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Os Condenados: novo capítulo da trilogia de Oswald
CATEGORIAS: ARTE E LITERATURA, DESTAQUES, OS CONDENADOS, OSWALD60
– ON 08/06/2014
“João palpitava de profundas esperanças. Oh! Se fosse possível tê-la afinal só para ele, mesmo assim, prostituída, desmoralizada, vendida à cidade…”
Por Oswald de Andrade | Imagem: Toulouse Lautrec
–No âmbito da série “Oswald60″, “Outras Palavras” publica semanalmente, em formato de folhetim, a trilogia “Os Condenados”, obra perturbadora que Oswald de Andrade escreveu entre 1922 e 1934. Acesse aqui os capítulos já publicados–
Na sequência anterior, João do Carmo se sente desgraçado por não saber agir diante da nova condição vivida por Alma. A jovem agora se veste com elegância. Numa manhã, no entanto, retorna com o rosto marcado. Mauro recolhe todo o dinheiro arranjado. Os vadios da sociedade chique, os arrivistas comerciais, querem conhecer a desvirginada do bairro distante. Alma espera um filho. Mauro obriga a jovem a realizar um aborto e ela quase morre. Tempos depois, Mauro volta a procurá-la. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60”)
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Eram sete horas. Ficara no rendez-vous o dia todo e não aceitara ninguém. Tinha fome. No bairro distante, o velho avô havia jantado o seu pequeno jantar, dando de comer ao cachorro.
*-*-*-*-*
Ela agora não sonhava mais, como em criança, ter um marido, uma casa com criados, bebês de cachos e laços de fita na cintura.
Foi procurar Mauro no bordel da Yvette, para pedir-lhe cinco mil-réis.
Foi procurar Mauro no bordel da Yvette, para pedir-lhe cinco mil-réis.
*-*-*-*-*
João do Carmo tomara-se de uma suprema inquietação amorosa.
Ante o espelho quadrado que servia para a toilette improvisada dos seus dias, achava-se macerado como um suave peregrino. E repetia fitando Baudelaire:
L’amoureux pantelant, incliné sur sa belle,
A l’air d’un moribond caressant son tombeau
A l’air d’un moribond caressant son tombeau
*-*-*-*-*
Quando percebia Alma, num procurado encontro, sentia cem trombones funerários tocarem-lhe aos ouvidos escancarados. Tinha um sincero pasmo pela coragem lendária de Otelo. Se fizesse um fim de drama como ele!
Vinha-lhe uma sensação de frio no peito. Queimavam-se-lhe as pernas. Tinha uma dor física de cicatriz aberta no coração. Lágrimas corriam à-toa e brutalidades estrangulavam-se-lhe nos punhos.
*-*-*-*-*
Alma trouxera um charuto havano para o velho Lucas. Mauro tomou-o.
E o telegrafista abordou-a resolutamente de novo, numa áurea tarde do bairro populoso.
E o telegrafista abordou-a resolutamente de novo, numa áurea tarde do bairro populoso.
*-*-*-*-*
Dagoberto Lessa, andando com João, encontrara-a de vestido ligeiro, sapatos de pelica branca, num canotier insolente e manifestara por ela um culto apaixonado e cínico.
De modo que não fora difícil, para o namorado, tê-lo por conviva no festim de imaginação que se oferecia continuadamente, com um possível futuro, fulvo e ridente, onde entrava resignado o necessário de pouca vergonha. O grande assunto de ambos era ela. João mentia ao outro, desviando para horizontes líricos, a história da sua perdição. Repetia-lhe os antigos diálogos. E contava-lhe como amava apesar de tudo, animando o deserto noturno dos viadutos.
*-*-*-*-*
O velho esperava que a neta viesse. Ela prometera assistir à entrada do Ano Novo, em casa, diante das imagens antigas acompanhando o terço, como nos anos passados.
Num cortiço vizinho, haviam improvisado uma orquestra de negros.
O avô, tendo o cão deitado ali, rezou sozinho o rosário precatório, com o moleque de olhos brancos, escutando, ante uma vela vacilante.
Na cidade extensa, as fábricas anunciaram sonoramente que a crosta velha do ano se despegava da terra juvenil. Os mil apitos cantaram, cantaram. O velho imprecava, o moleque respondia devagar, o cão adormecera da melopéia religiosa.
São José, de dentro do velho oratório, olhava impassível, tendo o menino ao colo – o mundo simplificado em azul nas mãos polpudas, com uma cruz em cima.
São José, de dentro do velho oratório, olhava impassível, tendo o menino ao colo – o mundo simplificado em azul nas mãos polpudas, com uma cruz em cima.
Lá fora, tocava a orquestra melancólica de negros.
*-*-*-*-*
Alma ficara tomando champagne na casa de D. Rosaura. Saiu à-toa pelas ruas encantadas de movimento noturno.
Na esperança do ano melhor, um bar do Triângulo atravancava-se de gente feliz. Ela sentou-se a uma mesa esquiva.
Ficou diante de um cálice, ouvindo a música emocional, na noite ruidosa.
A seu lado, em outra mesa, um moço sórdido discutia com um velho pontiagudo, de olhos canalhas. Súbito, o velho piscou para ela.
A madrugada citadina escoava-se. Foi para casa num táxi. Encontrou tudo escuro e fechado.
*-*-*-*-*
– O Lobão é uma vela apagada no altar da inteligência humana.
João do Carmo desfranziu a carranca sentimental, sorriu. Estavam na confusão ruidosa da noite de janeiro de uma taverna central.
Sob as luzes espirradas, Dagoberto Lessa parecia mais calvo no contraste dos pontudos bigodes ruivos. Valorizava-o um imperturbável ar sério.
E, de dentro de João, vinha por vezes uma insensata vontade de acariciá-lo.
– O Lobão, o Teles Aguilar e o Pinto Pé de Anjo recusaram-se a subir ao segundo andar da inteligência humana. Têm medo de que desabe o elevador.
O garçon achegara-se, com o guardanapo sob o braço de alpaca, num grande aspecto afarado.
– Cognac! – gritou o desiludido. — E você?
– Kirsch… para evocar.
– Outro dia, reli o Jardin d’Epicure e quebrei a caneta. Prefiro escrever um volume sobre estrumes humanos. Imagine você se eu escrevesse um livro como esse! A res-pon-sa-bi-li-da-de! Que seria de meus filhos? Você sabe que tenho cinqüenta.
Houve um silêncio, no barulho. E o homem continuou:
– Nasci para fazer a grande arte, mas resolvi fazer a pequena. Vou só responder aenquêtes.
Emborcaram cálice sobre cálice e o palrador chegou ao caminho ensombrado das confidências.
– O triste, o trágico de tudo é que me casei por amor! Tinha vinte anos e prendi-me pelos primeiros olhos que me chamaram a atenção, sem indagar se eles diziam: “somos inteligentes”, “somos compassivos”, “somos idiotas”. A criatura era pobre como o Lobão. E quando pretendi tirar-lhe faíscas da alma, nada! Escuro como o cérebro de um tenente de cavalaria.
E depois de um tempo, consolando-se:
– Enfim essa história do meu casamento foi imbecil, mas foi de artista, de grande artista, foi que nem a história de Jean-Sébastien Bach.
Esvaziou mais um cálice de um trago e sorriu com um sorriso físico de músculos relaxados. E como recrudescesse em torno a balbúrdia do bar, largou da boca um insulto grosseiro e coletivo. Depois, fitando no outro os grandes olhos sérios:
– João, aqui nesta sala há cinquenta homens, quarenta e nove são infames! O que resta sou eu ou é você…
Voltou ao casamento, discutiu mulheres e, de repente, lembrou-se de Alma.
– Essa sim! É a única! Se fosse comigo… Do tesouro de Creso que tens, tiras duzentos-réis e te contentas! Eu me extremaria, me arruinaria. Porque aceito tudo, o trágico e o cômico, com dignidade. Desejo, em amor, apenas isto – o sacrifício integral do meu próprio indivíduo. Imagina, João, fazer chorar sobre o meu desastre todos: os empregados dos bancos e das confeitarias, as senhoras caseiras e as horizontais…
Diante do outro que se crucificava na cadeira, o calvo prosseguiu, às braçadas, o seu sermão de lágrimas.
*-*-*-*-*
– Estou grávida, sim…
Ela estacara com o tapa teso, as duas mãos mantendo as têmporas, chamejante e imóvel.
– Esta cabeça que já é tão dolorida!
Depois, crescendo, transfigurada:
– Estúpido! Gritarei até vir gente! Gritarei…
O cáften saltou, derrubou-a, quis pôr-lhe um pé no ventre importuno. Ela debatia-se. Largou-a desmantelada e foi-se.
*-*-*-*-*
Permaneceu até tarde naquele quarto claro de D. Rosaura. Queria ter o seu filho, fosse como fosse. Viu ao espelho o rosto machucado, sob a raiva cabeleira, dispersa e mal junta, o olhar enfaixado no luto das olheiras.
Deitou-se humildemente. E de súbito, no escuro, acendeu-se a entrada luminosa da pensão da Odete. Mauro já estaria chegando lá. As outras estariam correndo para ele, como pavões, aos gritos…
*-*-*-*-*
No fundo nunca analisado de João do Carmo, uma honestidade engrossava, como o rio nas enchentes.
Por aquele fim morno de dia, ele tinha-a afinal ali, no seu quarto de telegrafista, abrindo a janela única para a paisagem medíocre de quintais, que o perturbava.
Ela viera com ele, num saltitar ligeiro de tacões, a gostosa nudez apenas disfarçada pela saia preta e pela blusa de seda.
Numa sinceridade de confiança, acolhera-se na cama, ao lado dele, a cabeça vermelha recostada ao seu largo peito atlético que fremia. E contava-lhe histórias da vida.
– Conheces Camila Maia? Esteve lá em casa hoje, outra vez. É uma criatura alegre, esperta. Mas não tem cabeça, arranjou um filho. O filho foi para Tremembé. Esteve lá em casa, desde o meio-dia.
Depois, refletindo:
– É verdade o que você me disse? Que vai para o Rio? Não, você não pode me deixar. Eu não tenho ninguém…
Debatia-se, num carinho pedinte. O peito do moço arfava. Ele vencera, afinal, de tanta esperança, a dolorosa partida. E num confuso labirinto de sensações e raciocínios, não sabia crer.
– Eu gosto tanto de você! – murmurava Alma, quase chorosa. – Não quero que você vá…
Vinham à cabeça de João madrigais inúteis. Ele não sabia tê-la ali, como um bom macho. Rimava obscuramente o seu amor triunfal. E ela, na sua cabeça tonta de ouro ruivo, ia pensando que faria com ele a burrada definitiva. Ele era bom e não a deixaria nunca mais.
Um sentimento recuado para as reservas mais longínquas do seu ser de menina, vinha enternecer-lhe os gestos leves. Ela enroscava-se toda no homem forte e bom.
– Você conhece aquele?
Alma levantou a cabeça surpresa, olhou: João mostrava a fotografia arrancada do livro que se suspendia a um prego, na parede sobre o leito.
– É Baudelaire.
– Seu amigo?
– Não. Um poeta. Um grande poeta…
– Parece um padre.
– Você sabe francês?
– Um pouco.
Ele ficou numa lástima vexada, certo de que um soneto de Baudelaire, cantado pela sua voz cava, resolveria, melhor que tudo, a hora tentadora.
Ela estava ali, ela, ao seu lado, no seu quarto. E como parecia diferente desse mesmo ser, que o obcecava a ponto de acompanhá-lo em todas as silhuetas esbeltas, que passavam nas ruas agitadas. Era ela, a que ele sonhava ter diante do clube aquático, numa incontida vaidade de noivo gigolô, por um ocaso sobre a Ponte Grande, quando o sol líquido nadasse, ao ritmo de um barco que os seus braços levariam…
– Car j’eusse avec ferveur baisé ton noble corps…
Ficara quieto, esperando. Ela perguntou-lhe com olhos
cortantes, se estava caçoando.
cortantes, se estava caçoando.
– Ora essa! que ideia…
Uma frieza passara entre os dois corpos. Alma deu um pulo do leito, voltou-se para um canto, subiu a seda frouxa das meias.
– Preciso ir, vamos?
Ele refizera-se todo já pronto, cavalheiresco e sólido, disposto a acompanhá-la, a obedecer-lhe, a morrer por ela.
E foram em silêncio, baudelairianamente, pelas ruas geladas.
*-*-*-*-*
O velho Lucas queria liquidar o seu antigo débito hipotecário da Lapa.
Os homens da Companhia de Desenvolvimento tomar-lhe-iam as duas casinhas que lhe rendiam a vida.
Tirou do guarda-roupa um velho fraque, vestiu-o. Estava com as mangas curtas, teve a impressão de que crescera. E ficou ali, sem ânimo de sair, festivamente vestido.
*-*-*-*-*
Pela manhã, vinha-lhe aquela aguaceira áspera, amarga e inútil à boca salivosa.
O avô não desconfiava de nada. Se pudesse dormir sempre, sempre. Mas o sono fugia-lhe num galope como a vida. Fazia imensas madrugadas nulas. E uma suave angústia tinha-se lentamente obstinado no seu antigo peito calmo.
Alma gelava-se toda ao imaginar que ele viria, mais dia menos dia, a saber.
O pretexto de encontrar-se com Mauro a tinha salvo até aí. Mas o cáften havia de deixá-la também.
Foi numa loucura, que ela começou a autorizar o telegrafista a definitivos compromissos. Agora, todas as noites, era ele, como Mauro antigamente, quem passava a horas certas. Fiel, humilde, como quem nada espera e nada merece, falhava só nos dias de plantão.
O moleque, espionando do balcão, dizia à ruiva cabeça inquieta que o Carlito estava na venda da esquina.
De modo a ser um irreprimível sorriso a saudação de início, quando ela descia.
Punham-se a falar de tudo. A vizinhança não notava mais, como outrora. Forçada a todos os cinismos, Alma soubera penetrar em casa da mulher de frente, do lojista, da vizinha do sobrado. Resistia-lhe, ao lado, um funcionário magro, de bigodes baixos que se chamava Quincas e tinha encardidas filhas curiosas.
– Sabes? Camila deixou o Matos…
– Ele não era correto?
– Corretíssimo. Não há homem como aquele! Mas a paixão dela agora são os meninos do Mackenzie. Está farta das roupas e das jóias que o Matos lhe deu…
João sentiu um vexame de não lhe poder oferecer também aquilo. Se ela quisesse compreender-lhe o tesouro de amor. Esse era seu, fora sempre seu…
Perguntou-lhe despeitadamente por Mauro que deixara de aparecer. Se não voltasse nunca mais… se morresse…
João palpitava de profundas esperanças. Oh! Se fosse possível tê-la afinal só para ele, mesmo assim, prostituída, desmoralizada, vendida à cidade…
*-*-*-*-*
Ao encontro dos seus inconfessados desejos ela veio uma noite, tímida, suave, transfigurada.
A sua vida não tinha sido como diziam: ela não era a debochada que pensavam.
Na sombra tropical, sob o peso lascivo dos jasmins, rescendia-lhe o corpo claro aYvonette.
E o coração do homem bom badalava que sim, que ela não era a debochada que queriam: era santa, era santa, era santa!
*-*-*-*-*
Foi assim que João veio a saber da relação romantizada do dia a dia pobre daquela vida, que devia ter sido salva pelos seus braços musculosos.
Ele tinha acompanhado de pressentimentos inertes o demorado martírio.
E por que não interviera antes, não gritara à polícia, aos que passavam, à vigilante inquisição terrena? Por que?
Entanto, Mauro aparecia, naquele romance, santificado. Nem uma queixa raivosa contra ele, nem uma dor magoada contra os seus processos terrificantes, nem um insulto.
Uma vez, exigiu que ela dissesse mal dele.
E Alma recusou-se, estagnada, no jardim.
Ele partiu, gesticulante, pelas ruas do bairro. Passou, de novo, meia hora depois. Ela havia ficado sentada aos degraus da entrada, pensando. Quando percebeu a silhueta longa, sob o chapéu-de-palha, correu nos tacões, gritou. Ele veio. Ela estava disposta a dizer todo o mal insincero de Mauro, para que a salvassem da final cólera do velho… Mas o passeio, o ar da noite, o tropel das reflexões e o amor o tinham dissuadido suavemente. Ele não pediu mais nada. Ficaram até tarde amorosamente se perdoando.
*-*-*-*-*
Alma tomou nas duas mãos, que tinha grudadas às grades, a resolução sobre-humana de explicar-lhe tudo. E ele não compreendia, embevecido no idílio em que se lhe apodrecia beneficamente a vida.
Como ela lhe tivesse telefonado para o emprego, interpelou-a chegando. Alma sorria numa malícia visível e triste.
Ele ficou supondo que se tratasse de uma reaparição intempestiva de Mauro, de um retorno amoroso ao velho par.
Mas, súbito, a um gesto largado e proposital dela, percebeu o ventre saltar, como uma cobra que morde, na roda frouxa do vestido. Uma suspeita enlouqueceu-o. Seria possível… ele andava tão longe!
Interrogou-a empalidecido como um morto que falasse. Ela permaneceu linda e quieta, de cílios baixados.
*-*-*-*-*
Era verdade! Alma estava grávida, agora que o amava, que era o seu futuro, quase que a sua noiva redimida! Estava grávida de outro.
Tão visível fora a expressão de horror na máscara do moço namorado, que Alma, de alvas escancaradas, falou num salvador instinto:
– Sei que sou indigna do teu amor. Sou uma infame.
Ele partira sem dizer nada. Fora andando. Ela ficara presa ao portão, numa resignada e trêmula angústia. Sorria da sua negra sorte invencida.
*-*-*-*-*
Ele caminhava sobre as ruínas do seu sonho desfeito. Todos os seus gestos eram desencontrados e pediam piedade para o alto. Oh! a idéia fixa de jogar um dramalhão definitivo – matá-la e matar-se, encher de sangue os jornais!
Recapitulou tudo pela noite aasvérica. Deitou-se às três horas raciocinando sempre, de olhos enormes. Chegara à porta infernal de um dilema: o amor perdoa tudo, resgata tudo – ele não podia perdoar.
E caiu ao leito antigo e duro, até o sol vir a espancar o pesadelo da terra.
*-*-*-*-*
Dagoberto Lessa fechara com ele a camaradagem diária.
Andavam ao léu pela cidade, ou paravam no escuro ambiente das cervejarias do centro.
Uma noite, João do Carmo penetrou, sob a capa de borracha inundada de chuva, na casa que o outro habitava, com a família numerosa, 46 Rua Monsenhor Anacleto.
Resolvera contar-lhe tudo, pedir-lhe conselho, direção, auxílio, salvamento.
Num pijama de listras, o calvo ria-se muito de o ver assim, naquela primeira visita, vindo nervosamente a pé, sob o aguaceiro que lavava as ruas.
João atirou a capa encharcada ao chão. Sentou-se e desabafou.
Do quarto vizinho, a liturgia da casa vinha num vago trá-lá-lá de adormecer.
O apaixonado, falou, falou, até despejar a alma intumescida de segredo. E perguntava repetidamente, de olhos fixos, se ainda devia crer na honestidade dela.
O outro distraíra-se, pensando. De repente, abriu uma canta que se dissimulava entre livros e tirando um caderno branco:
– Vou corresponder à tua confiança.
Tinha um aspecto de revelação. Numa cautela, abriu um maço de páginas escritas, acendeu um cigarro:
– É uma coroa de lembranças tecidas no aniversário de um primeiro beijo…
E, de olhos medrosos para a porta interior, leu soturnamente, evocando uma luta, uma resistência, uma cabeleira virginal e um vestido branco.
*-*-*-*-*
Não queria ir. Mas cedeu.
Foram passar juntos o dia 13 de Maio, em Santos. Dagoberto recitou versos, depois do almoço, na praia de sol.
*-*-*-*-*
O comboio saiu lentamente da penumbra da gare. João do Carmo fechou a vidraça e atirou-se ao lado do companheiro no sofá do carro.
Deixavam Santos pela extensa chapa de vegetação rasteira, que a circunda. Passaram o pântano tropical e a ponte de ferro sobre a água cor-de-aço. E o trem abalou em demanda da serra, que se calafetava de neblina no fim da tarde de outono.
João tocava, no fundo de um bolso, o lencinho rendado de Alma, em que, na véspera, ela pusera o grande beijo mudo da despedida. E apertava-o na mão segurando nele a dádiva inteira do ser estremecido.
Tinha regressado ao portão e sentira que uma espécie de compromisso oculto, de trevoso noivado, desafiara e vencera o enxovalhamento máximo. Agora, tudo predizia a aliança imortal dos dois desgraçados destinos.
*-*-*-*-*
Sim, ele podia crer no amor definitivo de Alma. Ela tivera duas lágrimas silentes ao vê-lo voltar. E na véspera, naquele ermo da rua, ao contar que ia a Santos, a sua angústia nervosa crescera de ver os belos olhos verdes e magoados dizerem a tristeza indizível das separações.
O trem parou em Piassaguera. E, mais lento manobrou para apanhar a engrenagem da rude escalada. Na noite que baixava, envolvendo a natureza, olhos claros de locomotiva focavam trechos de chão, sob os limpa-trilhos negros, de onde saíam até perder-se no escuro as fitas afiadas dos rails. E, de longe em longe, sucediam-se as luzes baças dos sinais.
Um barulho rascante de rodas começou, ao mesmo tempo que o trem era levantado molemente na primeira ladeira da serra.
Alma contara-lhe apreensiva que tinha notado uma acentuação de mau humor no velho. Que iria suceder? Era impossível casarem-se logo. João afastava essa ideia para um futuro longínquo, como as grandes redenções dos últimos atos. E o avô? Havia de saber mesmo a verdade inteira. Mas a possibilidade de precipitar-se a catástrofe de uma expulsão era visível.
As rodas cantavam, levando o trem montanha acima. Às vezes, havia uma imprevista parada na noite avassalante. E ficavam ali os passageiros, sentindo subitamente morta a gigantesca engrenagem. Mas um outro troço de vagões iluminados passava no sentido contrário. E recomeçava a lenta viagem.
Alma amava-o, sim. A notícia da separação ligeira de um dia tivera como ilustração deliciosa a reconciliação truncada pelo sentimento do abandono. Agora, quando chegasse, ainda passaria por lá.
De novo o trem parou ao lado de uma usina caída sob a linha. O fôlego robusto de um respiradouro soprou, fazendo montar na treva golfadas brancas de fumaça. E, de novo, o comboio moveu-se.
Passaram a noite dupla dos túneis. E as primeiras luzes do Alto da Serra anunciaram-se com a mudança favorável de nível. Passageiros levantavam-se, falando em jantar. Ao lado de João, Dagoberto olhava-o, dizendo:
Que silêncio!
*-*-*-*-*
Um asco voltava no entanto, fundo, avassalador, horrível. João queria ainda repeli-la, desresponsabilizar-se daquilo tudo, fugir. Mas ao vê-la nas noites prolongadas do portão, chorosa e entregue, o seu triste coração centuplicava-lhe os perdidos gestos.
*-*-*-*-*
O avô mudara lentamente, num prenúncio de crise tétrica.
Esperava a entrada das estações num incontido nervoso.
A Companhia de Desenvolvimento anunciou-lhe, numa bela carta escrita a máquina, que não reformaria a hipoteca vencida. O cãozinho peludo quase perdera a vista.
Passou a fumar decuplicadamente, em silêncio. Se fosse possível embriagar-se ou então morrer, acabar! Pensou uma noite em atirar-se da Ponte Grande. A neta, havia de ir buscar o seu velho cadáver, encalhado numa margem do Tietê… E os jornais falariam bem dela.
*-*-*-*-*
Mauro, depois de uma escandalosa briga de cabaré, fora denunciado à polícia.
E João do Carmo ansiava pelo desenlace esperado do drama lancinante de seu sonho.
Uma noite, Alma evocou-o numa suave lembrança. Então, num despeito, João mentiu que ele fora preso.
Ela teve um repentino espanto. Depois, deixou as grades e um choro rebentou-lhe pelos olhos, pela boca, pelo nariz. Buscou um lenço nervosamente na abertura clara dos seios. E ficou soluçando baixo entre os canteiros.
João estacara numa surpresa desolada e muda. Conversaram ainda, quase hostis, numa ternura que soava falso e vazio.
E o telegrafista foi visitar de novo os cem caminhos doloridos da cidade.
*-*-*-*-*
O velho ficou à espera da neta, no paletó remendado, até dez e meia daquela noite, sem se deitar.
Pressentia lá fora o idílio. Não iria desmanchá-lo, recordando um insulto, que levara no rosto, do outro: o maldito, o casado, o aranha vermelha.
Aquela casa que ainda palpitava das recordações da esposa santificada pela morte, aquela casa fora o teatro da sua revoltante desonra. Alma era indigna do seu obstinado amor. Antes a tivesse abandonado à gula ricaça de Antero d’Alvelos.
A porta da entrada rangeu. Alma penetrara num vento sutil. Percebeu, surpreendida, que estavam acesas as luzes. Ouvira um arrastar precipitado de chinelas. Estagnara geladamente na passadeira do corredor. O espectro doméstico apareceu. Chamou-a sem voz. A cabeça tremia-lhe incontidamente. Apertava um cigarro apagado na mão.
Alma tinha os olhos redondos, a boca imóvel. Uma inexprimível tortura sufocava-a, no vestido humilde e antigo.
O velho descobrira decerto tudo. E ia falar-lhe, dizer-lhe o crime horrendo, o crime de ter um filhinho. Porque o seu passado torpe desaparecera: a prostituição, o aborto, a vida canalha entre braços desconhecidos que pagavam. O crime era ser solteira e deixar viver no seu âmago a centelha humana, e defendê-la, e amá-la.
– Vá para a rua! Procure caminho! Esta casa é minha, sempre foi minha. Faça a sua mala e desapareça! A casa é minha!
Então, do peito que se oprimira espedaçado, saltou a inocência de tanta miséria. Ela era uma coitada que ninguém soubera defender. O que lhe acontecera era o resultado do seu desamparo. As filhas que não têm mãe nem pai são assim mesmo.
O velho quis discutir, gritar. Mas como ela continuasse, ficou escutando: Baixou a cabeça ante a eloquência imprevista que pulava aos golfões da boca trêmula e rubra. Terminara.
Houve um silêncio. E ela disse ainda que não sabia, porque não tinha dinheiro e não tinha onde dormir.
Do ser convulso as lágrimas saltaram naquela confissão de desgraça. O velho desnorteara-se choroso. Talvez devesse perdoar. Ficou andando para cá e para lá, envenenando-se de fumo e de lágrimas grossas, enquanto ela foi sentidamente se deitar.
(Continua na próxima semana.)
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