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http://www.oeco.com.br/silvio-marchini/26923-eurico-santos-divulgador-da-natureza-brasilica?utm_source=newsletter_641&utm_medium=email&utm_campaign=as-novidades-de-hoje-em-oeco
Há 45 anos, mais precisamente em 24 de fevereiro de 1968, o Brasil perdia Eurico Santos, o maior divulgador da nossa fauna e flora. Eurico Santos foi – guardadas as proporções – um David Attenborough tupiniquim dos meados do século 20. A exemplo do ilustre apresentador da BBC, Eurico Santos dedicou a vida a levar ao público leigo, de forma interessante e educativa, informação sobre história natural. Enquanto Sir Attenborough ganhou projeção a partir dos anos 70 graças aos documentários que apresentava na TV, Eurico Santos foi um heroico pioneiro da divulgação científica no Brasil muito antes da popularização da televisão. Foi entre as décadas de 30 e 50 que ele produziu a maior parte de sua obra, publicada na forma de livros, muitos livros!
Tive minha iniciação na extensa bibliografia de Eurico Santos logo no primeiro ano da faculdade, quando me caíram nas mãos alguns exemplares da coleção Zoologia Brasílica, provável magnum opus do autor. Eram livros relançados pela Editora Itatiaia, reconhecidos à distância nas prateleiras das livrarias e bibliotecas por suas capas de fundo branco com ilustrações de animais em cores vivas e traços próprios, num estilo algo naïve. Os livros do Eurico despertavam em mim um misto de fascínio, curiosidade e admiração.
Fascínio e curiosidade
Meu fascínio era por sua aura clássica, histórica, quase mitológica, com cara de obra rara cuja narrativa me remetia às crônicas dos exploradores e naturalistas dos séculos 16 a 19 (talvez porque os livros costumassem dividir o espaço nas estantes com outra fantástica coleção da Itatiaia em conjunto com a Edusp, a Reconquista do Brasil, com as mesmas capas brancas e ilustrações super coloridas e cuja lista de autores incluía ninguém menos que Hans Staden, Auguste de Saint-Hilaire, Alfred Russell Wallace, Henry Bates, Richard Burton e Theodore Roosevelt).
Com títulos que vão de “O Mundo dos Artrópodes” a “Entre o Gambá e o Macaco”, era natural que os livros de Eurico Santos despertassem a curiosidade de qualquer jovem calouro da Biologia. Mas confesso que me prendiam também a atenção o estilo peculiar com que Eurico conta casos e lendas para colorir suas descrições, além de sua inclinação a atribuir qualidades humanas aos bichos e sua preferência por palavras raras, algumas hoje em desuso. O texto de Eurico Santos me parecia surpreendente, leve e agradável apesar de informativo, por vezes um tanto cômico e, desse modo, muito diferente da leitura acadêmica, tipicamente formal e pretensiosa.
Sobre o conflito entre o gambá e o criador de galinhas, por exemplo, Eurico nos escreve que “Após a façanha, bêbado de sangue, ou, o que é mais certo, amolentado por uma digestão trabalhosa, por sobrecarga, o bruto deita-se a dormir naquele mesmo palco da tragédia, onde o Seu João, dono das galinhas, na manhã seguinte, armado de cacete, dá-lhe cabo do canastro, jurando que de ora avante matará todos os gambás que lhe aparecerem”. Sobre boatos de que as suçuaranas não atacam e nem se defendem do ser humano, Eurico alerta: “Que a bicha tenha respeito pelo homem, por um pressentimento da sua capacidade de vencê-la, vá que se admita, mas que quando receba uma chuchada no lado esquerdo, lhe ofereça, cristamente, a ilharga direita, é forte demais. Mentira e zombaria.”
Admiração
Dos sentimentos que a obra de Eurico Santos já me despertou, prevalece hoje a admiração. Para começar, ela me assombra pelo tamanho. Se escrever uma única coluna para o ((o)) eco me custa algumas tardes de dedicação, só posso me espantar com o esforço e a determinação de Eurico em escrever e fazer publicar dezenas de livros no Brasil da Era Vargas e República Nova. São onze títulos somente na coleção Zoologia Brasílica, mais “Caça e Caçadas”, “Veterinária Prática”, “Manual do Lavrador Brasileiro”, “Manual do Amador de Cães”, “Nossas Madeiras”, “História, Lendas e Folclore de Nossos Bichos”, etc., etc.
Eurico Santos dividiu sua época com outros autores igualmente prolíficos ou influentes dedicados à história natural de nosso país. Fritz Müller, Adolfo Lutz, Hermann von Ihering e Emílio Goeldi são só alguns exemplos. Enquanto esses autores, todos cientistas, escreviam para outros cientistas, Eurico era jornalista e escrevia para o cidadão comum. Cientistas sempre tiveram dificuldade – ou pouco interesse – em comunicar suas descobertas ao público leigo. Eurico Santos cumpria, então, o papel de traduzir para o povo o que os cientistas falavam. Eurico foi um homem a frente do seu tempo na clareza que tinha da importância da comunicação científica e da popularização da ciência. Décadas antes de Carl Sagan defender a racionalidade humana e atacar o analfabetismo científico em seu livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios – a Ciência Vista Como uma Vela no Escuro”, Eurico já escrevia, em notável consonância com o inesquecível autor da série Cosmos: “... não é sem mágoa e com uma pontinha de desconfiança que o povo olha para as explicações científicas destes curiosos mistérios e nem se lembra que é desta noite escura que saem os mais terríveis fantasmas que o atormentam. Tudo que vive na Natureza é filho da própria Natureza e está à altura da compreensão humana. O que ignoramos hoje, saberemos amanhã. A tarefa mais agradável ao espírito humano é, sem dúvida, a eterna pesquisa, a busca incessante da verdade.”
Apesar de seu inegável apreço pela ciência, e do ideal científico ter como esteios a razão e a imparcialidade, Eurico Santos escrevia de forma apaixonada e comprometida. Antes mesmo do advento das organizações conservacionistas, como a União Internacional para a Conservação da Natureza (de 1949) que publicaria as influentes Listas Vermelhas das espécies ameaçadas, ou a Associação de Defesa da Flora e Fauna (de 1953), que foi uma das primeiras do gênero no Brasil, Eurico já expressava de forma recorrente sua preocupação com o desaparecimento de algumas espécies e com a insensibilidade humana no trato com os animais.
Sobre o tatu-canastra, por exemplo, Eurico já lamentava que “De fato, tanto se há perseguido esse rei dos cavadores – patrono de tanta gente boa – que a espécie está desaparecendo do sertão brasileiro, seus domínios naturais... Caçam o tatuaçu já para lhe comer a carne, já para utilizar a armadura óssea em ornamentos, aliás de mau gosto”. Ao narrar o episódio em que testemunhou uma caçada de anta, Eurico deixa claro de que lado está: “Ali torcendo para a fuga do bicho, só existiam duas criaturas, eu e a anta. As outras estavam sanguissedentas. Houve tiroteio, alarido e depois o silêncio ligeiro da decepção”. A anta fugiu ferida e Eurico ouviu do caçador: “Ganhamos a partida. A anta está ferida mortalmente e não escapará”. Num arroubo de indignação, Eurico dispara: “Eis aí uma tirada reveladora do instinto do caçador e que bem lhe define a psicologia. Pouco lhe importa que o animal, visado pela espingarda, fique ali morto. Se isso acontecer, ótimo será, mas se a vítima escapar ferida mortalmente, e o caçador tenha a certeza de que ela morrerá, ainda assim lhe satisfaz e contenta. O que certos caçadores esportistas sobretudo desejam é matar, matar e matar”.
Realização e reconhecimento
Era dessa forma, misturando ciência com prosa, informação com paixão, que Eurico Santos perseguia seu objetivo como autor, sintetizado nesse trecho do prefácio de “Da Ema ao Beija Flor”: “Pudesse eu contagiar aos meus leitores a admiração pelas aves, o interesse pelos seus costumes e o respeito pelas suas vidas, tão sagradas quanto as nossas, e teria conseguido o principal desejo que me guiou, ao escrever este livro”.
Não se sabe até que ponto Eurico foi bem sucedido em contagiar seus leitores – os leigos para os quais escrevia – com seu amor, interesse e respeito pela natureza, mas Fernando Straube defende em sua “visão bio-bibliográfica de Eurico Santos” que a obra de Eurico teve um papel importante na formação de muitos zoólogos brasileiros contemporâneos. Eu, pessoalmente, atesto que mais do que me servir na formação profissional, a obra de Eurico me serviu de inspiração.
Eurico Santos faleceu com 75 anos incompletos, no Rio de Janeiro. Viveu o suficiente para ver seu trabalho reconhecido: recebeu o título de Publicitário do Ano e ganhou a medalha do Mérito Agrícola das mãos do presidente Juscelino Kubitschek. Depois de morto, foi homenageado pela Sociedade Brasileira de Zoologia. Uau! Tudo isso! Já David Attenborough, o Eurico Santos britânico da atualidade, recebeu muito mais medalhas do que poderia suportar penduradas no pescoço, foi condecorado com o glamouroso título de Sir e teve seu nome incluído na lista dos 100 Maiores Britânicos e dos 10 Heróis do Nosso Tempo. Zoólogos, botânicos e paleontólogos que foram inspirados pelos documentários de Attenborough quando estudantes retribuíram a honra batizando com seu nome as novas espécies de animais e plantas, extantes ou extintas, que descobriram: existe, por exemplo, uma árvore chamada Blakea attenboroughi, uma aranha Prethopalpus attenboroughi, e certamente o grande divulgador não se sente ofendido por saber, aos 86 anos de idade, que o Museu de História Natural de Londres já guarda o fóssil de um tal Attenborosaurus.
Não sei dizer quantas espécies descobertas por pesquisadores brasileiros foram batizadas em homenagem a Eurico Santos. Desconfio que nenhuma. Nesse aniversário da morte de Eurico, pesquisadores, educadores e comunicadores ambientais talvez pudessem começar a considerar a possibilidade de prestar homenagem ao maior divulgador que a natureza brasileira já teve. Se é tarde demais para medalhas e condecorações, na era da comunicação e da divulgação científica via Internet o simples registro do verbete “Eurico Santos” na Wikipédia talvez fosse um singelo porém significativo começo.
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22 de Fevereiro de 2013
Tive minha iniciação na extensa bibliografia de Eurico Santos logo no primeiro ano da faculdade, quando me caíram nas mãos alguns exemplares da coleção Zoologia Brasílica, provável magnum opus do autor. Eram livros relançados pela Editora Itatiaia, reconhecidos à distância nas prateleiras das livrarias e bibliotecas por suas capas de fundo branco com ilustrações de animais em cores vivas e traços próprios, num estilo algo naïve. Os livros do Eurico despertavam em mim um misto de fascínio, curiosidade e admiração.
Fascínio e curiosidade
Meu fascínio era por sua aura clássica, histórica, quase mitológica, com cara de obra rara cuja narrativa me remetia às crônicas dos exploradores e naturalistas dos séculos 16 a 19 (talvez porque os livros costumassem dividir o espaço nas estantes com outra fantástica coleção da Itatiaia em conjunto com a Edusp, a Reconquista do Brasil, com as mesmas capas brancas e ilustrações super coloridas e cuja lista de autores incluía ninguém menos que Hans Staden, Auguste de Saint-Hilaire, Alfred Russell Wallace, Henry Bates, Richard Burton e Theodore Roosevelt).
Sobre o conflito entre o gambá e o criador de galinhas, por exemplo, Eurico nos escreve que “Após a façanha, bêbado de sangue, ou, o que é mais certo, amolentado por uma digestão trabalhosa, por sobrecarga, o bruto deita-se a dormir naquele mesmo palco da tragédia, onde o Seu João, dono das galinhas, na manhã seguinte, armado de cacete, dá-lhe cabo do canastro, jurando que de ora avante matará todos os gambás que lhe aparecerem”. Sobre boatos de que as suçuaranas não atacam e nem se defendem do ser humano, Eurico alerta: “Que a bicha tenha respeito pelo homem, por um pressentimento da sua capacidade de vencê-la, vá que se admita, mas que quando receba uma chuchada no lado esquerdo, lhe ofereça, cristamente, a ilharga direita, é forte demais. Mentira e zombaria.”
Dos sentimentos que a obra de Eurico Santos já me despertou, prevalece hoje a admiração. Para começar, ela me assombra pelo tamanho. Se escrever uma única coluna para o ((o)) eco me custa algumas tardes de dedicação, só posso me espantar com o esforço e a determinação de Eurico em escrever e fazer publicar dezenas de livros no Brasil da Era Vargas e República Nova. São onze títulos somente na coleção Zoologia Brasílica, mais “Caça e Caçadas”, “Veterinária Prática”, “Manual do Lavrador Brasileiro”, “Manual do Amador de Cães”, “Nossas Madeiras”, “História, Lendas e Folclore de Nossos Bichos”, etc., etc.
Eurico Santos dividiu sua época com outros autores igualmente prolíficos ou influentes dedicados à história natural de nosso país. Fritz Müller, Adolfo Lutz, Hermann von Ihering e Emílio Goeldi são só alguns exemplos. Enquanto esses autores, todos cientistas, escreviam para outros cientistas, Eurico era jornalista e escrevia para o cidadão comum. Cientistas sempre tiveram dificuldade – ou pouco interesse – em comunicar suas descobertas ao público leigo. Eurico Santos cumpria, então, o papel de traduzir para o povo o que os cientistas falavam. Eurico foi um homem a frente do seu tempo na clareza que tinha da importância da comunicação científica e da popularização da ciência. Décadas antes de Carl Sagan defender a racionalidade humana e atacar o analfabetismo científico em seu livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios – a Ciência Vista Como uma Vela no Escuro”, Eurico já escrevia, em notável consonância com o inesquecível autor da série Cosmos: “... não é sem mágoa e com uma pontinha de desconfiança que o povo olha para as explicações científicas destes curiosos mistérios e nem se lembra que é desta noite escura que saem os mais terríveis fantasmas que o atormentam. Tudo que vive na Natureza é filho da própria Natureza e está à altura da compreensão humana. O que ignoramos hoje, saberemos amanhã. A tarefa mais agradável ao espírito humano é, sem dúvida, a eterna pesquisa, a busca incessante da verdade.”
Sobre o tatu-canastra, por exemplo, Eurico já lamentava que “De fato, tanto se há perseguido esse rei dos cavadores – patrono de tanta gente boa – que a espécie está desaparecendo do sertão brasileiro, seus domínios naturais... Caçam o tatuaçu já para lhe comer a carne, já para utilizar a armadura óssea em ornamentos, aliás de mau gosto”. Ao narrar o episódio em que testemunhou uma caçada de anta, Eurico deixa claro de que lado está: “Ali torcendo para a fuga do bicho, só existiam duas criaturas, eu e a anta. As outras estavam sanguissedentas. Houve tiroteio, alarido e depois o silêncio ligeiro da decepção”. A anta fugiu ferida e Eurico ouviu do caçador: “Ganhamos a partida. A anta está ferida mortalmente e não escapará”. Num arroubo de indignação, Eurico dispara: “Eis aí uma tirada reveladora do instinto do caçador e que bem lhe define a psicologia. Pouco lhe importa que o animal, visado pela espingarda, fique ali morto. Se isso acontecer, ótimo será, mas se a vítima escapar ferida mortalmente, e o caçador tenha a certeza de que ela morrerá, ainda assim lhe satisfaz e contenta. O que certos caçadores esportistas sobretudo desejam é matar, matar e matar”.
Era dessa forma, misturando ciência com prosa, informação com paixão, que Eurico Santos perseguia seu objetivo como autor, sintetizado nesse trecho do prefácio de “Da Ema ao Beija Flor”: “Pudesse eu contagiar aos meus leitores a admiração pelas aves, o interesse pelos seus costumes e o respeito pelas suas vidas, tão sagradas quanto as nossas, e teria conseguido o principal desejo que me guiou, ao escrever este livro”.
Não se sabe até que ponto Eurico foi bem sucedido em contagiar seus leitores – os leigos para os quais escrevia – com seu amor, interesse e respeito pela natureza, mas Fernando Straube defende em sua “visão bio-bibliográfica de Eurico Santos” que a obra de Eurico teve um papel importante na formação de muitos zoólogos brasileiros contemporâneos. Eu, pessoalmente, atesto que mais do que me servir na formação profissional, a obra de Eurico me serviu de inspiração.
Não sei dizer quantas espécies descobertas por pesquisadores brasileiros foram batizadas em homenagem a Eurico Santos. Desconfio que nenhuma. Nesse aniversário da morte de Eurico, pesquisadores, educadores e comunicadores ambientais talvez pudessem começar a considerar a possibilidade de prestar homenagem ao maior divulgador que a natureza brasileira já teve. Se é tarde demais para medalhas e condecorações, na era da comunicação e da divulgação científica via Internet o simples registro do verbete “Eurico Santos” na Wikipédia talvez fosse um singelo porém significativo começo.
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