Wednesday 5 February 2014

Nas origens da filosofia contemporânea

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Nas origens da filosofia contemporânea

Kierkegaard foi um filósofo rigoroso cuja contribuição no âmbito da filosofia dos séculos 19 e 20 ainda está para ser aferida
Gabriel Ferreira da Silva
“Durante minha visita a Freiburg, sabendo que eu nunca havia lido Kierkegaard, Husserl começou não a pedir, mas a ordenar – com enigmática insistência – que eu tomasse contato com as obras do pensador dinamarquês. Como podia ser que um homem cuja vida havia sido a celebração da razão devesse conduzir-me ao hino de Kierkegaard ao absurdo? Husserl certamente parece ter tido contato com Kierkegaard apenas durante os últimos anos de sua vida. Não há evidência em seus trabalhos de familiaridade com nenhum dos escritos do autor de Ou isto ou aquilo. Mas parece ser claro que as ideias de Kierkegaard impressionaram-no profundamente.”
Que Kierkegaard tenha sido uma influência fundamental no pensamento do filósofo russo Leon Shestov (1866-1939), que nos relata o episódio acima, não é novidade alguma. Mas que tenha sido o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) que, por assim dizer, os apresentara é, no mínimo, curioso. Embora Shestov pinte com cores demasiadamente fortes a diferença entre os pensamentos de Kierkegaard e de Husserl, é verdade que dificilmente os dois filósofos apareçam num mesmo contexto. Mas, se a caracterização de Kierkegaard por Shestov como um opositor da racionalidade e um apologeta do absurdo é exagerada, é fato que esses clichês conheceram vida longa no que diz respeito ao modo como o filósofo dinamarquês foi lido e compreendido. Exatamente por isso é que surpreende, de certa maneira, ver Husserl recomendando efusivamente a leitura de Kierkegaard.
Kierkegaard irracionalista?
A avaliação da contribuição de Kierkegaard para os problemas filosóficos próprios aos séculos 19 e 20 é quase que exclusivamente mediada pela visão que se tem dele como essencialmente irracionalista e crítico severo de qualquer filosofia rigorosa, donde os efeitos e consequências de sua obra só podem se fazer sentir num escopo muito restrito. A ele restou, portanto, ser o “pai do existencialismo”, o “contemplador inocente do paradoxo”, o “defensor inconsequente da fé de Abraão” e alguém cujo pensamento só ganha vida e força pelo pitoresco presente em sua biografia. À filosofia dita séria, Kierkegaard nada teria a dizer, já que, como afirma mesmo Sartre, sua filosofia é uma antifilosofia, e sua crítica é como um grito do indivíduo existente contra a opressão acachapante da Razão. No entanto, será que essa recepção faz jus inteiramente a alguém que estudou filosofia na universidade por dez anos, sendo conhecedor de grego e latim, descrevendo-se a si próprio como extremamente influenciado pelos filósofos antigos, mas citando, ao mesmo tempo, Kant, Spinoza, Leibniz, Lessing, Fichte, Hegel e Schelling? Não se trata de fazermos aqui uma acusação de injustiça histórica, mas não podemos nos furtar à constatação de que, se por um lado os ecos do pensamento de Kierkegaard na teologia são amplamente conhecidos e reconhecidos, no que diz respeito à filosofia, grande parte dessa história ainda está por ser escrita. Isso se deve, em larga medida, ao fato de que aquele estranhamento que nos surge ao pensarmos, por exemplo, em um Husserl leitor de Kierkegaard provém de certa caricatura de seu pensamento e da forma com que julgamos compreender sua relação com a filosofia. Assim, pode ser elucidativo remontar a alguns aspectos tão fundamentais quanto esquecidos.
Em 1841, após defender a tese sobre O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, que lhe conferiu o título de magister, Kierkegaard faz sua primeira viagem a Berlim, onde frequenta as aulas de Schelling. Contudo, relembrando esse evento alguns anos mais tarde, Kierkegaard faz a seguinte avaliação de sua estada berlinense em seus diários: “Na primeira vez que fui a Berlim, Trendelenburg era o único que eu não me animei a ouvir – para ser exato, ele foi descrito como sendo um kantiano. E eu praticamente ignorei o jovem sueco que viajava comigo e que pretendia estudar apenas com Trendelenburg. Oh, tola opinião à qual eu estive preso naquela época” (Papirer VIII1 A 18, 1847).
Kierkegaard e Trendelenburg
Mas quem foi Trendelenburg? Filósofo, filólogo e tradutor alemão, Friedrich Adolf Trendelenburg (1802-1872) foi um dos principais articuladores da oposição à lógica de Hegel. Seu opúsculo A questão lógica no sistema de Hegel, de 1843, deu não só as contribuições fundamentais para a discussão sobre o papel e a função da lógica no período após a morte de Hegel, como deu o nome pelo qual esse movimento ficou conhecido. Entre aqueles que assistiram a suas aulas e os indiretamente influenciados por ele estão nomes centrais que fazem com que, a partir de Trendelenburg, seja possível identificar uma miríade de problemas e relações ab- solutamente determinantes para se compreender toda a filosofia de fins do século 19 e, consequentemente, do 20. Movido pela intensa retomada de Aristóteles empreendida por Trendelenburg, Franz Brentano (1838-1917), um de seus mais notáveis discípulos, foi peça-chave para a fenomenologia de Husserl, que, por sua vez e não por acaso, confere à sua obra magna o mesmo título do principal livro de Trendelenburg: Investigações lógicas. Por sua vez, Hermann Cohen (1842-1918), nome basilar do neokantismo e aluno de Trendelenburg, publicou em 1871 um longo ensaio sobre a controvérsia entre Trendelenburg e Kuno Fischer. Tal controvérsia acerca da interpretação da Estética Transcendental de Kant era conhecida por Gottlob Frege (1848-1925), que, pela leitura da coletânea de ensaios de Trendelenburg em três volumes, intitulada Contribuições históricas à Filosofia, tomou contato com o ensaio deste sobre Leibniz. É nesse texto que Frege encontra o termo cunhado por Trendelenburg para descrever a characteristica universalis de Leibniz e que assume como nome de seu próprio sistema: Begriffsschrift (conceitografia). Como se pode ver, mesmo as correntes analítica e hermenêutico-fenomenológica da filosofia moderna e contemporânea, ditas tão diversas, encontram em Trendelenburg um ponto de convergência, não meramente histórico, mas com profunda coesão temática.
Todas essas relações são, em maior ou menor grau, conhecidas por aqueles que se dedicam às origens da filosofia contemporânea. Todavia, a presença de Kierkegaard no desenvolvimento de problemas daquele momento é praticamente ignorada. Na mesma entrada já citada de seus Papirer, Kierkegaard afirma: “Não há filósofo moderno do qual eu tenha aproveitado tanto quanto de Trendelenburg. [...] Minha relação com ele é muito especial. Parte do que me interessou por um longo tempo é a doutrina das categorias. E agora Trendelenburg escreveu dois tratados sobre a doutrina das categorias que eu estou lendo com o maior interesse”. E não ficou nisso: além da referida obra sobre a doutrina das categorias, havia na lista dos livros constantes da biblioteca de Kierkegaard sete outras obras do filósofo alemão lidas com afinco pelo dinamarquês.
Se um Husserl leitor de Kierkegaard já pode causar espanto, o que dizer então de um Kierkegaard interessado pelos problemas das categorias? Ou então, como entender, com base numa leitura que não abandona os pressupostos banais sempre repisados, a discussão sobre os conceitos de movimento e de negação na Lógica, presentes em um livro cujo título parece absolutamente avesso a tais assuntos como O conceito de angústia, no qual Kierkegaard, ao tratar de tais temas, planejara enviar o leitor àquilo que ha- via de melhor sobre o assunto, a saber, o opúsculo de 1843 de Trendelenburg (cf. Pap. V B 49:6, 1844)? Para aqueles que leem Kierkegaard apenas a partir de certa matriz irracionalista, talvez cause ainda mais surpresa saber que ele trabalhara o projeto do Pós-escrito conclusivo não-científico às Migalhas filosóficas (1846) – aquela que seria sua obra considerada por ele mesmo como ponto de viragem – sob o título provisório de Problemas lógicos. Entre os problemas fundamentais que norteariam o novo livro, Kierkegaard listara em seus rascunhos: “O que é uma categoria? O que significa dizer que ‘ser’ é uma categoria?”, “Como uma nova qualidade aparece através de um incremento quantitativo?”, e, evidentemente, “O que é existência?” (cf. Pap. VI B 13).
Embora não seja possível desenvolver aqui o percurso desses problemas na obra de mais de 600 páginas, tampouco os ecos na totalidade de sua produção, o que indicamos já nos parece ser suficiente para apontar que Kierkegaard não estava à margem do universo de questões que condicionou o panorama filosófico de sua época. De fato, falecido em 1855, Kierkegaard não chegou a ver o Anti-Trendelenburg de Kuno Fischer (1870), nem a Psicologia do ponto de vista empírico, de F. Brentano (1874), a Conceitografia de Frege (1879) ou as Investigações lógicas de E. Husserl (1900-1901), todas, cada uma a seu modo, influenciadas por Trendelenburg. Da obra principal deste, não conheceu senão a primeira edição das Investigações lógicas, publicada em 1840. Contudo, caso tivesse a oportunidade de folhear a terceira edição, de 1870, talvez desse um sorriso irônico ao ler o prefácio do autor explicitando o significado do título programático, oposto àquele intento hegeliano de erigir uma “Ciência da Lógica”; ao invés disso, tratava-se apenas de despretensiosas “Investigações”. Ora, não é exatamente isso que Kierkegaard tinha em mente ao intitular seu “panfleto” de 1844 de Migalhas filosóficas? E a sequência do mesmo projeto, o Pós-Escrito, como declaradamente “não-científico”?
Assim, se é verdade que Kierkegaard é grande por explicitar com lirismo invejável aquelas prementes questões pelo sentido existencial último ou, ainda, tenha reafirmado a radicalidade do cristianismo, cumprindo a missão que se autoimpusera de mostrar que, ao contrário do que se podia pretender, aderir a ele era tarefa das mais difíceis, não é menos verdade que Kierkegaard foi um filósofo rigoroso cuja contribuição no âmbito da filosofia dos séculos 19 e 20 ainda está para ser aferida e a quem as palavras do autor pseudonímico de seus Prefácios poderiam ser usadas a título de epígrafe: “desde a juventude eu amei a filosofia”.
Gabriel Ferreira da Silva é doutorando na Universidade do Vale do Rio dos Sinos

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