Sunday 3 February 2019

Brumadinho é culpa da sanha de empresários

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Brumadinho é culpa da sanha de empresários

Acselrad: modelo extrativista desmontou as agências ambientais

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Capa desta semana da Carta Capital (Reprodução/Twitter)
O Conversa Afiada reproduz da Fel-lha deste domingo, 3/II, artigo de Henri Acselrad, professor titular do Ippur (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

Brumadinho evidencia Estado submisso a interesses de empresas, diz autor


Ante o desastre em Brumadinho (MG), algumas falas governamentais iniciais evocam a necessidade de orações. Outras declaram perplexidade diante de fatos há muito e por muitos prenunciados —de peritos criminais a grupos de pesquisa de universidades públicas. Algumas, ainda, dizem nada poder fazer, por tratar-se de evento de responsabilidade privada: “O governo federal não tem nada a ver com isso”.
Ora, o bem público é, por definição, responsabilidade do Estado, e o tal do “meio ambiente” é o mais claro exemplo de um bem estritamente público. Pois, se não for o Estado a cuidar de rios e matas, da qualidade do ar de bacias aéreas e da qualidade das águas fornecidas por sistemas de abastecimento, quem o fará?
Para cuidar desses bens —dos quais depende fundamentalmente a vida da população brasileira— criaram-se leis e instituições ambientais. Estas não foram feitas para arrecadar recursos, mas sim fiscalizar e regular as atividades danosas à vida e à saúde.
E mais: como essas atividades são muitas —é o caso das barragens de resíduos de mineração—, as normas, leis e instituições, no interesse da população, precisam ser não só cuidadas como também fortalecidas.
Tais organismos da máquina pública requerem conhecimento e, sobretudo, autonomia de decisão ante os poderosíssimos interesses que buscam, sobre eles, exercer forte pressão; interesses que prefeririam talvez que esses órgãos nem existissem.
Desde a sua criação, nos anos 1980, até o presente, as agências ambientais do Estado brasileiro —em nível estadual ou federal— vêm sendo objeto de uma gradual desmontagem. A opção de seguidos governos pela manutenção do modelo de desenvolvimento neoextrativista, instalado no país a partir dos anos 1990, foi acompanhada por esforços permanentes no sentido de flexibilizar a aplicação das leis e das normas inicialmente instituídas.
Tratou-se, desde então, de facilitar a instalação no país, a qualquer custo, de empreendimentos intensivos em recursos naturais, isto é, aqueles que exploram para além dos limites os nossos bens comuns.
Entre os fatores de competitividade das exportações brasileiras de commodities, sempre estiveram incluídos componentes não contabilizados nos preços —a fertilidade dos solos, a pureza das águas, entre outros. Para alguns, parcela significativa da “vantagem competitiva” repousa no repasse sem pagamento de partes do patrimônio natural comum que viajam embutidas nas mercadorias exportadas.
Devemos, porém, somar a isso o afrouxamento das condições de segurança de empreendimentos e a mudança do traçado de áreas de preservação, medidas adotadas com o fim de atrair investimentos internacionais que preferem se instalar em países com fraco controle ambiental.
Alguns economistas chamam a isso de “competitividade espúria” —aquela baseada na predação do patrimônio natural e social dos países exportadores (em lugar de uma competitividade com base em investimentos em educação e na criatividade de nossos cientistas).
“Irresponsabilidade organizada” é, por sua vez, o nome que o sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015) deu a essa submissão sistemática dos poderes públicos a interesses privados fortemente dependentes de tecnologias perigosas e intensivas em espaços e recursos naturais. Em nosso caso, espaços e recursos que alguns representantes dos grandes interesses do agronegócio e da mineração desejam subtrair de áreas protegidas —terras indígenas, quilombolas ou unidades de conservação.
Outro atrativo oferecido aos portadores de investimentos intensivos em energia e recursos naturais é a não proteção das populações que trabalham ou vivem em áreas expostas a riscos associados às minas, fábricas ou unidades de produção.
No desastre da Samarco, em 2015, como no da Vale agora, podemos verificar como a desproteção de rios e matas é, ao mesmo tempo, desproteção da população, em especial de grupos sociais e étnico-raciais vulnerabilizados —vítimas preferenciais do descaso.
No caso da mina do Córrego do Feijão, a desproteção ambiental mostra-se associada ao descaso em relação às condições ocupacionais dos trabalhadores, cuja fiscalização era responsabilidade do Ministério do Trabalho, hoje extinto.
A desproteção da população aumentou à medida que investimentos em manutenção de equipamentos e instalações diminuíram e escolhas técnicas menos seguras foram sendo adotadas, de modo a compensar as quedas nos preços dos minérios.
Vemos também que as economias empresariais com gastos de manutenção e a preferência por escolhas técnicas que aumentam a exposição da população a riscos de desastres são validadas pelos mecanismos do que os críticos chamam de “indústria do licenciamento”.
A desconsideração do conteúdo de pareceres independentes e das sinalizações provenientes de lançadores de alerta atentos aos riscos fazem parte desse processo de “organização da irresponsabilidade”. As atuais propostas de substituição do licenciamento público por autodeclarações empresariais são a linha de frente mais agressiva desse processo.
O projeto de lei 3729/04, chamado Lei Geral do Licenciamento Ambiental, veio sendo objeto de inúmeras inserções de bancadas empresariais interessadas em acelerar a recuperação dos investimentos em detrimento do respeito à proteção da saúde e da vida da população e à integridade do ambiente.
A questão ambiental é, por excelência, de ordem política. Ela diz respeito à capacidade de o Estado controlar as forças que pretendem impor usos privados indevidos aos espaços por todos compartilhados das águas, da atmosfera e dos sistemas vivos.
A essas ações governamentais, adotadas para prevenir riscos decorrentes de empreendimentos degradantes e poluentes, costumamos chamar de políticas públicas de meio ambiente. Públicas porque visam prevenir a privatização de fato de tais espaços, cuja integridade é vital a todos que os compartilham.
A ruptura da barragem de Córrego do Feijão é um desastre político, e não meramente técnico. Coloca em discussão toda a estrutura de regulação dos grandes empreendimentos. Ruiu não apenas a barragem, mas a já combalida credibilidade do processo de licenciamento.
Revela-se, de forma calamitosa, a indisposição do Estado em controlar grandes empresas. Ao se colocar, direta ou indiretamente, o processo de decisão nas mãos das próprias empresas, regidas como são pela lógica da rentabilidade privada e da remuneração de acionistas, libera-se que as corporações adotem economias temerárias de custos de manutenção ou opções técnicas que forçam, além da conta, a capacidade de as barragens segurarem os rejeitos.
Vigora nos espaços de poder a concepção de liberar, em nome de “desburocratizar” e “agilizar”, negócios privados para que usufruam dos bens ambientais públicos como melhor lhes convier.
É possível identificar, ademais, a adoção de esforços para neutralizar o debate e reduzir a disposição da opinião pública a ouvir os alertas daqueles que, com questões do ponto de vista do interesse geral da população, procuram acompanhar processos decisórios e legislativos, cobrando informações e precaução dos responsáveis pelos empreendimentos.
Desde o desastre da Samarco, houve um bombardeio de campanha publicitária milionária da empresa envolvida naquele e no presente desastre. A população é submetida a campanhas de marketing que só podem ter por fim reduzir a capacidade da sociedade de discutir criticamente os problemas associados à cadeia da mineração.
Mais perturbador é o volume de tal investimento —destinado a manter o chamado “capital reputacional” ou a “imagem” da empresa— quando comparado ao abandono a que foram relegadas as vítimas do descaso empresarial e governamental que vivem ao longo do rio Doce.
Passados alguns dias, ante a repercussão e o sofrimento imposto às centenas de vítimas, governantes mencionam dimensões políticas e legais. Procura-se ressignificar a promessa de campanha de flexibilizar processos de licenciamento —“flexibilizar quer dizer respeitar regras rígidas”, dizem.
Em seu uso corrente, “flexibilizar” costuma designar o uso de expedientes que permitam não aplicar normas, alegando-se razões de ordem superior, em geral econômicas, relativas ao desenvolvimento dos negócios. Quando há pretensão de aplicar regras rígidas, a ordem principal é não flexibilizar. Rebaixar o nível de risco da barragem da mina Córrego do Feijão é exemplo claro da prática de afrouxamento das normas ambientais.
“Decisão abominável que beira a insanidade” foi a expressão da representante da sociedade civil na reunião da Câmara Técnica de Atividades Minerárias do Conselho de Política Ambiental do estado de Minas Gerais em 11 de dezembro —quando sua posição, contrária à flexibilização/agilização excepcional do licenciamento, foi derrotada por 8 a 1.
Ao contrário do que se ouviu dizer, há, sim, muito a fazer. Entende-se também que é grande o ceticismo quando um governo subordina suas políticas ambientais e de saúde ocupacional às prioridades do agronegócio e da mineração. Isso já acontecia em governos passados, tendo apenas se agravado após o impeachment de 2016, mas nunca antes um discurso antiambientalista explícito foi adotado por agentes governamentais.
Este último episódio dá fortes elementos de razão à tese de que práticas empresariais irresponsáveis, efetuadas com a complacência do Estado, serão mais frequentes contra populações de baixa renda, trabalhadoras e pertencentes a grupos étnico-raciais pouco representados na esfera decisória.
Cabe esperar que, enquanto houver espaço para o debate democrático, a profunda discussão crítica do modelo de desenvolvimento neoextrativista e o respeito aos alertas dos defensores de direitos socioambientais nos permitam alcançar a punição das empresas responsáveis e uma justa e eficaz prevenção das práticas até aqui correntes de condescendência do Estado para com a irresponsabilidade social corporativa.

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