Thursday, 19 December 2013

O inferno das grandes certezas

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CONHECIMENTO & TECNOLOGIA

O inferno das grandes certezas

Por Luciano Martins Costa em 17/12/2013 na edição 777
Reproduzido da revista Unesp Ciência nº 48, dezembro 2013
 
É bastante comum ler e ouvir de especialistas que as novas tecnologias de informação e comunicação são o ponto mais elevado a que chegou o ser humano na fabricação de meios para o conhecimento. No rastro do longo processo de sacralização da ciência, que acompanha o desenvolvimento da modernidade, a construção de máquinas e programas que substituem o pensamento em suas funções pragmáticas, como fazer cálculos e administrar o mundo mecânico, vem criando uma ilusão segundo a qual basta agregar esses recursos à agenda da educação e todos os problemas estarão solucionados.
Por exemplo, repete-se que nenhum projeto de educação pode prescindir da distribuição de computadores portáteis aos alunos, assim como se tornou comum a tese de que o estudante pode aprender onde quiser, por meio dos sistemas de comunicação móvel. O pressuposto é que a tecnologia, como uma boa tradução da ciência, basta para fazer girar a roda do conhecimento e superar décadas de aprendizado deficiente. Há mesmo quem defenda o fim da escola e a substituição dos professores de algumas áreas específicas por programas de computador e aplicativos de telefone celular.
Há tecnologias, por exemplo, que permitem apresentar mapas interativos, por meio dos quais qualquer pessoa pode aprender geografia, o que faria do professor apenas um assistente de pesquisa, disponível online, ao vivo e por meio de gravações tutoriais. O mesmo se aplicaria à matemática, ao ensino de idiomas e outras disciplinas, com o uso desses recursos e de um sistema de vídeos que registra a audiência individualmente e monitora a atenção de cada estudante com questões sobrepostas à tela.
Versão caseira
A circunstância lembra um folhetim que circulou durante a Exposição Mundial de 1900 em Paris, posteriormente comentada em um texto de Walter Benjamim. De autoria de Alphonse Daudet, e com o instigante títuloL’Automobile c’est la guerre, a publicação levantava a possibilidade de a recente invenção do motor a explosão e a substituição dos veículos de tração animal por carros automovidos, acabar acirrando as ambições de antigos impérios decadentes. A imagem de carros de combate dizimando regimentos de cavalaria, no início da Primeira Grande Guerra, é um dos símbolos dessa profecia.
O advento das chamadas TICs produz uma circunstância semelhante, que pode ser constatada nas revelações sobre excessos dos serviços de espionagem no concorrido sistema global de conhecimento. Na segunda década do século 21, pratica-se um tipo de guerra diferente daquele que transformou o século 20 no período das grandes matanças: agora os governos se empenham em conhecer estratégias comerciais e bisbilhotar o próprio conhecimento que pode estar vicejando em territórios competidores. Trata-se de uma guerra comercial, cujas vítimas são mais difíceis de contabilizar.
No que se refere ao tema central destas reflexões – a ilusão das certezas produzidas pela tecnologia –, o risco está na simplificação do conceito de conhecimento. As tecnologias de informação e comunicação oferecem uma contribuição inequívoca à logística do ensino, proporcionam meios eficientes para a organização de conteúdos e podem até mesmo facilitar a criação de sistemas transdisciplinares complexos. Mas não são capazes, por si, de fazer escolhas sobre o que é importante aprender, ou seja, aparelhos e aplicativos não podem definir o que é conhecimento.
A observação da expressão de opiniões no ecossistema da comunicação, seja nos registros da mídia tradicional, seja no ambiente das mídias sociais, onde os indivíduos exercem uma autonomia nunca antes experimentada, induz à constatação de que vivemos uma plenitude de certezas. Todos sabem tudo, a ponto de produzir opinião sobre qualquer coisa, de grandes questões políticas e econômicas ao uso de animais em pesquisas científicas. A dúvida foi escorraçada do espaço público, como se fosse imoral, e talvez ainda sobreviva em confessionários e no divã dos psicanalisados.
Estudantes não aprendem, cientistas não inovam, gestores estão condenados a repetir seus modelos, se acham que sabem tudo. Debates acadêmicos se assemelham cada vez mais a prédicas religiosas. Segundo Vilém Flusser (filósofo checo, naturalizado brasileiro. 1920-1991), “a dúvida, como exercício intelectual, proporciona um dos poucos prazeres puros, mas como experiência moral é uma tortura”. Numa versão caseira de Kant, pode-se dizer que é no ceticismo que a razão repousa e se renova; portanto, não há criação de conhecimento onde só existe a certeza.
Esse é o inferno onde terminam todas as boas intenções sobre a aplicação da tecnologia na educação. Sem qualquer sombra de dúvida.

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