Friday, 14 September 2012

Uma incômoda pitada de magia

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Uma incômoda pitada de magia

Pesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society, sede da revolução científica
CARLOS HAAG | Edição 199 - Setembro de 2012
de Londres
© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY
Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg mostrando o pequeno envelope fechado
Não é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática reação de Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, ao ser questionado sobre a importância do achado das pesquisadoras Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima PUC-SP). Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Moore respondeu: “Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos ninguém encontrou”.
Trata-se de uma pitada de pó amarelado e com odor pungente embalada num pequeno envelope colado em uma carta de 1675 endereçada ao primeiro-secretário da Royal Society, Henri Oldenburg (1515-1677), vinda da Antuérpia e enviada por um apotecário e alquimista chamado Augustin Boutens. Embora não chame a atenção, é uma valiosa e concreta amostra do alkahest, famigerado solvente universal, que foi alvo de buscas que movimentaram gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert Boyle e Isaac Newton.
Após revelar, em 2010, num Projeto Temático apoiado pela FAPESP, a única receita completa do alkahest (A agenda secreta da química”, Pesquisa FAPESP n˚ 154), de 1661, a dupla encontrou agora, afirmam, “uma primeira amostra real de Luduscomposto, um alkahest, de que se tem notícia desde o século XVII”. O que é o pó?
Certamente, a Royal Society quer que a amostra seja analisada por um de seusfellows, provavelmente Martyn Poliakoff (ver entrevista na página 25), vice-presidente da instituição. “Apesar da curiosidade pessoal, como pesquisadoras em história da ciência, não pretendemos ir ao laboratório para procurar saber o que seria pelos moldes de hoje o tal pó”, fala Márcia. “O que importa é a descoberta de mais uma evidência forte de que uma boa porção das ciências antigas, como a alquimia, persiste mesmo após o surgimento de uma nova visão de ciência (e até fizeram parte na formação desta), mantendo-se na agenda das figuras que supostamente promoveram a revolução científica que originou a química moderna. Há uma história pouco conhecida que conta que essa passagem foi mais suave e coerente e só se encerrou no século XIX”, afirma Ana.
Acima de tudo, confirma o credo das pesquisadoras que fazer a história da ciência é arregaçar as mangas e enfrentar a poeira secular dos documentos originais para dar vida a eles. Prova disso, para surpresa de Moore, é que o documento passou pelas mãos da historiadora Marie Boas, responsável, nos anos 1960, pela catalogação da correspondência de Oldenburg, por 15 anos o “faz-tudo” da Royal Society. Diante do pequeno envelope, Marie apenas anotou: “Amostra do que parece ser pirita, anexada ao texto”.
“A obra de Marie é impecável, mas, pensando como muitos em sua época, ignorou possíveis interesses alquímicos dos ‘novos cientistas’ e, assim, terminou por não investigar o caráter hermético das cartas de Oldenburg, o que incluía, por vezes, as ‘limpezas’ do passado e intervenções pouco recomendáveis”, avalia Ana. “Esse achado amplia a visão de que a filosofia química não morreu com o triunfo da visão mecânica e corpuscular. Saber que ainda se perseguiam materiais como o Luduse o alkahest comprova isso e incluí mais nomes importantes na lista dos que praticavam essas buscas, mesmo alguns que se pensava convertidos ao racionalismo e, mais ainda, ao mecanicismo do século XVII”, explica Pyio Rattansi, professor emérito do University College London, que revelou a importância do hermetismo e da Bíblia nas obras científicas de Newton, até então visto como “santo padroeiro” da ciência moderna. “Além dele, outros ‘homens de razão’ tinham ‘segundas agendas’ que discretamente continham processos alquímicos”, conta Ana.
Essa revisão da história da ciência só veio à tona quando as pesquisadoras, apesar do “canto de sereia” da tecnologia, viram a limitação dos catálogos digitais e se enfurnaram diretamente nos “fundos fechados” do arquivo, enfrentando a incredulidade inicial dos ingleses. “Tínhamos claro que era preciso entender o pensamento dos homens de ciência daquela época. Havia uma espécie de dualidade diante de qualquer fato novo: por um lado, havia a necessidade de manter sigilo, pois, em especial quando se tratava de materiais ou processos de laboratório, muitos eram verdadeiros segredos de Estado. Por outro lado, estava uma das máximas (que, aliás, se mantêm até hoje) da nova ciência, que defendia o saber elaborado por muitos e ao alcance de todos”, conta Ana. “Muitos estão se coçando para pôr as mãos nesse conhecimento e sabe-se lá o que farão para vê-lo publicado”, escreveu Newton a Oldenburg em 1676. Os meandros “rocambolescos” que as pesquisadoras precisaram vencer para encontrar a receita do alkahest é fruto dessa visão.
“Depois das descobertas iniciais de documentos, consideramos que tudo relacionado ao alkahest na Royal Society estava claro e visível”, fala Márcia. Até encontrarem a misteriosa carta de Boutens para Oldenburg. “Já se passaram anos desde que enviei ao senhor uma boa quantidade do Ludus helmontiano, a partir do qual eu produzi o material sulfuroso que anexo abaixo. Confio na sua sabedoria para entender que efeitos ele produz.” A referência ao mineral argiloso chamou a atenção de Ana e Márcia. Afinal, o Ludus era base de uma receita do liquour alkahest produzida pelo médico belga Van Helmont (1579-1644), que dedicou sua vida a estudar os obscuros trabalhos de Paracelso para produzir o que seria o “remédio para todas as doenças”. Capaz de dissolver qualquer substância sem deixar resíduos, reduzindo-a a seus constituintes primários, o alkahest seria fonte de remédios poderosos, em especial contra os “males da pedra”, a litíase renal, a “pedra nos rins”, causadora incurável de muitas mortes até o século XIX.
Segundo Van Helmont, era possível, por exemplo, fazer um remédio contra o cálculo urinário pela dissolução do Ludus com o alkahest. Não tanto pelo mineral, mas pela capacidade do alkahest em transformá-lo em fonte de cura. Tudo era fruto de um pensamento milenarista: o solvente seria um presente de Deus quando o mundo se aproximasse do fim”, explica o historiador Paulo Porto, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). O Ludus funcionaria como a cápsula plástica que, hoje, envolve as pílulas, permitindo a difusão gradual do medicamento no organismo. O dilema dos alquimistas era justamente garantir que a solvência doalkahest acontecesse aos poucos, não matando o paciente ao tentar curá-lo. “Desde os anos 1640, o objetivo central da ciência inglesa era prolongar a vida das pessoas e o alkahest preparado com Ludus helmontiano seria o remédio indicado para isso”, diz Paulo. Para muitos contemporâneos, o rei Charles II criara a Royal Society, acima de tudo, para reunir as maiores cabeças da época a fim de que produzissem “o grande remédio”.
© REPRODUÇÃO
Henri Oldenburg: secretário da Royal Society centralizava toda a informação para a Instituição e foi um dos pioneiros nos padrões científicos
Por isso, a carta levantou suspeitas nas pesquisadoras. “Como entender que após procurarem por anos esse ‘grande remédio’ não houvesse registros nas atas da Royal Society da chegada de uma amostra de seu componente? Tudo indicava que estávamos diante de um ‘segredo’ valioso para os fellows da instituição”, diz Márcia. Era preciso, então, entender melhor a relação de Oldenburg e Boutens. A primeira pista foi uma carta de setembro de 1667, escrita para Boyle logo após o secretário sair da prisão, onde foi encarcerado pelos seus contatos “excessivos” com o exterior. Logo se descobriu que a correspondência intensa era parte de seu trabalho. Oldenburg trocava cartas com quem pudesse ter ou conhecer algum segredo sobre a “Arte”. Os vários espiões que espalhou pela Europa o informavam sobre qualquer experiência.
Sintomaticamente, a carta para Boyle foi a primeira coisa que fez após sair da prisão. “O senhor menciona uma caixa que, creio, foi endereçada a mim. É Ludus da Antuérpia. Sinta-se livre para abri-la e depois enviá-la a mim, com sua opinião se é oLudus genuíno.” Várias cartas mais tarde, com o mesmo teor de súplica humilde, não foram suficientes para Boyle atender a seu pedido e Oldenburg nunca pôs as mãos na preciosa caixa. Os arquivos foram revelando aos poucos os elos do secretário e Boutens, o alquimista da Antuérpia. Em novembro de 1667, Oldenburg escreveu ao alquimista: “Soube por um amigo de Paris (certamente um de seus espiões) de sua grande predisposição para a curiosidade e sua inclinação especial pela sólida filosofia que se fundamenta na observação e os experimentos que estamos tentando estabelecer aqui na Royal Society. Também fui informado de suas tentativas infatigáveis de descobrir os segredos da natureza pelo bom caminho da química”.
A sedução epistolar vai adiante. “Gostaria que o senhor soubesse como os ingleses admiram operações químicas feitas por homens de bom senso que são livres dos preconceitos vulgares impostos pelo mundo por algumas pessoas que pretendem falar dogmaticamente sem nenhuma experimentação crítica preliminar, como o excelente senhor Boyle achou necessário fazer em seu Sceptical chymist (1661)”, continua. “Sabemos que há Ludus helmontiano em abundância na sua região: peço ardentemente que nos envie para Londres por mar.” Em dezembro chegou a resposta de Boutens: “Vou enviar mais de 70 quilos do Ludus com a descrição do método que utilizo para fazer o remédio”. O pagamento da empobrecida Royal Society foi feito em livros, cobiçados por alquimistas. A carta foi recebida com grande entusiasmo pelos membros da Royal Society, assim como outra carta escrita por Boutens alguns meses depois, descrevendo os lugares onde se podia encontrar o Ludus. Essa correspondência, porém, não teve continuidade e apenas em junho de 1675 aparece uma nova carta de Boutens, justamente aquela em que está afixada a amostra do “pó secretíssimo”.
Oldenburg, porém, não respondeu à carta. De início, as pesquisadoras atribuíram a atitude nada típica do secretário ao excesso de trabalho. Mas descobriram outra razão. Francis Mercurius, filho de Van Helmont, estava no mesmo período na Inglaterra e, sabidamente, tinha conhecimento dos muitos segredos do pai, trazendo até mesmo amostras de seus materiais. Junior, como era conhecido, aproximou-se rapidamente de grandes estudiosos ingleses. Através de Henri More, tornou-se mentor de Lady Anne Conway, vítima de terríveis enxaquecas que o próprio Harvey não conseguiu curar. O círculo de Anne incluía, além de More e Ralph Cudworth, líderes dos Platonistas de Cambridge, o experiente homem de laboratório Ezekiel Foxtrot, amigo e colaborador de Newton. “O que os unia era a preocupação com o ceticismo radical da época, que tentaram combater com a aceitação ‘racional’ de profecias bíblicas mescladas com visões milenaristas. Para justificar o novo universo científico cético, assumiram o ideal de que viviam tempos como os descritos nos livros de Daniel e Revelação”, observa Rattansi. Para Daniel, o conhecimento aumentaria à medida que a humanidade se aproximasse de seu final. Isso era a realidade cotidiana do século XVII, presente no diálogo de Junior e Lady Conway que acabaram se convertendo na seita dos quakers, notórios milenaristas adeptos desses ideais.
© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY
Salão de pesquisa da Royal Society, com as pesquisadoras brasileiras sentadas
Junior levou para a Inglaterra amostras dos materiais secretíssimos do pai, entre estes pedaços do precioso Ludus. Um deles foi dado para Foxtrot, que o repassou para Newton, que o entregou para o naturalista John Woodward. “Newton me deu um pedaço do material trazido da Alemanha pelo jovem Helmont como o verdadeiroLudus de seu pai, que, na minha visão, não é em nada diferente do achado aqui mesmo na Inglaterra”, anotou descrente. O interesse de Newton noalkahest e outros materiais semelhantes, como o alakheste, era profundo e isso agora aparece de forma visível. E a caixa enviada a Oldenburg anos antes? “Boyle a tomou para si, entregando a Locke, um de seus homens favoritos no laboratório, para que ele analisasse”, conta Ana.
“Tais revelações ampliam o espectro da ligação complexa do círculo inglês com a ciência nascente, e debates como aquele entre empiristas e racionalistas começam a perder sentido”, acredita Rattansi. Segundo o professor, os achados obrigam a uma revisão das origens intelectuais da ciência dos séculos XVI e XVII. “A ciência aristotélica estava desacreditada como estéril. Houve então uma cisão entre a ‘filosofia mecanicista’, baseada em Galileu e Descartes, e grupos heterogêneos de ‘filósofos da natureza’, em especial neoplatonistas e herméticos. As diferenças entre os grupos não eram tão acentuadas: eram antiaristotélicos; defendiam a observação, a experimentação e a experiência em detrimento da razão abstrata; preconizavam que ciência e religião apoiavam-se uma na outra; ambos sonhavam em elevar e espalhar o conhecimento sobre a natureza para fins práticos”, analisa o professor.
Mas enquanto um grupo entendia que por trás de todas as mudanças na natureza havia o mecanismo da matéria em movimento, os outros viam essas alterações como o jogo de simpatias e antipatias secretas, agindo a distância. “Para os mecanicistas, havia uma divisão entre o mundo inanimado da matéria e aquele da alma e da inteligência. Já os herméticos criam que tudo possuía vida e entendimento. Em resumo: as crenças se dividiam entre os que tinham uma cosmovisão mágica e encantada, plena de acontecimentos prodigiosos, e os mecanicistas, que optaram pela visão de um mundo sóbrio, desencantado e preocupado principalmente com o curso cotidiano da natureza”, explica Rattansi.
Pouco antes da Revolução Gloriosa, a ciência hermética tomou conta da Inglaterra, por conter o ideal de uma nova filosofia natural como parte de um grande projeto reformista, o que explica a harmonia inicial entre correntes poderosas da revolução e os herméticos, e os puritanos foram em parte responsáveis pela divulgação dessa visão encantada e reformadora. Em tempos de guerra, fome e miséria, uma corrente que preconizava a realização de feitos para melhorar a vida cotidiana, a agricultura, a educação e a saúde de todos tinha grande apelo popular. Logo alguns grupos começaram a pregar reformas intensas, como Samuel Hartlib e seu Colégio Invisível, apoiado nas máximas do tcheco Jan Comenius, que foi convidado a ir à Inglaterra, onde escreveu extensamente sobre educação com ideias que combinavam alquimia e filosofia natural. Entre as propostas estava a criação de universidades em todas as cidades. Mesmo Boyle e outros que viriam a fundar a Royal Society, simpatizantes da causa de Comenius, começaram a temer pela ordem e estabilidade nesse clima de sectarismo.
© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY
Decreto de criação da Royal Society com a efígie do rei Charles II
A Inglaterra passou a ser invadida desta vez pelas novas doutrinas “sóbrias” de Descartes e de Gassendi, com um número notável de conversões à ciência mecanicista, que passou a ser apreciada como a mais apropriada, uma grande síntese entre teologia e filosofia natural: se o Universo era como uma máquina, a doutrina aponta para o seu criador. “Na Inglaterra do século XVII era usual o estudo da filosofia natural se harmonizar com a visão mística e teológica do mundo. Daí a reverência de Newton, mas não apenas dele, como sabemos agora, àprisca sapientia, o conhecimento dos clássicos que ele e outros acreditavam ser verdades reveladas por Deus aos primeiros habitantes da Terra”, diz Rattansi.
Assim, continua o professor, os achados das pesquisadoras reforçam essa perspectiva revisionista da revolução científica, pois, mesmo após a aceitação das explicações mecanicistas, os problemas que chamavam a atenção de figuras racionais como Newton e Boyle eram os mesmos que preocupavam os herméticos: a transmutação e o alkahest; a ação do pó de simpatia; a influência das constelações sobre os homens; e o uso de fórmulas magistrais com fins medicinais. “O que se encontra nos arquivos da Royal Society são lembranças salutares das muitas correntes que concorreram para a revolução científica do século XVII. São lembranças de em que medida criadores da ciência moderna, como Newton, ainda usavam a tradição hermética junto à nova filosofia natural”, observa Rattansi.
“Os problemas médicos sempre lideraram os interesses, e os médicos sempre foram uma comunidade abrangente. As pessoas que olhavam para um contexto maior, como Isaac Newton, sempre existiram em menor número, mesmo nos séculos XVII, XVIII e XIX. Por exemplo, em 1820, havia apenas 100 pessoas nessa ilha para realizar pesquisa. A ciência não era vista como algo que pudesse resolver os problemas da tecnologia ou da medicina, por isso não havia investimento em capital humano para trabalhar nessas áreas”, lembra o historiador Frank James, presidente da Royal Institution.
“Está claro que o trabalho de Newton relacionado à força e à gravitação está associado às experiências com a alquimia, exatamente porque esses conceitos não estavam contemplados no pensamento filosófico daquele período. E esse é o motivo que faz com que outros autores tenham problema com as ideias de Newton, posto que eles não necessariamente reconhecem como legítimas as origens de seus postulados. Somente Newton sabia da validade de seus estudos porque muito se baseava nos seus trabalhos como alquimista”, analisa James. “Newton só fez as descobertas que realizou ao lançar mão de todas as maneiras de conhecimento, o que permitiu que visse o que pensadores ‘racionais’ não conseguiram enxergar”, concorda Rattansi.
© JOANNA HOPKINS / ROYAL SOCIETY
Selo da instituição com a frase Nullius in verba: não se confia apenas nas palavras, mas nos experimentos
O historiador Michael Hunter, do Birbeck College, Londres, vê “exagero e inconsistência nessas afirmações”. Alguns membros individuais podem até ter se aventurado na alquimia ou na busca por curas milagrosas, mas deixavam isso de lado quando se reuniam na Royal Society, que marginalizava buscar mágicas em detrimento do estudo da filosofia natural, da qual a instituição foi a maior propagadora publicamente”, avisa Hunter. “É preciso lembrar que a Royal Society funcionava como uma entidade corporativa e teve um papel fundamental em estabelecer as fronteiras do que era ou não ciência”, observa. Segundo ele, nos artigos do Philosofical transactions tais alquimias eram tratadas de forma tangencial, quando se falava delas. Era um ponto de honra para o seu editor, Henri Oldenburg, que rejeitava “magias”. “Encontramos raramente investigações de laboratório ligadas à alquimia, até mesmo porque o público intelectual da época rejeitava coisas sobrenaturais e entrar nessa seara significaria sujar a reputação de quem o fizesse”, analisa Hunter. Vale lembrar, no entanto, que as pesquisadoras encontraram um documento, escrito por Oldenburg, listando “as experiências feitas na Royal Society na presidência de Sir Murray”, entre as quais o alkahest.
Seja como for, o ponto mais importante nessa história que, hoje, pode passar despercebido é a padronização dos modos de pensar e operar no laboratório. “Num mundo em que a alquimia trabalhava com teorias e receituários sigilosos, cada grupo de estudiosos tinha diferentes formas de pensar e operar sobre a matéria. O trabalho da Royal Society e de Oldenburg, então, pode ser visto como uma forma de reunir esses grupos dispersos e estabelecer padrões de trabalho no laboratório que pudessem ser repetidos como reza a ciência moderna”, diz Ana.
Isso está presente na correspondência do secretário com o médico hermético veneziano Francesco Travagino. Oldenburg descobre que o amigo italiano convertera mercúrio comum em prata pura e desejava ter a receita. Ao enviá-la, Travagino lamenta ser incapaz de repetir o feito. A resposta de Oldenburg revela os anseios da época em encontrar um rumo moderno para a ciência do laboratório: para ele, uma das maiores dificuldades em qualquer procedimento era ter como um dos raros parâmetros a origem do material. “Assim como Boyle, Oldenburg pensava em padrões claramente definidos, de forma que o experimento pudesse ser reproduzido e universalmente aceito”, observa Márcia. As cartas revelam que o primeiro-secretário da Royal Society talvez tenha sido mais do que intelligencer trocando ideias com grandes figuras como Boyle. Um imigrante sempre visto com desconfiaça e ciente de sua posição como secretário, Oldenburg preferiu compartilhar suas ideias e possível experiência de laboratório com outros membros dessa sociedade. Com isso teria obtido em troca um posto oficial e um salário mais digno.
Partimos, então, para um novo mistério, sobre a possível ingestão de preparados herméticos por figuras notáveis da época, com desfechos dramáticos. As pesquisadoras investigam a história para contá-la com documentos.

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