https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Mae-Terra/Para-interromper-as-mudancas-climaticas-e-preciso-dar-fim-ao-capitalismo-Temos-coragem-para-isso-/3/45340
O ativismo climático é cada vez mais dominado pelos jovens, como Greta Thunberg, de 16 anos, a face improvável do movimento da greve estudantil pelo clima, que levou milhares de crianças a faltar aula para exigir que a geração de seus pais assuma a responsabilidade de deixar-lhes um planeta onde seja possível viver. Em comparação, o establishment político se mostra cada vez mais um impedimento à transformação. As consequências do aquecimento global passaram, nos últimos anos, de algo meramente teórico e previsto para uma realidade observável, mas isso não aumentou efetivamente o sentimento de urgência. A necessidade de manter as rodas do capitalismo bem lubrificadas se sobrepõe até mesmo a um cenário de incêndios, inundações e furacões.
As crianças de hoje, à medida que se tornam mais conscientes politicamente, serão muito mais radicais do que seus pais, simplesmente porque não terão outra escolha. Esse radicalismo emergente já está pegando as pessoas de surpresa. O New Deal Verde (GND – Green New Deal), termo hoje diretamente associado à deputada norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez, de 29 anos, provocou uma reação descontrolada da ala "pró-mercado", que chama o projeto de um cavalo de Tróia, mera tentativa de empurrar o marxismo através da legislação climática.
A crítica soa ridícula. Em parte porque o GND está longe de ser verdadeiramente radical e já representa um acordo negociado, mas principalmente porque a economia radical não é uma cláusula oculta, mas a questão principal. As mudanças climáticas são o resultado de nosso atual sistema econômico e industrial. As propostas como o GND combinam vastas mudanças na política ambiental com reformas socialistas mais amplas porque o nível de ruptura necessário para nos manter a uma temperatura abaixo do “absolutamente catastrófico” é fundamentalmente, num nível estrutural profundo, incompatível com o status quo.
Neste momento podemos, se enorme investimento e esforço forem feitos até 2030, manter o nível de aquecimento abaixo de 1,5 grau Celsius. É um cenário "ruim, mas administrável". Se não for feito este esforço, o mundo atravessará barreiras de temperatura mais severas, que levariam a resultados como colapso de ecossistemas, acidificação dos oceanos, desertificação maciça e inundações de cidades costeiras, tornando-as inabitáveis.
Nós simplesmente teremos que investir tudo nisso. Ajustes de política, como um imposto de carbono, não bastam. Precisamos fundamentalmente reavaliar nossa relação com a propriedade, o trabalho e o capital. O impacto de uma reconfiguração dramática da economia industrial também requer grandes mudanças no estado de bem-estar social. Renda básica, programas de obras públicas de grande escala, tudo precisa ser pensado para garantir que os choques do sistema que se aproximam não deixarão enormes faixas da população global indigentes e famintas. Talvez ainda mais fundamentalmente, não possamos continuar tratando o sistema de bem-estar como uma ferramenta para disciplinar os supostamente preguiçosos das classes mais baixas. Nosso sistema deve ser reformado para adotar uma visão mais humana do que a que temos agora sobre a falta de trabalho, a pobreza e a migração.
Infelizmente para os nossos filhos, as pessoas que eles precisam convencer disso tudo são aquelas que se deram muito bem com este sistema, e são fortemente incentivadas a negar que tudo esteja tão ruim assim. Joke Schauvliege, ex-ministra belga do meio ambiente, foi obrigada a renunciar após alegar ter sido alertada pelos serviços de segurança belgas de que as manifestações pelo clima estavam sendo manipuladas.
Este conspiracionismo da elite – suspeitas de que não exista um genuíno movimento de massas ou de que este deve, de alguma forma, estar sendo guiado por agentes provocadores – é apenas uma das formas de gaslighting (abuso psicológico) a que os poderosos têm recorrido na tentativa de manter o poder.
Gaslighting não é um termo que costumo usar, porque descreve uma forma genuína de abuso emocional, em que um abusador nega a realidade na tentativa de fazer com que sua vítima duvide literalmente de sua própria sanidade, e não é algo que deva ser banalizado pelo uso excessivo. No entanto, tenho dificuldade em encontrar outra palavra que resuma adequadamente a maneira como adultos “sensatos” estão dobrando a aposta na fabricação de uma realidade política que não tem nada a ver com o mundo ao nosso redor. É o marxismo de Groucho e não o de Karl: “Em quem você acredita? Em políticos sérios ou em seus próprios olhos enganosos?”
A reunião da senadora estadunidense Dianne Feinstein com crianças que pediam que ela tomasse providências em relação às mudanças climáticas viralizou por causa da postura de superioridade da parlamentar em relação aos pequenos que, basicamente, pediam que ela lhes garantisse um planeta para viver. "Faço isso há 30 anos", ela disse, "sei o que estou fazendo." A resposta óbvia é, evidentemente, que fazer bobagem por 30 anos já é tempo demais, obrigado. Estabilidade sem resultados não é sinônimo de competência.
Esta é uma pílula difícil e amarga de engolir para os profissionais da política que estão muito confortáveis em sua posição. É cada vez mais óbvio que todas as suas táticas resultaram em quase nada, exceto em perda de tempo, mas ainda assim insistem que os jovens é que não entendem nada e que as coisas não são tão simples assim. Eles são a encarnação do famoso cartum da New Yorker em que um homem de terno sentado em uma paisagem pós-apocalíptica diz a seus jovens interlocutores: “Sim, o planeta foi destruído. Mas, por um belo momento, criamos muito valor para os acionistas ”.
É a realidade versus os interesses dos poderosos. Qualquer política significativa precisa perturbar a base do poder estabelecido e a classe de doadores dos políticos. Qualquer política que não incomode essa gente será inútil. Fingir que podemos pular de acordo em acordo enquanto esperamos por um passe de mágica da tecnologia que manterá as temperaturas baixas sem nenhum custo ultrapassa qualquer ignorância voluntária. É uma questão de moralidade básica.
Muitos dos grevistas climáticos de hoje não terão nem 30 anos quando chegar o limite de 1,5 graus Celsius, em 2030. Eles nos pedem para responder a uma pergunta simples. O que vale mais: o futuro deles ou nossas reputações?
*Publicado originalmente no The Guardian | Tradução de Clarisse Meireles
Para interromper as mudanças climáticas, é preciso dar fim ao capitalismo. Temos coragem para isso?
Ajustes de política não bastam, precisamos mudar radicalmente nossa relação com a propriedade, o trabalho e o capital
26/09/2019 11:39
O ativismo climático é cada vez mais dominado pelos jovens, como Greta Thunberg, de 16 anos, a face improvável do movimento da greve estudantil pelo clima, que levou milhares de crianças a faltar aula para exigir que a geração de seus pais assuma a responsabilidade de deixar-lhes um planeta onde seja possível viver. Em comparação, o establishment político se mostra cada vez mais um impedimento à transformação. As consequências do aquecimento global passaram, nos últimos anos, de algo meramente teórico e previsto para uma realidade observável, mas isso não aumentou efetivamente o sentimento de urgência. A necessidade de manter as rodas do capitalismo bem lubrificadas se sobrepõe até mesmo a um cenário de incêndios, inundações e furacões.
As crianças de hoje, à medida que se tornam mais conscientes politicamente, serão muito mais radicais do que seus pais, simplesmente porque não terão outra escolha. Esse radicalismo emergente já está pegando as pessoas de surpresa. O New Deal Verde (GND – Green New Deal), termo hoje diretamente associado à deputada norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez, de 29 anos, provocou uma reação descontrolada da ala "pró-mercado", que chama o projeto de um cavalo de Tróia, mera tentativa de empurrar o marxismo através da legislação climática.
A crítica soa ridícula. Em parte porque o GND está longe de ser verdadeiramente radical e já representa um acordo negociado, mas principalmente porque a economia radical não é uma cláusula oculta, mas a questão principal. As mudanças climáticas são o resultado de nosso atual sistema econômico e industrial. As propostas como o GND combinam vastas mudanças na política ambiental com reformas socialistas mais amplas porque o nível de ruptura necessário para nos manter a uma temperatura abaixo do “absolutamente catastrófico” é fundamentalmente, num nível estrutural profundo, incompatível com o status quo.
Neste momento podemos, se enorme investimento e esforço forem feitos até 2030, manter o nível de aquecimento abaixo de 1,5 grau Celsius. É um cenário "ruim, mas administrável". Se não for feito este esforço, o mundo atravessará barreiras de temperatura mais severas, que levariam a resultados como colapso de ecossistemas, acidificação dos oceanos, desertificação maciça e inundações de cidades costeiras, tornando-as inabitáveis.
Nós simplesmente teremos que investir tudo nisso. Ajustes de política, como um imposto de carbono, não bastam. Precisamos fundamentalmente reavaliar nossa relação com a propriedade, o trabalho e o capital. O impacto de uma reconfiguração dramática da economia industrial também requer grandes mudanças no estado de bem-estar social. Renda básica, programas de obras públicas de grande escala, tudo precisa ser pensado para garantir que os choques do sistema que se aproximam não deixarão enormes faixas da população global indigentes e famintas. Talvez ainda mais fundamentalmente, não possamos continuar tratando o sistema de bem-estar como uma ferramenta para disciplinar os supostamente preguiçosos das classes mais baixas. Nosso sistema deve ser reformado para adotar uma visão mais humana do que a que temos agora sobre a falta de trabalho, a pobreza e a migração.
Infelizmente para os nossos filhos, as pessoas que eles precisam convencer disso tudo são aquelas que se deram muito bem com este sistema, e são fortemente incentivadas a negar que tudo esteja tão ruim assim. Joke Schauvliege, ex-ministra belga do meio ambiente, foi obrigada a renunciar após alegar ter sido alertada pelos serviços de segurança belgas de que as manifestações pelo clima estavam sendo manipuladas.
Este conspiracionismo da elite – suspeitas de que não exista um genuíno movimento de massas ou de que este deve, de alguma forma, estar sendo guiado por agentes provocadores – é apenas uma das formas de gaslighting (abuso psicológico) a que os poderosos têm recorrido na tentativa de manter o poder.
Gaslighting não é um termo que costumo usar, porque descreve uma forma genuína de abuso emocional, em que um abusador nega a realidade na tentativa de fazer com que sua vítima duvide literalmente de sua própria sanidade, e não é algo que deva ser banalizado pelo uso excessivo. No entanto, tenho dificuldade em encontrar outra palavra que resuma adequadamente a maneira como adultos “sensatos” estão dobrando a aposta na fabricação de uma realidade política que não tem nada a ver com o mundo ao nosso redor. É o marxismo de Groucho e não o de Karl: “Em quem você acredita? Em políticos sérios ou em seus próprios olhos enganosos?”
A reunião da senadora estadunidense Dianne Feinstein com crianças que pediam que ela tomasse providências em relação às mudanças climáticas viralizou por causa da postura de superioridade da parlamentar em relação aos pequenos que, basicamente, pediam que ela lhes garantisse um planeta para viver. "Faço isso há 30 anos", ela disse, "sei o que estou fazendo." A resposta óbvia é, evidentemente, que fazer bobagem por 30 anos já é tempo demais, obrigado. Estabilidade sem resultados não é sinônimo de competência.
Esta é uma pílula difícil e amarga de engolir para os profissionais da política que estão muito confortáveis em sua posição. É cada vez mais óbvio que todas as suas táticas resultaram em quase nada, exceto em perda de tempo, mas ainda assim insistem que os jovens é que não entendem nada e que as coisas não são tão simples assim. Eles são a encarnação do famoso cartum da New Yorker em que um homem de terno sentado em uma paisagem pós-apocalíptica diz a seus jovens interlocutores: “Sim, o planeta foi destruído. Mas, por um belo momento, criamos muito valor para os acionistas ”.
É a realidade versus os interesses dos poderosos. Qualquer política significativa precisa perturbar a base do poder estabelecido e a classe de doadores dos políticos. Qualquer política que não incomode essa gente será inútil. Fingir que podemos pular de acordo em acordo enquanto esperamos por um passe de mágica da tecnologia que manterá as temperaturas baixas sem nenhum custo ultrapassa qualquer ignorância voluntária. É uma questão de moralidade básica.
Muitos dos grevistas climáticos de hoje não terão nem 30 anos quando chegar o limite de 1,5 graus Celsius, em 2030. Eles nos pedem para responder a uma pergunta simples. O que vale mais: o futuro deles ou nossas reputações?
*Publicado originalmente no The Guardian | Tradução de Clarisse Meireles
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