O próprio Supremo descumpre a determinação. Em apenas 15,5% dos casos avaliados pelos ministros, as mulheres foram liberadas para a prisão domiciliar.
 
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
Foi preciso uma pandemia mundial para que Diandra deixasse a prisão nos arredores de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ela saiu no fim de março, por conta da recomendação do CNJ, a exemplo de Joely.
Diandra conta que foi detida em maio do ano passado, quando estava na casa do tio, em São Sebastião do Caí, a 70 quilômetros da capital gaúcha. Naquele dia, a polícia prendeu um vizinho com 324 pinos de cocaína. Conhecida das autoridades por conta do marido traficante, preso há dois anos, ela também foi levada. “Fui presa porque estava no lugar errado, no momento errado”, conta.
Sem antecedentes criminais, ela passou a noite na cadeia e conseguiu a liberdade provisória. Voltou para casa com a sogra, comemorou o aniversário de dois anos do filho e, grávida da segunda criança, viu sua barriga aumentar ao longo do ano.
Antes de começar a se relacionar com o marido, Diandra diz que não tinha contato com o tráfico de drogas: “Nem conhecia esse mundo”, nos disse. “Me arrependo de ter me envolvido [no tráfico]”.
Uma pesquisa da Fiocruz mostra que metade das mulheres presas não tem companheiros. Sem elas, é comum que a base familiar se desestruture completamente.
Diandra foi presa preventivamente pela segunda vez em setembro de 2019, quatro meses depois da primeira detenção. Embora não houvesse flagrante, ela entrou na leva de prisões da facção criminosa do marido. Oficialmente, foi para a cadeira pela “suposta prática dos delitos de tráfico de drogas e de associação para o tráfico”, conforme consta nas decisões judiciais.
A advogada de Diandra entrou com pedido de habeas corpus também tomando como base a decisão do STF. Mas o recurso foi negado tanto pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. A justificativa presente nas duas decisões é de que ela já teria “gozado do benefício” da prisão domiciliar previsto pela lei 13.769 de 2018 – embora a lei não faça referência ao número de vezes em que a presa preventiva pode se valer da troca de regime.
No texto, há apenas duas exceções: 1) crimes cometidos com violência grave ou ameaça; 2) crimes cometidos contra o filho ou dependente. No voto do relator, Reynaldo Fonseca, ministro do STJ, há ainda um erro na descrição do caso: o relatório afirma que, durante a segunda prisão, houve a apreensão dos mais de 300 pinos de cocaína na residência dela – o que não procede, pois isso ocorreu da primeira vez, e não dentro da casa de Diandra, como demonstraram seus advogados. Ela seguiu presa, mesmo grávida, e deu à luz uma menina que hoje tem quatro meses.
A prisão de uma mãe tem um efeito devastador sobre a família. Uma pesquisa da Fiocruz mostra que metade das mulheres presas não tem companheiros – e muitas das que têm são abandonadas por eles após o cárcere. Segundo o CNJ, 80% delas são responsáveis pelo sustento da casa. Sem elas, é comum que a base familiar se desestruture completamente.
Conversamos com Diandra em fevereiro, na penitenciária feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre. Ela nos recebeu com a filha no colo, em um pátio vazio onde as presas cuidam de seus bebês. Na época, perguntamos se ela já se preparava mentalmente para a hora de se separar da filha, que só pode ficar até, no máximo, um ano e três meses com a mãe no presídio, segundo as regras da penitenciária. “É complicado. É bom nem pensar nesse tempo, só quando chegar”, respondeu, levando a mão ao rosto.
Em 20 de março, Diandra foi solta graças à recomendação do CNJ, que visa diminuir o risco de contágio por covid-19 nos presídios. “Foi muito bom ver meu filho de novo”, nos disse por telefone. Ela conseguiu reencontrá-lo antes de seu aniversário de três anos, que será em junho. Atualmente, ela está de quarentena na casa da sogra, em São Sebastião do Caí, no interior do Rio Grande do Sul, com seus dois filhos.
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Contrário a libertação dos presos devido à pandemia, o ex-ministro Moro se valeu até de fakenews para ir contra a recomendação do CNJ.
 
Foto: Andre Coelho/Getty Images
O presídio Madre Pelletier, onde Diandra estava presa, liberou 36 mulheres do grupo de risco ao novo coronavírus à prisão domiciliar, atendendo à recomendação do CNJ. Por meio da assessoria de imprensa, a Secretaria de Administração Penitenciária, Seapen, esclareceu que é um órgão executivo e que só poderia liberar as presas nessas condições por determinação do Judiciário.
A juíza da 1º Vara de Execuções Criminais, Sonáli da Cruz Zluhan, que cuida da situação dos presídios femininos da capital gaúcha desde janeiro, disse que concedeu a prisão domiciliar a todos os casos de grávidas e de mulheres com filhos pequenos para protegê-las do coronavírus nos presídios de Porto Alegre – somando homens, foram mais de mil presos que ganharam o benefício na capital gaúcha até início de abril.
Mas os casos de presas provisórias dependem da ação dos juízes que cuidam dessas ações – a VEC cuida apenas de casos com condenação. Segundo Zluhan, diante da situação, além do CNJ, a corregedoria do TJRS recomendou dar atenção a essas detentas devido à pandemia. “A mulher encarcerada é totalmente abandonada, sofre abusos das autoridades dentro dos presídios, recebe pouca visita, uma situação terrível”, diz Zluhan.
A recomendação do CNJ, sozinha, não liberta ninguém instantaneamente da prisão. Ela serve como embasamento para os pedidos de habeas corpus, que podem ser feitos por advogados, defensorias ou determinadas pelos próprios juízes que pediram a prisão preventiva.
O governo federal, porém, não vê com bons olhos a liberação de presos por causa da covid-19. Como forma de pressão, o ex-juiz Sergio Moro, que adotou a linha punitivista na operação Lava Jato e comandava o Ministério da Justiça até 24 de abril, pediu para autoridades relatarem casos de crimes cometidos por detentos recém-libertados. Ele mesmo soltou uma mentira ao tentar relacionar um preso com a liberação pelo coronavírus – e depois pediu desculpas. Ele disse, em uma coletiva de imprensa, que um homem preso no Rio Grande do Sul com drogas e fuzis havia sido liberado da prisão por causa da recomendação do CNJ para evitar a proliferação do novo coronavírus. Mas, na verdade, o homem não havia sido libertado por esse motivo.
* Os nomes foram modificados a pedido da mãe de Marcela, Maria, por de medo que a filha venha a sofrer retaliações dentro da prisão.
Essa reportagem foi financiada pela Fundacíon Gabo como parte do fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas.