Thursday 21 February 2019

Darwin no Brasil - Encanto com a natureza e choque com a escravidão

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Darwin no Brasil - Encanto com a natureza e choque com a escravidão

Na passagem pelo Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, Darwin descobre um mundo novo de sedução e horrores


Ulisses Capozzoli
Desenho: © Cortesia do Sr. G. P. Putnam. O Correio da Unesco /Divulgação
Charles Darwin, em quem os críticos religiosos enxergaram um deturpador das revelações bíblicas, foi interpretado como o homem que verdadeiramente abriu as páginas do livro da criação, como sugere esta ilustração em bico de pena.
Em 27 de dezembro de 1831, depois de ser deslocado duas ou três vezes por ventos contrários, o HMS Beagle, um brigue com 10 canhões sob o comando do capitão Fitz-Roy deixou a localidade de Davenport, no sudoeste da Inglaterra, para uma viagem de quatro anos e nove meses ao redor do mundo. Um personagem, que a história tornaria o passageiro mais importante a bordo do Beagle, tinha pouco mais de 22 anos e havia sofrido alguns reveses profissionais antes de se envolver com a história natural. Charles Robert Darwin (Shrewsbury, 12 de fevereiro de 1809 – Downe, Kent, 19 de abril de 1882) cujo nome seria sinônimo de evolucionismo, ainda era um criacionista despreocupado quando o Atlântico se abriu à sua frente para a viagem que reformularia não apenas suas convicções pessoais, mas mudaria profundamente toda a história da ciência.

Darwin fez uma parada no arquipélago de Cabo Verde, onde registrou minuciosamente suas observações e se impressionou com o arquipélago de São Pedro e São Paulo, antes de passar por Fernando de Noronha. Mas foi no Rio de Janeiro, especialmente por uma incursão de alguns dias pelo interior, que pôde sentir a diversidade de Natureza que deveria conhecer antes de, inteiramente conta a vontade, tornar-se um evolucionista.

Em Viagens de um naturalista ao redor do mundo (Voyage of a naturalist round the world), onde faz um detalhado registro de sua longa exploração, Darwin dedica menos de dez páginas a Salvador, na Bahia, aonde chegou em 29 de fevereiro de 1833, para uma estada curta, mas já fascinado pela exuberância da natureza tropical.

Em 4 de abril o Beagle atracou no Rio de Janeiro e aí começaram as descobertas que, do ponto de vista natural, seduziram e encantaram o jovem naturalista, ainda que, do ponto de vista social tenham sido motivo de frustração, desencanto e, em alguns momentos, de completo horror.
Divulgação / Casa da Ciência
Visita que seduziu Darwin pelo interior do Estado do Rio de Janeiro foi mapeada e permite que interessados possam conhecer tanto o itinerário como fazendas remanescentes do início do século 19.
Em seus registros no Rio, Darwin anota que “poucos dias depois de nossa chegada, conheci um inglês que se preparava para visitar suas propriedades, situadas a pouco mais de 100 milhas [160 km] da capital, ao norte de Cabo Frio. Ele teve a gentileza de me convidar como companhia, o que aceitei com prazer”.

A incursão começou em 8 de abril, formada por uma equipe de sete pessoas. Darwin conta que em meio a um calor intenso o silêncio da mata é completo, quebrado apenas pelo vôo preguiçoso de borboletas. A vista e as cores na passagem de Praia Grande [atual Niterói] absorve toda a atenção de Darwin ao menos até o meio-dia, quando o grupo pára para almoço em “Ithacaia”, aldeia cercada por choças ocupadas por negros escravos.

Com a lua cheia, que nasce cedo no céu, o grupo decide prosseguir viagem para dormir na “Lagoa Maricá” e, no trajeto, passam por regiões escarpadas, entre elas uma meseta em torno de onde escravos formaram quilombos, a que Darwin se refere genericamente como refúgio. Aí, reproduz um relato que diz ter ouvido de alguém. Um grupo de soldados teria sido enviado para recuperar esses fugitivos e todos se renderam, à exceção de uma mulher, já velha, que se atira contra as rochas. Então, ele faz uma das observações que revelam sua profunda repulsão à escravidão que tem diante dos olhos: “Praticado por uma matrona romana esse ato seria interpretado e difundido como amor à liberdade, mas da parte de uma pobre negra, se limitaram a dizer que não passou de um gesto bruto”.
Brasil. El Corcovado, en Rio de Janeiro/Reprodução
Entrada da casa que Darwin ocupou, na base do Corcovado, onde observou, sistematicamente, de insetos à natureza geológica, passando pela sonoridade das chuvas tropicais ressoando na folhagem da floresta densa.
Música da natureza
Nas últimas horas de viagem a cavalo, Darwin relata que “o caminho ficou cada vez mais difícil, porque atravessa uma terra selvagem e pantanosa”. O grupo viaja na região hoje conhecida como serra da Tiririca, atravessando a área das atuais cidades de Maricá, Saquarema, Araruama, São Pedro d’Aldeia, Cabo Frio, Casimiro de Abreu/Barra de São João, Macaé, Conceição de Macabu, Rio Bonito e Itaboraí.

Insetos luminosos, provavelmente vaga-lumes, segundo o relato, voam em torno do grupo de viajantes e o silêncio da noite permite que se ouça o quase indistinto rugido longínquo do mar.

Antes que o Sol nasça, no dia seguinte, a viagem recomeça, na seqüência de um pouso no que Darwin classifica de uma “choça miserável”. O calor crescente do dia que avança é amenizado pela observação de uma diversidade de aves pescadoras, entre elas as garças- reais, orquídeas e formações vegetais, compartilhada pelo perfume da floresta. Ao menos até a parada para almoço numa “venda” de construção franciscana, sem sequer vidro nas janelas, o que chama a atenção de Darwin. O diálogo inicial com o proprietário é amistoso, mas à medida que prossegue, Darwin se sente cada vez mais constrangido.

– Poderia nos servir um pescado? – pergunta ele, e a resposta é:
– Oh!, não senhor.
– E sopa?
– Sinto muito senhor.
– E pão?
– Não temos, senhor.

Generalizando para experiências posteriores, Darwin conta que, de modo geral, podia dar-se por muito satisfeito se, ao final de uma espera de duas horas pelo menos, fosse possível comer carne de galinha, arroz e farinha. E em alguns casos era preciso ajudar a matar as galinhas a pedradas, antes da refeição. Famintos e cansados, quando timidamente queriam saber se as refeições demorariam, com freqüência ouviam como resposta:

– A comida estará pronta quando estiver.
Em caso de queixa, contra a rispidez do tratamento, a resposta que se ouvia era que continuassem a viagem. Darwin registra com pesar que os donos de pousadas “são pouco amáveis, quase sempre bruscos e suas próprias casas e seus parentes com freqüência estão descuidados e sujos. As hospedarias não têm facas, garfos ou colheres, o que o convence de que “seria difícil encontrar na Inglaterra, um abrigo, por mais pobre que fosse, tão desprovido das coisas elementares”.

Em compensação, na localidade que chama de “Campos Novos” conta que “fomos tratados magnificamente” com oferta de arroz e aves, biscoitos, vinho e licores, incluindo café à tarde e pescado no almoço, além de alimentação para os cavalos por um preço insignificante. Mas aí a surpresa é outra. Quando deram pela falta de uma bolsa e quiseram saber do proprietário se tinha alguma notícia dela ouviram como resposta:

– Como querem que eu saiba disso? – emendado com um – por que não cuidam do que levam? – e uma sugestão: – talvez tenha sido comida pelos cachorros.

Desconforto com a Escravidão
Próximo ao rio das Contas, Darwin recolhe exemplares de conchas com moluscos de água doce e de água salgada, ouvindo dos moradores ser freqüente a invasão de lagoas locais pelas águas do mar. Daí o grupo afasta-se da costa e novamente mergulha na floresta onde formigueiros cônicos, com quase quatro metros de altura, sugerem pequenos vulcões e atraem a atenção de Darwin. Ele se preocupa com os cavalos e se surpreende com as picadas de morcegos hematófagos, sofridas pelos animais.

Ao final de três dias de viagem o grupo chega à Fazenda Sossego, propriedade de certo Manuel Figueiredo, parente de um dos viajantes, conforme registra Darwin. Novamente a rusticidade da construção o deixa desconfortável, mas a alimentação aí é farta e generosa, incluindo a carne de caça.
“Deixando de lado a idéia da escravidão”, registra Darwin em seu diário, “tem alguma coisa deliciosa nesta vida patriarcal, tão absolutamente separada e independente do resto do mundo”. Ele se diverte com a idéia de um pequeno canhão ser disparado para anunciar a chegada de visitantes num ambiente tão isolado.

Na fazenda, Darwin se levanta antes de o Sol nascer para explorar o ambiente sem ser incomodado, e conta que, logo em seguida, chega aos seus ouvidos o canto dos escravos que iniciam o trabalho. Em locais como a Fazenda Sossego, anota “os escravos são felizes em comparação a outras propriedades e têm o sábado e domingo para trabalhar para si próprios, assegurando as necessidades familiares”.

De Sossego o grupo se dirige a uma propriedade situada junto ao rio Macaé, limite do cultivo agrícola naquela direção e onde o proprietário desconhece a área de suas terras. Darwin fica profundamente impressionado com a fecundidade da região e imagina a quantidade de alimentos que poderá produzir num futuro distante. A selva o fascina e as nuvens de vapor d’água que sobem das matas o deixam extasiado, mas daí também irá emergir uma imagem do terror.

Na fazenda junto ao rio Macaé Darwin relata um desencontro, que não detalha, e que por pouco não dividiu pelo menos 30 famílias de escravos, levando filhos e mulheres para venda no mercado carioca, depois de uma convivência de anos. Diz que interesses estritamente financeiros, e não humanistas, evitaram essa cruel separação. Ele suspeita que o proprietário da fazenda nem sequer possa ter se dado conta da brutalidade de seu “ato infame”.

O grupo cruzava um rio, provavelmente, o rio Macaé, conduzido por um negro, quando outra cena relacionada à escravidão chocou Darwin profundamente. O negro tinha alguma dificuldade de comunicação, o que fez com que Darwin tentasse comunicar- se com ele por mímica e outros sinais. Num desses movimentos, conta ele, suas mãos passaram próximo ao rosto do homem, levando-o a acreditar que Darwin estava enraivecido por alguma razão e iria golpeá-lo. O negro abaixou imediatamente as mãos, semicerrou os olhos e dirigiu-lhe um olhar temeroso. Darwin relata o profundo sentimento de surpresa, desconforto e vergonha que se apoderara dele e que jamais iria esquecer.
Sonho Tropical
Darwin e sua equipe permaneceram dois dias na Fazenda Sossego, na viagem de retorno, quando ele se dedicou à coleta de insetos, observações botânicas e conversas com o proprietário que esculpia uma canoa num tronco único de 33 metros de comprimento (110 pés).

Em 19 de abril de 1832 o grupo deixa em definitivo a Fazenda Sossego, retomando o caminho difícil da ida. Nos campos arenosos que percorrem, Darwin diz que a pisada do cavalo no solo arenoso produz o som de um “débil grito”. No terceiro dia da viagem a rota é ligeiramente alterada em direção a uma aldeia (Madre de Deus) onde passa uma das principais estradas do Brasil. A via, no entanto, está em precárias condições e mal dá passagem a carros de boi. Outra cena que chama a atenção de Darwin são as inúmeras cruzes à beira da estrada, que, em vez de marcos de distância, assinalam pontos de mortes por assassinato. Em 23 de abril ele está de volta ao Rio de Janeiro.

O retorno ao Rio marca uma nova fase de êxtase com a natureza e coleta de espécimes animais e vegetais. Nesse período Darwin ficará hospedado em uma casa à beira-mar (cottage) em Botafogo. Sobre essas semanas diz que “é impossível sonhar com algo mais delicioso que essa estada de algumas semanas num país tão impressionante”. “Na Inglaterra”, continua Darwin “os interessados em história natural têm vantagem no sentido de que sempre descobrem alguma coisa que lhes chama a atenção, mas nesses climas tão férteis, repletos de seres animados, para fazer uma caracterização, descobertas novas são feitas a cada instante e são tão numerosas que só se pode avançar com dificuldade”.

O relato que segue, está inteiramente tomado por observações e descrições que chegam a detalhes mínimos. O calor incomoda, mas as chuvas que caem densas e ruidosas compensam todo o desconforto. O convite para uma caçada, feito por um padre português, também é motivo para observações, descobertas e extrapolações, como a habilidade de um garoto malvestido em particular, mas “dos brasileiros de forma geral” no uso da faca, da qual nunca se separam.
A casa no Rio de Janeiro está localizada na base do Corcovado, de onde Darwin acompanha a formação de nuvens, especula sobre a natureza rochosa da formação e relata a chuva densa que desaba numa manhã com sonoridade que lhe era inteiramente desconhecida. Darwin absorve a natureza local com paixão incontida retomando, entre outros relatos, observações sobre insetos luminosos, freqüentes durante a noite.

Também as formigas, mas ainda mais as aranhas, atraem seu interesse e o levam a explorar tanto regiões mais próximas do Corcovado como a visitar o Jardim Botânico, formado com a chegada da corte portuguesa, em 1808, em busca de refúgio contra a invasão da Península Ibérica por tropas napoleônicas.

Em 5 de julho Darwin deixa definitivamente o Rio de Janeiro e o Brasil rumo à Patagônia e à passagem (atual Passagem de Drake) que o levará às Galápagos e às observações que o conduzirão ao evolucionismo. Ainda que a um enorme custo pessoal e ao receio desesperado de, literalmente, implodir os valores de sua época, como se constata nas cartas angustiadas que trocou com sua prima e futura esposa, Emma Wedgwood. No final de 2008, o tetraneto de Darwin, Randal Keynes, conheceu a rota percorrida pelo naturista.

CONCEITOS-CHAVE

- No início da viagem de quase cinco anos que fez pelo mundo e o levou às ilhas Galápagos, no Pacífico, Darwin visitou parte do litoral brasileiro, especialmente o Rio de Janeiro.

- Encanto com a natureza tropical manifestou-se já em Salvador, na Bahia, mas aprofundou-se no Rio, onde fez uma visita a fazendas no interior do estado. Contraponto desconfortável foram observações sobre a escravidão.

- Diversidade e riqueza de observações fazem o relato de Darwin superar as notas de um naturalista e abordar questões de natureza antropológica e de cultura geral.
– Os editores

PARA CONHECER MAIS

A origem das espécies. Charles R. Darwin. Ediouro, 2004.

As cartas de Charles Darwin – Uma seleta , 1825-1859. Editadas por Frederick Burkhardt. Editora Unesp, 1998.

Os herdeiros de Darwin. Marcel Blanc. Editora Página Aberta, 1994.

O Bico do tentilhão – Uma história da evolução no nosso tempo. Editora Rocco, 1995.

Diversidade da vida. Edward O. Wilson. Companhia das Letras, 1994.

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