrático, carece não esquecer que tanto o P. D. como 1930 eram ainda destruição. Os movimentos espirituais precedem sobre as mudanças de ordem social. O movimento social de destruição é que se iniciou com o P. D. e 1930. E, no entanto, é por esta data que principia para a Inteligência brasileira uma fase mais calma, mais proletária por assim dizer, de construção, à espera que um dia as outras formas sociais a imitem.
E foi a vez do salão de Tarsila se acabar, 1930… Tudo estourava, políticas, famílias, casais de artistas, estéticas, amizades profundas. O período destrutivo e festeiro do movimento modernista já não tinha mais razão de ser. Na rua o povo amotinado gritava: Getúlio! Getúlio!… Na sombra de Plínio Salgado pintava de verde a sua megalomania de Esperado.
Outros abriam as veias para manchar de rubro as suas quatro paredes de segredo. Mas nesse vulcão, agora ativo e de tantas esperanças, já vinham se fortificando as belas figuras mais calmas e construidoras, os Lins do Rego, os Augusto Frederico Schmidt, os Otávio de Faria, e os Portinari e os Camargos Guarnieri. Que a vida terá que imitar qualquer dia.
(Continua na próxima semana.)

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