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Parte 1
STF determina prisão domiciliar de detentas grávidas e com filhos até 12 anos. Mas o Judiciário prefere arriscar a saúde delas na pandemia
Amanda Audi, Bruna de Lara, Nathália Braga, Juan Ortiz, Nayara Felizardo, Sílvia Lisboa, Paula Bianchi
9 de Maio de 2020, 6h15
Marcela* está presa desde agosto de 2019 sob acusação de associação ao tráfico. O seu celular apareceu em escutas telefônicas que identificaram negociações de drogas. Nesses oito meses, ela não teve nenhum contato com os filhos, de 11, 15 e 19 anos, mesmo após o início da pandemia do novo coronavírus. Mas Marcela não deveria estar presa. Ela é uma das mais de 5 mil mulheres detidas ilegalmente longe dos filhos.
Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal publicou um habeas corpus determinando que todas as mulheres mães de crianças com até 12 anos e gestantes presas deveriam receber prisão domiciliar. Há mais de um mês, o Conselho Nacional de Justiça reforçou a decisão, recomendando a reavaliação de prisões de mães de crianças com até 12 anos, gestantes e mulheres que cuidam de pessoas com deficiência. A medida, motivada pela crise do coronavírus, vale, assim como a decisão do STF, para os casos de prisão preventiva. Ou seja, mulheres como Marcela: presas, mas ainda não condenadas pela justiça.
O filho mais novo de Marcela só vai completar 12 anos em 2021, o que a enquadra tanto na decisão do STF como na recomendação do CNJ. O menino e o irmão de 15 anos moram com a avó materna, Maria*. “Minha filha até hoje não teve uma audiência. Ela não pôde sair nem pra Natal, Páscoa, nada com os filhos”, reclama. Segundo Maria, Marcela nega envolvimento com o tráfico e diz que emprestava o celular, que apareceu nas escutas, a outras pessoas.
Maria se preocupa com o risco de a filha se contaminar com o novo coronavírus no presídio. A doença, vale lembrar, se espalha rapidamente em ambientes com muitas pessoas e com problemas sanitários, caso das superlotadas prisões brasileiras, que estão entre as piores do mundo. Ela não vê a filha, presa no Rio, desde o começo de março, quando algumas visitas foram suspensas para evitar a disseminação da doença, incluindo as de crianças. Mas, toda semana, leva sacolas de alimentos e produtos de limpeza a ela.
Nos dias anteriores à entrega das bolsas, Maria cozinha dois tipos de carne – geralmente linguiça com molho e salsicha – e um pudim para mandar à Marcela, junto com pacotes de biscoito, refrigerantes e garrafas d’água. Em outra sacola, manda produtos de higiene para ela se proteger do coronavírus. “Eles [da penitenciária] pediram para botar bastante isso para elas poderem lavar as mãos. Detergente, sabão em pó, papel higiênico, pasta de dente”, diz a mãe, que sai de casa de madrugada e dorme na frente do presídio para ser uma das primeiras a entrar.
A justiça do Rio de Janeiro negou o pedido de habeas corpus de Marcela para cumprir prisão domiciliar. A decisão foi assinada pela desembargadora Katya Maria de Paula Menezes Monnerat no começo de abril – ou seja, após a recomendação do CNJ e em meio à crise de covid-19. Para justificar, a magistrada, que também deixou de aplicar a determinação do Supremo, alegou que não verificou “flagrante ilegalidade” ou “manifesto constrangimento ilegal” na prisão de Marcela.
Dois anos depois da determinação do STF de liberar mães, os tribunais seguem ignorando a medida – inclusive o próprio Supremo. O Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, que reúne advogados de diversas partes do país, analisou 468 decisões de ministros do Supremo em ações desse tipo, e, em apenas 15,5% dos casos, as mulheres foram liberadas para a prisão domiciliar.
A última informação disponível a que tivemos acesso é que mais de 5.111 mães de crianças com até 12 anos ou que cuidam de pessoas com deficiência seguiam presas no levantamento mais recente, feito pelo Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, em julho do ano passado – sem contar as presas dos estados da Bahia, Ceará, Goiás e Pernambuco, que não enviaram os dados. É difícil saber com precisão quantas mulheres estão nessa situação. A maioria dos órgãos envolvidos não tem dados ou se recusa a informá-los – o que demonstra o pouco interesse que têm sobre a situação.
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O Depen também não sabe afirmar se já há casos de detentas contaminadas ou com suspeita de coronavírus. No dia 17 de abril, foi confirmado o primeiro caso de morte de um presidiário por covid-19, um homem de 73 anos preso no Rio de Janeiro. No total, havia até a publicação desta reportagem ao menos 310 casos suspeitos, 429 confirmados de covid-19 e 20 mortes no sistema carcerário brasileiro. O levantamento, no entanto, não faz distinção de gênero.
O próprio CNJ não tem informação sobre quantas pessoas conseguiram ir para casa para se proteger do coronavírus após a sua recomendação. No Paraná, nem mulheres encarceradas com seus recém-nascidos foram liberadas, “tendo em vista que não houve ocorrência de coronavírus” no local – exigência que não existe no habeas corpus do STF e tampouco na recomendação do CNJ.
Justiça tendenciosa
O leite do peito de Joely Gonçalves Alves, 23 anos, secou enquanto ela estava presa, no ano passado. Ela amamentava um bebê de um ano e três meses na época. A criança teve que ficar com o pai enquanto a mãe estava em um presídio do Amapá, após policiais encontrarem maconha e cocaína numa bolsa que, segundo ela, um amigo deixou em sua casa. Ela foi presa em maio de 2019. Outros filhos de Joely, que tinham três e quatro anos, também foram afastados da mãe. Outra prisão ilegal, como a de Marcela.
Entre indas e vindas, Joely permaneceu na prisão até março deste ano – quando se intensificou a crise do coronavírus no Brasil e ela conseguiu autorização judicial para cumprir prisão domiciliar, por conta da resolução do CNJ. Ela tentou, sem sucesso, deixar o cárcere meses antes, com base na determinação do STF.
O magistrado que julgou o caso, Décio José Santos Rufino, disse que, “ao seu sentir”, o fato de a mulher ter filhos pequenos “não enseja automaticamente a concessão da prisão domiciliar”, mesmo com o habeas corpus do STF deixando clara essa obrigação e com Joely sendo ré primária, ou seja, sem ter nenhuma passagem anterior pela polícia. Em seu juridiquês, ele afirma que filhos podem ser usados por essas mulheres como um “passe livre” para evitar a prisão, como um “escudo” e “quiçá, subterfúgios para a prática de crimes”, posição repetida por outros juízes país afora para burlar a medida.
O magistrado ainda duvidou que os filhos pequenos dependiam da mãe, por ela ser casada com outra mulher. Constatou, então, que “os mesmos não ficarão desamparados”. Não é verdade. Enquanto Joely estava detida, seus filhos se dividiram: o mais velho ficou com a mãe dela, o do meio, com a esposa e, o mais novo, com o pai da criança. “Os três separados, porque eu estava presa. Quando estou em casa, ficam todos comigo”, disse.
Em seus últimos dias na cadeia, Joely, liberada em 31 de março, passou ainda pela agonia da descoberta da pandemia. “Eu soube do coronavírus através de uma agente penitenciária. Ela fez uma reunião com a gente e falou o que estava acontecendo aqui fora. Disse que o vírus já tinha chegado no Amapá e que as crianças podiam ser afetadas. Eu me apavorei”, contou. “A gente, bem ou mal, pode se virar, mas e uma criança? Pensei não foi uma e nem duas vezes em fugir, porque eu não sabia como estavam meus filhos”.
As mulheres apenadas, diz, sofriam maus-tratos dos agentes por causa do coronavírus. “Os agentes não queriam chegar perto, nem dar o banho de sol, porque diziam que podíamos contaminar eles. Mas estávamos lá dentro, presas. Eles que podiam levar o vírus para a gente. Nós que devíamos estar com medo deles”, afirmou.
Presídios lotados pela nova Lei de Drogas
No levantamento mais recente dos tipos penais que levaram mulheres à cadeia, com dados de 2016, cerca de 43% das 42 mil presas no Brasil estavam detidas por crimes relacionados ao tráfico de drogas – o equivalente a 18 mil pessoas. Esse número tem relação direta com a nova Lei de Drogas, implementada em 2006, que passou a tratar com mais rigidez os casos relacionados a tráfico de entorpecentes. Para se ter uma ideia, desde a nova lei, o contigente de presas subiu 119% – o país tinha 19.313 mulheres presas quando a legislação mudou.
CEP e a classe social contam muito nesse momento. Como não há uma definição específica na lei sobre a quantidade mínima de droga encontrada para definir quem é considerado traficante ou usuário, quem faz a distinção, nas ruas, é o próprio policial. Em sua maioria, as presas brasileiras seguem um padrão: são jovens (68% têm entre 18 e 34 anos), negras (62%) e pobres e acabam na prisão por funções colaterais no tráfico, como guardar ou embalar produtos e vender pequenas quantidades de droga. Caso de Diandra da Silva, de 19 anos.
Ela conta que foi o seu marido quem a apresentou ao mundo do tráfico, assim como o caso de muitas outras mulheres que passam pelo sistema prisional: elas entram no crime para ajudar companheiros, maridos ou namorados, ou por influência deles. Presa preventivamente em 2019, ela apelou ao habeas corpus do STF, que permitiria que aguardasse a decisão final da justiça em casa, ao lado de seus dois filhos pequenos. O pedido foi negado.
Apesar de o texto do STF determinar a soltura dessas mulheres, muitos magistrados interpretam a lei como consideram mais conveniente, e o fato de essas mulheres serem mães, o que deveria levá-las a obrigatoriamente à prisão domiciliar e até à soltura, torna-se contraditoriamente um agravante, como aconteceu com as mulheres retratadas nesta reportagem.
Foi preciso uma pandemia mundial para que Diandra deixasse a prisão nos arredores de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ela saiu no fim de março, por conta da recomendação do CNJ, a exemplo de Joely.
Diandra conta que foi detida em maio do ano passado, quando estava na casa do tio, em São Sebastião do Caí, a 70 quilômetros da capital gaúcha. Naquele dia, a polícia prendeu um vizinho com 324 pinos de cocaína. Conhecida das autoridades por conta do marido traficante, preso há dois anos, ela também foi levada. “Fui presa porque estava no lugar errado, no momento errado”, conta.
Sem antecedentes criminais, ela passou a noite na cadeia e conseguiu a liberdade provisória. Voltou para casa com a sogra, comemorou o aniversário de dois anos do filho e, grávida da segunda criança, viu sua barriga aumentar ao longo do ano.
Antes de começar a se relacionar com o marido, Diandra diz que não tinha contato com o tráfico de drogas: “Nem conhecia esse mundo”, nos disse. “Me arrependo de ter me envolvido [no tráfico]”.
Uma pesquisa da Fiocruz mostra que metade das mulheres presas não tem companheiros. Sem elas, é comum que a base familiar se desestruture completamente.
Diandra foi presa preventivamente pela segunda vez em setembro de 2019, quatro meses depois da primeira detenção. Embora não houvesse flagrante, ela entrou na leva de prisões da facção criminosa do marido. Oficialmente, foi para a cadeira pela “suposta prática dos delitos de tráfico de drogas e de associação para o tráfico”, conforme consta nas decisões judiciais.
A advogada de Diandra entrou com pedido de habeas corpus também tomando como base a decisão do STF. Mas o recurso foi negado tanto pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. A justificativa presente nas duas decisões é de que ela já teria “gozado do benefício” da prisão domiciliar previsto pela lei 13.769 de 2018 – embora a lei não faça referência ao número de vezes em que a presa preventiva pode se valer da troca de regime.
No texto, há apenas duas exceções: 1) crimes cometidos com violência grave ou ameaça; 2) crimes cometidos contra o filho ou dependente. No voto do relator, Reynaldo Fonseca, ministro do STJ, há ainda um erro na descrição do caso: o relatório afirma que, durante a segunda prisão, houve a apreensão dos mais de 300 pinos de cocaína na residência dela – o que não procede, pois isso ocorreu da primeira vez, e não dentro da casa de Diandra, como demonstraram seus advogados. Ela seguiu presa, mesmo grávida, e deu à luz uma menina que hoje tem quatro meses.
A prisão de uma mãe tem um efeito devastador sobre a família. Uma pesquisa da Fiocruz mostra que metade das mulheres presas não tem companheiros – e muitas das que têm são abandonadas por eles após o cárcere. Segundo o CNJ, 80% delas são responsáveis pelo sustento da casa. Sem elas, é comum que a base familiar se desestruture completamente.
Conversamos com Diandra em fevereiro, na penitenciária feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre. Ela nos recebeu com a filha no colo, em um pátio vazio onde as presas cuidam de seus bebês. Na época, perguntamos se ela já se preparava mentalmente para a hora de se separar da filha, que só pode ficar até, no máximo, um ano e três meses com a mãe no presídio, segundo as regras da penitenciária. “É complicado. É bom nem pensar nesse tempo, só quando chegar”, respondeu, levando a mão ao rosto.
Em 20 de março, Diandra foi solta graças à recomendação do CNJ, que visa diminuir o risco de contágio por covid-19 nos presídios. “Foi muito bom ver meu filho de novo”, nos disse por telefone. Ela conseguiu reencontrá-lo antes de seu aniversário de três anos, que será em junho. Atualmente, ela está de quarentena na casa da sogra, em São Sebastião do Caí, no interior do Rio Grande do Sul, com seus dois filhos.
O presídio Madre Pelletier, onde Diandra estava presa, liberou 36 mulheres do grupo de risco ao novo coronavírus à prisão domiciliar, atendendo à recomendação do CNJ. Por meio da assessoria de imprensa, a Secretaria de Administração Penitenciária, Seapen, esclareceu que é um órgão executivo e que só poderia liberar as presas nessas condições por determinação do Judiciário.
A juíza da 1º Vara de Execuções Criminais, Sonáli da Cruz Zluhan, que cuida da situação dos presídios femininos da capital gaúcha desde janeiro, disse que concedeu a prisão domiciliar a todos os casos de grávidas e de mulheres com filhos pequenos para protegê-las do coronavírus nos presídios de Porto Alegre – somando homens, foram mais de mil presos que ganharam o benefício na capital gaúcha até início de abril.
Mas os casos de presas provisórias dependem da ação dos juízes que cuidam dessas ações – a VEC cuida apenas de casos com condenação. Segundo Zluhan, diante da situação, além do CNJ, a corregedoria do TJRS recomendou dar atenção a essas detentas devido à pandemia. “A mulher encarcerada é totalmente abandonada, sofre abusos das autoridades dentro dos presídios, recebe pouca visita, uma situação terrível”, diz Zluhan.
A recomendação do CNJ, sozinha, não liberta ninguém instantaneamente da prisão. Ela serve como embasamento para os pedidos de habeas corpus, que podem ser feitos por advogados, defensorias ou determinadas pelos próprios juízes que pediram a prisão preventiva.
O governo federal, porém, não vê com bons olhos a liberação de presos por causa da covid-19. Como forma de pressão, o ex-juiz Sergio Moro, que adotou a linha punitivista na operação Lava Jato e comandava o Ministério da Justiça até 24 de abril, pediu para autoridades relatarem casos de crimes cometidos por detentos recém-libertados. Ele mesmo soltou uma mentira ao tentar relacionar um preso com a liberação pelo coronavírus – e depois pediu desculpas. Ele disse, em uma coletiva de imprensa, que um homem preso no Rio Grande do Sul com drogas e fuzis havia sido liberado da prisão por causa da recomendação do CNJ para evitar a proliferação do novo coronavírus. Mas, na verdade, o homem não havia sido libertado por esse motivo.
* Os nomes foram modificados a pedido da mãe de Marcela, Maria, por de medo que a filha venha a sofrer retaliações dentro da prisão.
Essa reportagem foi financiada pela Fundacíon Gabo como parte do fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas.
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