le monde
https://diplomatique.org.br/tremam-as-bruxas-estao-de-volta/
Todo mês, desde a posse de Donald Trump, em janeiro de
2017, milhares de bruxas reúnem suas forças, na lua minguante, para
amarrar um feitiço (binding spell) para o presidente com a
esperança de limitar seu poder maligno. Algumas se encontram ao pé da
Trump Tower, em Nova York; outras fazem uma cerimônia em casa, diante de
um altar, da qual divulgam fotos nas redes sociais com as
palavras-chave #BindTrump (“Amarre o Trump”) e #MagicResistance
(“Resistência Mágica”). O material usado inclui, além dos símbolos dos
quatro elementos e das cartas de tarô, uma foto “pouco lisonjeira” de
Trump e um pedaço de vela laranja.1 Paralelamente, surgiram
em alguns estados norte-americanos grupos batizados Witch (“Bruxa”), que
se vestem de preto, usam chapéus pontudos e máscaras. Elas militam pela
justiça social, contra as mortes por policiais, contra a política
migratória do governo, pelos direitos de trans e pelo direito ao aborto.
“As fanáticas religiosas norte-americanas crucificam os direitos das
mulheres desde o século XVII”, exibe uma de suas faixas em Portland,
Oregon (Instagram, 7 set. 2017).
Na França também as feiticeiras se manifestam. Vimos em Paris e em Toulouse, nas manifestações de setembro de 2017 contra a degradação das leis trabalhistas, um bloco de bruxas feministas e anarquistas desfilando com uma faixa “Macron au chaudron” (“Macron no caldeirão”). Isabelle Cambourakis lançou, em 2015, pela editora de sua família, uma coleção feminista denominada Bruxas; nela se encontram especialmente o Guide du féminisme divinatoire [Guia do feminismo divinatório] (2018), de Camille Ducellier, cineasta responsável pelo documentário Sorcières, mes sœurs [Bruxas, minhas irmãs] (Larsens Production, 2010). A jovem autora Jack Parker – Taous Merakchi pelo estado civil – assume tranquilamente sua prática da magia, à qual dedicou durante uns meses, em 2017-2018, um boletim informativo intitulado “Witch, Please” [Bruxa, por favor]. Como nos Estados Unidos, a estética ligada à feitiçaria invadiu o Instagram (#WitchesOfInstagram, “Bruxas do Instagram”); lojas on-line vendem velas, livros de magia, ervas e cristais. Com livros como Âme de sorcière [Alma de feiticeira], de Odile Chabrillac (Solar, 2017), e La Puissance du féminin [A força do feminino], de Camille Sfez (Leduc.s, 2018), o desenvolvimento pessoal também ganha ares decididamente místicos.
Espiritualidade progressista
A referência à bruxaria pode se inscrever em um comportamento político, espiritual… ou nos dois ao mesmo tempo. No âmbito político, as feministas ocidentais fazem da feiticeira um símbolo há muito tempo: “Somos netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”, diz um célebre slogan. Elas salientam o fato de cerca de 50 mil a 100 mil pessoas executadas por bruxaria na Europa, principalmente nos séculos XVI e XVII,2 serem em sua maioria mulheres. Na verdade, elas representavam 80% dos acusados e 85% dos condenados, tendo sido os homens muitas vezes incriminados por associação. A campanha conduzida entre 1587 e 1593 em 22 povoados das redondezas de Tréveris, na Alemanha, por exemplo, foi tão feroz que dois deles não deixaram mais que uma mulher viva; foram queimadas 368.3 A historiadora Anne L. Barstow associa essas caças a uma “explosão de misoginia”.4 O martelo das feiticeiras (Malleus maleficarum), publicado pelos dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger em 1487, instila o ódio às mulheres: “As bruxas são insignificantes”, garante o texto que serviu de breviário para os juízes em todos os processos dos séculos seguintes; se não houvesse a “malícia” das mulheres, “mesmo sem falar das bruxas, o mundo seria livre de inúmeros perigos”.
As vítimas, em sua imensa maioria originárias das classes populares, podiam ser curandeiras ou simplesmente mulheres consideradas muito dinâmicas, que falavam com audácia. As solteiras e as viúvas, assim como as idosas, eram a maioria delas. Algumas eram acusadas de bruxaria quando tentavam denunciar um crime. Assim, em 1679, em Marchiennes (norte da França), Péronne Goguillon escapou por pouco de uma tentativa de estupro por quatro soldados bêbados. Ao denunciá-los, seu marido chamou a atenção para a má reputação de sua esposa: ela foi queimada como bruxa.5 Do mesmo modo, a biógrafa de Anna Göldi – provavelmente a última “bruxa” da Europa, decapitada em Glaris (Suíça) em 1782 – encontrou vestígio de uma queixa por assédio sexual que ela havia registrado contra o médico que a empregava como empregada doméstica.6 Avalia-se até que ponto é cinismo aplicar, atualmente, a expressão “caça às bruxas” ao movimento #MeToo (“Eu também”), que denuncia os agressores sexuais…
A primeira a revisitar essa história foi a norte-americana Matilda Joslyn Gage (1826-1898), que militava ao mesmo tempo pelo sufrágio feminino, pelos direitos dos ameríndios e pela abolição da escravatura. Ela foi condenada por ter ajudado escravos a fugir. Em Woman, Church and State [Mulher, Igreja e Estado], em 1893, ela fez uma leitura feminista da caça às bruxas: “Quando, em vez de ‘bruxas’, escolhemos ler ‘mulheres’, ganhamos uma melhor compreensão das crueldades infligidas pela Igreja a essa parte da humanidade”. Gage inspirou em seu genro, o escritor Lyman Frank Baum, a personagem de Glinda, a Bruxa Boa do Sul, em O Mágico de Oz. Ao adaptar o romance para o cinema, em 1939, Victor Fleming deu origem à primeira “bruxa boa” da cultura popular.7
A segunda onda do feminismo também redescobriu essa figura. Em 1968, no dia de Halloween, em Nova York, surgiu o movimento Witch – Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell (Conspiração Terrorista Internacional de Mulheres do Inferno), cujos membros desfilaram na Wall Street e dançaram a sarabanda, vestidas com capas pretas, em frente à Bolsa de Valores. “Com os olhos fechados, a cabeça baixa, as mulheres entoaram um canto berbere (sagrado aos olhos das bruxas da Argélia) e proclamaram a queda iminente de diversas ações. Poucas horas depois, o mercado fechou em baixa de um ponto e meio e, no dia seguinte, caiu cinco pontos”, contou alguns anos depois uma delas, Robin Morgan.8 Na França, a revista Sorcières [Bruxas] foi publicada em Paris entre 1976 e 1981 sob a direção de Xavière Gauthier; cabe também mencionar a canção de Anne Sylvestre, “Une sorcière comme les autres” [Uma bruxa como as outras], de 1975. Na Itália, na mesma época, as feministas bradaram destacando as sílabas: “Tremam, tremam, as bruxas estão de volta!”.
Foi a californiana Starhawk – nascida Miriam Simos, em 1951 – que fez a articulação entre a reivindicação feminista e a prática espiritual. Starhawk faz parte do quadro amplo da Wicca, a religião neopagã, na qual ela encarna uma corrente feminista e progressista. Ela participou com seu coven (clã de bruxas) de todos os encontros altermundialistas: manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, em 1999; contra o G8 em Gênova; e contra a Cúpula das Américas em Quebec, em 2001; e do Fórum Social de Porto Alegre.9 Como a filósofa Silvia Federici,10 ela vê nas caças às bruxas um dos acontecimentos que preparou o terreno para o desenvolvimento do capitalismo no século XVIII. Em Rêver l’obscur [Sonhar com o obscuro], ela descreve os grandes distúrbios que as acompanharam: a privatização das terras outrora cultivadas coletivamente, que acabou com as comunidades e privou as mais frágeis de seus meios de subsistência; e o nascimento de uma relação com a natureza conquistadora e agressiva. Desde então, a prática da feitiçaria e o culto à Deusa, além de reabilitar o corpo feminino odiado e martirizado pelos caçadores de bruxas, representam um meio de restabelecer os vínculos que foram desfeitos.
A bruxaria combate, de alguma maneira, os domínios culturais profundos sobre os quais se apoia o capitalismo. De fato, ele se impôs pela força, certamente, mas também pela sedução, por suas afinidades com uma forma de razão dominante que permitiu ver o mundo como um conjunto de recursos inertes que deveria ser explorado e valorizado.11 A magia satisfaz, desde então, uma necessidade de encontrar uma nova forma de se inscrever em seu meio vital. Se, por um lado, todas elas buscam a conexão com os elementos e se mostram atentas aos ciclos das estações, às fases da Lua e à circulação da energia no Universo, por outro, as bruxas modernas se distinguem por uma prática muito livre, sem dogmas, e demandam a invenção de ritos de acordo com suas necessidades. Starhawk conta, por exemplo, como surgiu o rito que ela e suas amigas seguem para festejar o solstício de inverno: “Durante um dos primeiros solstícios que celebramos, fomos à praia aguardar o pôr do sol antes do nosso ritual da noite. Uma mulher disse: ‘Tiremos a roupa e saltemos na água! Vamos, ousemos!’. Eu me lembro de ter-lhe respondido: ‘Você está louca!’ , mas tiramos. Depois de alguns anos, tivemos a ideia de acender uma fogueira, uma forma de acabar com a hipotermia, e assim nasceu uma tradição. (Quando você faz uma coisa uma vez, é uma experiência. Quando a faz duas vezes, é uma tradição!)”.12
Por onde passa, a bruxaria atual inventa uma forma de espiritualidade progressista e reivindica uma ligação com a natureza sem, no entanto, aceitar as “naturalidades” de tipo reacionário. Não se trata de celebrar um feminino forçosamente maternal, doce e alimentador e de proibir o aborto – o que, aliás, seria um contrassenso histórico, uma vez que as curandeiras, outrora perseguidas por bruxaria, também eram aborteiras e desencadearam o furor de um poder político e religioso cada vez mais obcecado pela natalidade após a grande peste do século XIV. Não se trata, tampouco, de reproduzir uma norma heterossexual: “Todos os dias agradeço à Deusa por ser gay”, proclamava uma faixa do grupo Witch na Parada Gay de Portland, em junho de 2018. Após a publicação de seu primeiro livro, A dança cósmica das feiticeiras, em 1979, Starhawk recebeu inúmeras críticas por ter apresentado uma visão cristalizada e meio estereotipada das categorias do masculino e do feminino; ela levou em conta e fez retificações nas edições seguintes. Achamos essa atitude aberta na corrente do ecofeminismo, que reúne as mesmas preocupações que a feitiçaria feminista. A experiência incompreendida da “volta à terra” das comunidades separatistas lésbicas nos anos 1970 em Oregon13 comprova isso. “Por que deixar aos heterossexuais o monopólio de uma sexualidade ‘natural’ e pensar que os movimentos de homossexuais só conseguiram se desenvolver nas cidades, longe da natureza e contra ela?”, pergunta Catherine Larrère. A filósofa não vê “o menor motivo para construir o feminismo negando a natureza”.14
A primeira tradução francesa do livro Rêver l’obscur [Sonhar com o obscuro], de Starhawk, com o título Femmes, magie et politique [Mulheres, magia e política], (publicada pela editora Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2003), teve um eco muito limitado. Por outro lado, em sua apresentação, a filósofa Isabelle Stengers e o editor Philippe Pignarre escreveram com lucidez: “Na França, os que fazem política têm o hábito de desconfiar de tudo o que diz respeito à espiritualidade, que rapidamente taxam como algo de extrema direita”. Isso já não é mais verdade, quinze anos depois. Na França, assim como nos Estados Unidos, jovens feministas, mas também homens gays e trans, praticam a magia e têm uma conduta política. Como explicar essa evolução?
Aquelas e aqueles que se ocupam da bruxaria atualmente cresceram com Harry Potter ou com as séries Charmed – cujas heroínas são três irmãs feiticeiras – e Buffy, a Caça-Vampiros – na qual Willow, uma colegial inicialmente tímida e apagada, torna-se uma poderosa feiticeira. Além disso, a magia aparece paradoxalmente como um recurso muito pragmático, uma maneira de se ancorar no mundo e na existência em uma época em que tudo parece querer nos precarizar e enfraquecer. Talvez também a catástrofe ecológica, cada vez mais evidente, tendo diminuído o prestígio e o poder de intimidação da sociedade técnica, suprima as inibições de se declarar bruxa. Quando um sistema de percepção do mundo que se apresenta como supremamente racional consegue destruir o meio vital da humanidade, podemos ser levados a questionar o que nos acostumamos a incluir nas categorias do racional e do irracional.
Cada vez mais, assistimos, como na época da caça às bruxas, a um fortalecimento de todas as formas de dominação, simbolizado pela presença na direção do país mais poderoso do mundo de um biliardário que professa misoginia e racismo sem o menor pudor. Assim, a magia aparece de novo como a arma dos oprimidos. A bruxa surge no crepúsculo, no momento das angústias vesperais, quando tudo parece perdido. É ela que consegue achar reservas de esperança no âmago do desespero.
*Mona Chollet é jornalista do Le Monde Diplomatique. Ela acaba de publicar Sorcières. La puissance invaincue des femmes [Bruxas. A força invencível das mulheres], Éditions Zones, Paris.
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SÍMBOLO FEMINISTA RETOMA POPULARIDADE
Tremam, as bruxas estão de volta!
A Europa do Renascimento executou como “bruxas”
dezenas de milhares de mulheres. Pelo desafio, as feministas dos anos
1970 reivindicaram essa identidade, por vezes somando a essa decisão
política uma prática espiritual ligada ao mundo natural. Hoje, enquanto a
relação da humanidade com seu meio é caótica, as bruxas assombram
novamente o Ocidente
Na França também as feiticeiras se manifestam. Vimos em Paris e em Toulouse, nas manifestações de setembro de 2017 contra a degradação das leis trabalhistas, um bloco de bruxas feministas e anarquistas desfilando com uma faixa “Macron au chaudron” (“Macron no caldeirão”). Isabelle Cambourakis lançou, em 2015, pela editora de sua família, uma coleção feminista denominada Bruxas; nela se encontram especialmente o Guide du féminisme divinatoire [Guia do feminismo divinatório] (2018), de Camille Ducellier, cineasta responsável pelo documentário Sorcières, mes sœurs [Bruxas, minhas irmãs] (Larsens Production, 2010). A jovem autora Jack Parker – Taous Merakchi pelo estado civil – assume tranquilamente sua prática da magia, à qual dedicou durante uns meses, em 2017-2018, um boletim informativo intitulado “Witch, Please” [Bruxa, por favor]. Como nos Estados Unidos, a estética ligada à feitiçaria invadiu o Instagram (#WitchesOfInstagram, “Bruxas do Instagram”); lojas on-line vendem velas, livros de magia, ervas e cristais. Com livros como Âme de sorcière [Alma de feiticeira], de Odile Chabrillac (Solar, 2017), e La Puissance du féminin [A força do feminino], de Camille Sfez (Leduc.s, 2018), o desenvolvimento pessoal também ganha ares decididamente místicos.
Espiritualidade progressista
A referência à bruxaria pode se inscrever em um comportamento político, espiritual… ou nos dois ao mesmo tempo. No âmbito político, as feministas ocidentais fazem da feiticeira um símbolo há muito tempo: “Somos netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”, diz um célebre slogan. Elas salientam o fato de cerca de 50 mil a 100 mil pessoas executadas por bruxaria na Europa, principalmente nos séculos XVI e XVII,2 serem em sua maioria mulheres. Na verdade, elas representavam 80% dos acusados e 85% dos condenados, tendo sido os homens muitas vezes incriminados por associação. A campanha conduzida entre 1587 e 1593 em 22 povoados das redondezas de Tréveris, na Alemanha, por exemplo, foi tão feroz que dois deles não deixaram mais que uma mulher viva; foram queimadas 368.3 A historiadora Anne L. Barstow associa essas caças a uma “explosão de misoginia”.4 O martelo das feiticeiras (Malleus maleficarum), publicado pelos dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger em 1487, instila o ódio às mulheres: “As bruxas são insignificantes”, garante o texto que serviu de breviário para os juízes em todos os processos dos séculos seguintes; se não houvesse a “malícia” das mulheres, “mesmo sem falar das bruxas, o mundo seria livre de inúmeros perigos”.
As vítimas, em sua imensa maioria originárias das classes populares, podiam ser curandeiras ou simplesmente mulheres consideradas muito dinâmicas, que falavam com audácia. As solteiras e as viúvas, assim como as idosas, eram a maioria delas. Algumas eram acusadas de bruxaria quando tentavam denunciar um crime. Assim, em 1679, em Marchiennes (norte da França), Péronne Goguillon escapou por pouco de uma tentativa de estupro por quatro soldados bêbados. Ao denunciá-los, seu marido chamou a atenção para a má reputação de sua esposa: ela foi queimada como bruxa.5 Do mesmo modo, a biógrafa de Anna Göldi – provavelmente a última “bruxa” da Europa, decapitada em Glaris (Suíça) em 1782 – encontrou vestígio de uma queixa por assédio sexual que ela havia registrado contra o médico que a empregava como empregada doméstica.6 Avalia-se até que ponto é cinismo aplicar, atualmente, a expressão “caça às bruxas” ao movimento #MeToo (“Eu também”), que denuncia os agressores sexuais…
A primeira a revisitar essa história foi a norte-americana Matilda Joslyn Gage (1826-1898), que militava ao mesmo tempo pelo sufrágio feminino, pelos direitos dos ameríndios e pela abolição da escravatura. Ela foi condenada por ter ajudado escravos a fugir. Em Woman, Church and State [Mulher, Igreja e Estado], em 1893, ela fez uma leitura feminista da caça às bruxas: “Quando, em vez de ‘bruxas’, escolhemos ler ‘mulheres’, ganhamos uma melhor compreensão das crueldades infligidas pela Igreja a essa parte da humanidade”. Gage inspirou em seu genro, o escritor Lyman Frank Baum, a personagem de Glinda, a Bruxa Boa do Sul, em O Mágico de Oz. Ao adaptar o romance para o cinema, em 1939, Victor Fleming deu origem à primeira “bruxa boa” da cultura popular.7
A segunda onda do feminismo também redescobriu essa figura. Em 1968, no dia de Halloween, em Nova York, surgiu o movimento Witch – Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell (Conspiração Terrorista Internacional de Mulheres do Inferno), cujos membros desfilaram na Wall Street e dançaram a sarabanda, vestidas com capas pretas, em frente à Bolsa de Valores. “Com os olhos fechados, a cabeça baixa, as mulheres entoaram um canto berbere (sagrado aos olhos das bruxas da Argélia) e proclamaram a queda iminente de diversas ações. Poucas horas depois, o mercado fechou em baixa de um ponto e meio e, no dia seguinte, caiu cinco pontos”, contou alguns anos depois uma delas, Robin Morgan.8 Na França, a revista Sorcières [Bruxas] foi publicada em Paris entre 1976 e 1981 sob a direção de Xavière Gauthier; cabe também mencionar a canção de Anne Sylvestre, “Une sorcière comme les autres” [Uma bruxa como as outras], de 1975. Na Itália, na mesma época, as feministas bradaram destacando as sílabas: “Tremam, tremam, as bruxas estão de volta!”.
Foi a californiana Starhawk – nascida Miriam Simos, em 1951 – que fez a articulação entre a reivindicação feminista e a prática espiritual. Starhawk faz parte do quadro amplo da Wicca, a religião neopagã, na qual ela encarna uma corrente feminista e progressista. Ela participou com seu coven (clã de bruxas) de todos os encontros altermundialistas: manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, em 1999; contra o G8 em Gênova; e contra a Cúpula das Américas em Quebec, em 2001; e do Fórum Social de Porto Alegre.9 Como a filósofa Silvia Federici,10 ela vê nas caças às bruxas um dos acontecimentos que preparou o terreno para o desenvolvimento do capitalismo no século XVIII. Em Rêver l’obscur [Sonhar com o obscuro], ela descreve os grandes distúrbios que as acompanharam: a privatização das terras outrora cultivadas coletivamente, que acabou com as comunidades e privou as mais frágeis de seus meios de subsistência; e o nascimento de uma relação com a natureza conquistadora e agressiva. Desde então, a prática da feitiçaria e o culto à Deusa, além de reabilitar o corpo feminino odiado e martirizado pelos caçadores de bruxas, representam um meio de restabelecer os vínculos que foram desfeitos.
A bruxaria combate, de alguma maneira, os domínios culturais profundos sobre os quais se apoia o capitalismo. De fato, ele se impôs pela força, certamente, mas também pela sedução, por suas afinidades com uma forma de razão dominante que permitiu ver o mundo como um conjunto de recursos inertes que deveria ser explorado e valorizado.11 A magia satisfaz, desde então, uma necessidade de encontrar uma nova forma de se inscrever em seu meio vital. Se, por um lado, todas elas buscam a conexão com os elementos e se mostram atentas aos ciclos das estações, às fases da Lua e à circulação da energia no Universo, por outro, as bruxas modernas se distinguem por uma prática muito livre, sem dogmas, e demandam a invenção de ritos de acordo com suas necessidades. Starhawk conta, por exemplo, como surgiu o rito que ela e suas amigas seguem para festejar o solstício de inverno: “Durante um dos primeiros solstícios que celebramos, fomos à praia aguardar o pôr do sol antes do nosso ritual da noite. Uma mulher disse: ‘Tiremos a roupa e saltemos na água! Vamos, ousemos!’. Eu me lembro de ter-lhe respondido: ‘Você está louca!’ , mas tiramos. Depois de alguns anos, tivemos a ideia de acender uma fogueira, uma forma de acabar com a hipotermia, e assim nasceu uma tradição. (Quando você faz uma coisa uma vez, é uma experiência. Quando a faz duas vezes, é uma tradição!)”.12
Por onde passa, a bruxaria atual inventa uma forma de espiritualidade progressista e reivindica uma ligação com a natureza sem, no entanto, aceitar as “naturalidades” de tipo reacionário. Não se trata de celebrar um feminino forçosamente maternal, doce e alimentador e de proibir o aborto – o que, aliás, seria um contrassenso histórico, uma vez que as curandeiras, outrora perseguidas por bruxaria, também eram aborteiras e desencadearam o furor de um poder político e religioso cada vez mais obcecado pela natalidade após a grande peste do século XIV. Não se trata, tampouco, de reproduzir uma norma heterossexual: “Todos os dias agradeço à Deusa por ser gay”, proclamava uma faixa do grupo Witch na Parada Gay de Portland, em junho de 2018. Após a publicação de seu primeiro livro, A dança cósmica das feiticeiras, em 1979, Starhawk recebeu inúmeras críticas por ter apresentado uma visão cristalizada e meio estereotipada das categorias do masculino e do feminino; ela levou em conta e fez retificações nas edições seguintes. Achamos essa atitude aberta na corrente do ecofeminismo, que reúne as mesmas preocupações que a feitiçaria feminista. A experiência incompreendida da “volta à terra” das comunidades separatistas lésbicas nos anos 1970 em Oregon13 comprova isso. “Por que deixar aos heterossexuais o monopólio de uma sexualidade ‘natural’ e pensar que os movimentos de homossexuais só conseguiram se desenvolver nas cidades, longe da natureza e contra ela?”, pergunta Catherine Larrère. A filósofa não vê “o menor motivo para construir o feminismo negando a natureza”.14
A primeira tradução francesa do livro Rêver l’obscur [Sonhar com o obscuro], de Starhawk, com o título Femmes, magie et politique [Mulheres, magia e política], (publicada pela editora Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2003), teve um eco muito limitado. Por outro lado, em sua apresentação, a filósofa Isabelle Stengers e o editor Philippe Pignarre escreveram com lucidez: “Na França, os que fazem política têm o hábito de desconfiar de tudo o que diz respeito à espiritualidade, que rapidamente taxam como algo de extrema direita”. Isso já não é mais verdade, quinze anos depois. Na França, assim como nos Estados Unidos, jovens feministas, mas também homens gays e trans, praticam a magia e têm uma conduta política. Como explicar essa evolução?
Aquelas e aqueles que se ocupam da bruxaria atualmente cresceram com Harry Potter ou com as séries Charmed – cujas heroínas são três irmãs feiticeiras – e Buffy, a Caça-Vampiros – na qual Willow, uma colegial inicialmente tímida e apagada, torna-se uma poderosa feiticeira. Além disso, a magia aparece paradoxalmente como um recurso muito pragmático, uma maneira de se ancorar no mundo e na existência em uma época em que tudo parece querer nos precarizar e enfraquecer. Talvez também a catástrofe ecológica, cada vez mais evidente, tendo diminuído o prestígio e o poder de intimidação da sociedade técnica, suprima as inibições de se declarar bruxa. Quando um sistema de percepção do mundo que se apresenta como supremamente racional consegue destruir o meio vital da humanidade, podemos ser levados a questionar o que nos acostumamos a incluir nas categorias do racional e do irracional.
Cada vez mais, assistimos, como na época da caça às bruxas, a um fortalecimento de todas as formas de dominação, simbolizado pela presença na direção do país mais poderoso do mundo de um biliardário que professa misoginia e racismo sem o menor pudor. Assim, a magia aparece de novo como a arma dos oprimidos. A bruxa surge no crepúsculo, no momento das angústias vesperais, quando tudo parece perdido. É ela que consegue achar reservas de esperança no âmago do desespero.
*Mona Chollet é jornalista do Le Monde Diplomatique. Ela acaba de publicar Sorcières. La puissance invaincue des femmes [Bruxas. A força invencível das mulheres], Éditions Zones, Paris.
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