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http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=96&id=1170
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Visões sobre a vida e obra de Darwin: conhecendo Charles e sua “ideia perigosa” | |
Por Valdir Lamim-Guedes e José Costa Júnior 10/02/2014 | |
Em 12 de fevereiro de 1809, nascia Charles Robert Darwin, uma das personagens mais marcantes da história da ciência. 50 anos depois, em 1859, era publicada sua obra de maior destaque: On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life, popularmente conhecida em português como A origem das espécies. Darwin faleceu em 19 de abril de 1882, aos 73 anos.
O destaque para a figura de Darwin deve-se ao fato de ser considerado o “pai da teoria da evolução”, apesar de não ser o primeiro a propor que as espécies não são fixas, ou seja, elas mudam – evoluem. Sobre o alcance da hipótese científica, Daniel Dennett (2005) afirma, em seu livro A perigosa ideia de Darwin, que a teoria da evolução pela seleção natural é o ácido universal que perfura quase todos os conceitos tradicionais e deixa na sua esteira uma visão do mundo revolucionada, com a maioria dos antigos marcos ainda reconhecíveis, mas transformados de maneira fundamental.
No ano de 2009, celebraram-se os 200 anos de nascimento de Darwin e os 150 anos da publicação de A origem das espécies. Com isto, a vida e obra desse naturalista inglês ganhou destaque ainda maior, incluindo o lançamento de dezenas de livros no exterior e no Brasil, desde livros científicos de grande extensão, até publicações de divulgação científica, como A goleada de Darwin: sobre o debate criacionismo/darwinismo, do brasileiro Sandro de Souza, e revistas como Science e Nature destinaram suas capas ao aniversário. Houve a realização de uma extensa programação ao longo do ano, comoDarwin’s Day, seminários e exposições em universidades, museus de ciência e técnica e outros espaços, em diversos países.
Capa da revista Science de janeiro de 2009 com imagem de Darwin jovem.
O naturalista inglês também foi retratado em filmes e documentários, como o longa-metragem Creation (Criação, 2009), que retrata o lado pessoal de sua vida, com cerca de 40 anos, com vários problemas de saúde e psicológicos, atormentado pela perda da filha, pela dúvida sobre sua crença em Deus e às voltas com os desafios experimentais da estruturação de sua principal teoria.
Charles Darwin escreveu 16 livros. Ao somar artigos e notas científicas dos quais ele é autor ou coautor e as traduções de sua obra, tem-se 450 itens (Freeman, 1977). Além desse registro oficial, deixou cadernos de anotações que elucidam o desenvolvimento da teoria, assim como os relatos da viagem de volta ao mundo realizada entre 27 de dezembro de 1831 e 2 de outubro de 1836 a bordo da embarcação HMS Beagle.
Entretanto, o principal e maior registro escrito não publicado são suas cartas a cerca de 2000 pessoas, entre figuras públicas, naturalistas e familiares. Essas cartas contêm fatos pessoais, assim como troca de informações científicas e discussões sobre diversas teorias. O Darwin correspondence project (2014) já reuniu cerca de 15 mil cartas, das quais 1400 são entre Darwin e Joseph Dalton Hooker (1817–1911), diretor do Jardim Botânico Real de Kew, nos arredores de Londres, Reino Unido. Um dos remetentes era o alemão Johann Friedrich Theodor Müller (1822-1897), mais conhecido como Fritz Müller, que vivia no Brasil, em Santa Catarina, e publicou, em 1964, o livro Für Darwin(ParaDarwin), sobre seus estudos com crustáceos da região catarinense, estudos que corroboravam a teoria darwiniana. Darwin escreveu-lhe 58 cartas em 17 anos, a última 15 dias antes de sua morte.
O volume de fatos e registros sobre a vida de Darwin possibilita que biografias em diferentes formatos – como livros, filmes, documentários, artigos científicos – abordem aspectos diversos. Assim, o contato com várias dessas obras permite a construção de uma visão mais integral. Exemplo disto é o destaque atual para a viagem a bordo do Beagle, bem como para o período que reúne a educação familiar e universitária. Ao focar nessa fase da vida, as biografias retratam-no jovem e quase sempre bem disposto, contrapondo-se à figura mais difundida sobre ele, de um senhor com longa barba branca e olhar triste.
Acontecimentos ou trechos de sua obra, cartas ou cadernos de anotações possibilitam diferentes interpretações. Em uma anotação de 1837, Darwin fez um diagrama representando o parentesco entre diferentes espécies com um ancestral comum. No alto da página, escreveu “I think” (“eu acho”), reconhecendo sua incerteza sobre o raciocínio. Tal nota é tomada por evolucionistas como um dos primeiros registros daquilo que Darwin apresentaria em 1859. No entanto, autores que contestam a teoria da evolução darwiniana assumem que esse sinal de dúvida, na verdade, deve-se à falsidade ou fraqueza dessa teoria.
Página do caderno de anotações B, de 1937, de Charles Darwin.
Esse tipo de divergência gera distintas interpretações nas biografias, incluídos muitos mitos acerca do biografado. Por exemplo, a obra A origem das espécies, é comumente descrita como um grande sucesso de vendas, entretanto tal sucesso inicial deve-se à uma feira para livreiros, ou seja, a grande venda foi para distribuir a obra, não diretamente ao público (Bizzo, 2009).
Um aspecto retratado em muitas biografias de Darwin é de que o naturalista seria racista e que desenvolveu a teoria evolutiva a fim de justificar a escravidão. De fato, a teoria darwiniana foi usada com esse fim, mas não por ele. Essa suposição deve-se aodarwinismo social, cujo principal teórico foi o britânico Herbert Spencer (1820-1903), que trata da aplicação da teoria evolutiva darwiniana às sociedades humanas, sendo uma das bases da eugenia e, em certa medida, foi usada no nazismo e para justificar a escravidão. No entanto, afirmar que Darwin era escravagista é retirar da discussão dois pontos essenciais: ele foi criado em um ambiente abolicionista e ficou perplexo com a cena, presenciada no Rio de Janeiro, de um negro sendo torturado:
“Espero nunca mais voltar a um país escravagista. O estado da enorme população escrava deve preocupar todos que chegam ao Brasil. Os senhores de escravos querem ver o negro como outra espécie, mas temos todos a mesma origem num ancestral comum. O meu sangue ferve ao pensar nos ingleses e americanos, com seus ‘gritos’ por liberdade, tão culpados de tudo isso” (Haag, 2009).
A posição abolicionista darwiniana é abordada no extenso livro A causa sagrada de Darwin (Desmond e Moore, 2009), no qual, com base na leitura das correspondências e de anotações, os autores afirmam que “a evolução humana não foi a última peça do quebra-cabeça de Darwin, mas sim a primeira”. Os pesquisadores buscam, nesse volume, amparados em ampla pesquisa documental, mostrar que uma causa humanista muito profunda levou Charles Darwin a desenvolver a teoria científica mais extraordinária sobre a origem e a manutenção das espécies.
Os autores apresentam a tese de que o horror de Darwin à escravidão foi uma motivação de fundo para que o naturalista concebesse a teoria da evolução por meio da seleção natural. Nesse sentido, essa motivação inicial deu-se, em parte, devido à intensa preocupação de Darwin com a unidade da espécie humana e uma ampla noção de irmandade entre os homens. A brutalidade da escravidão, que transformava os negros em outra espécie, uma “besta a ser algemada”, revoltava Darwin, sentimento que foi a base para a desconfiança de que podemos todos ter uma mesma origem.
Desmond e Moore também escreveram a principal biografia do cientista, Darwin: a vida de um evolucionista atormentando (2000), desconstruindo a imagem projetada da figura de um profeta, com barba branca e olhar pensativo. Essa imagem retrata uma ideia do senso comum de que, num rompante de sabedoria contemplativa, ele teria comungado com as forças da natureza e trazido as tábuas da lei da evolução para nós. Nada mais distante da situação de Darwin, que era um sujeito do seu tempo, tão imerso nas realidades da Inglaterra vitoriana quanto industriais e políticos.
Um retrato bem mais realista do homem por detrás do mito aparece com clareza nas páginas dessa biografia. Assim, antes de vermos Darwin envelhecido, temos um jovem britânico explorando a Mata Atlântica ou levando a vida de homem do campo nos Pampas argentinos. Mas vemos, acima de tudo, que a evolução não era só uma questão científica ou (como muitos a retratam) religiosa: também era uma questão política e social. O livro aborda, de forma detalhada, a relação dele com a religião instituída e suas posições com a figura de Deus, mostrando seus conflitos e soluções.
A vida e obra de Darwin não têm sido tratadas apenas por cientistas evolucionistas, historiadores e jornalistas, mas também por opositores de sua teoria, religiosos que atacam sua obra e seu legado. Esses autores falham ao “esquecer” de detalhes e, com isso, tem-se uma visão equivocada, como é o caso do livro O engano do evolucionismo(Yahya, 2007), assinado por um turco mulçumano, no qual o cientista é descrito como um “amador” e que nunca teve uma educação formal em biologia. “Ele tinha apenas interesse amadorístico em coisas relacionadas com a natureza e os seres vivos. (...) A hipótese de Darwin não se baseou em qualquer descoberta ou experimento científico. No decorrer do tempo, entretanto, ele a tornou em uma pretensiosa teoria com o apoio e encorajamento que recebeu de famosos biólogos materialistas da época” (p. 20).
Esse tipo de afirmação supõe que o grande volume de documentos deixados por Darwin foi desconsiderado. O livro traz um mistura de devaneios e erros sobre teorias científicas. Por outro lado, autores ligados aos movimentos do designer inteligente e do criacionismo científico traçam um perfil mais adequado, mas, ainda assim, incompleto. Por exemplo, Stephen Meyer (2009) retrata um Darwin em consonância com o seu tempo por responder à influência materialista na ciência, relevante na época. Já William Dembski (2004) refere-se ao legado darwiniano como “o maior golpe contra o argumento do design”. No caso desses três grupos religiosos, as biografias apontam os erros de Darwin, destacando problemas em relação aos fósseis, por não retratarem a transição entre espécies, desconhecimento do DNA e do trabalho de Mendel. Fatos explicados de forma satisfatória por cientistas de diversas disciplinas. Por fim, para esses, o maior erro na teoria darwiniana é o não reconhecimento de um ente superior responsável pela criação e evolução da vida.
Biografias produzidas em diferentes mídias sobre a vida de Darwin, bem como sobre qualquer personagem, devem ser pautadas pela seriedade, uso do acervo pessoal e materiais correspondentes à época e com o mínimo de influência ideológica, buscando neutralidade. Esse comportamento é essencial para a construção de uma imagem adequada desse e de outros grandes gênios, tendo desdobramentos, por exemplo, no ensino de ciências e interpretações condizentes com o legado darwiniano, uma herança que transformou para sempre o modo como vemos a nós mesmos a ao mundo.
Valdir Lamim-Guedes é aluno do programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Jornalismo Científico da Universidade Estadual de Campinas. Email:lamimguedes@gmail.com
José Costa Júnior é doutorando em filosofia da UFMG. Email:jose.costajunior@yahoo.com.br
Referências:
Bizzo, N. “Revendo alguns temas darwinianos: mitos e verdades no relato de Huxley e Kettlewell”. In: Landim, M., Moreira, C. Charles Darwin: em um futuro não tão distante. São Paulo: Instituto Sangari, 2009.
Darwin Correspondence Project. University of Cambridge, 2014. Disponível em www.darwinproject.ac.uk Dembsky, W. A. The design revolution: answering the toughest questions about intelligent design. Downers Grove: InterVarsity Press, 2004. Dennett, D. A perigosa ideia de Darwin. São Paulo: Rocco, 1995. Desmond, A., Moore, J. A causa sagrada de Darwin: raça, escravidão e a busca pelas origens da humanidade. Rio de Janeiro: Record, 2009. Desmond, A., Moore, J. Darwin: A vida de um evolucionista atormentado. São Paulo: Geração Editorial, 2000. Freeman, R. B. The works of Charles Darwin: an annotated bibliographical handlist. Dawson: Folkstone, 1977. Haag, C. O elo perdido tropical. Pesquisa Fapesp. Maio de 2009. Meyer, S. C. Signature in the Cell: DNA and the evidence for intelligent design. Nova York: HarperCollins, 2009. Yahya, H. O engano do evolucionismo. Brasília: Sociedade Criacionista Brasileira, 2007. |
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