https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-sexologia-politica/
O sexo, por tanto tempo perseguido e demonizado, tantas vezes falado e pesquisado, vem sendo deixado de lado em muitas análises que se beneficiariam de uma atenção maior ao seu âmbito. Tornado algo banal e corriqueiro, presença cada vez mais comum nos programas e novelas de televisão, o sexo vem sendo subestimado em nossa vida social. É como se, de tanto aparecer, ele tivesse perdido a sua força. Ninguém mais quer saber de sexo. Todo o interesse que havia no sexo dos jovens, dos casais, dos burgueses, das mulheres, dos religiosos, dos amantes deixou de ser importante diante de um único tema, a perversão da pedofilia.
Hoje em dia só se fala em pedofilia. Como se tudo o que diz respeito ao sexo estivesse bem, exceto a pedofilia. A propósito, seu uso estratégico na campanha presidencial brasileira, com a fabricação de uma imagem perversa de uma “mamadeira em forma de pênis”, se não chegou a substituir o uso estratégico dado à corrupção na fabricação de inimigos, certamente reforça a ideia de que a esquerda é o mal. A estratégia dos grupos que criaram essa mamadeira e dedicam-se a sustentar a mentira do “kit-gay” segue sem limites ao imaginário voltado à produção de uma narrativa da perversão da esquerda. A esquerda corrupta e pedófila é traduzida para o cidadão comum como a imagem do mal. Resta, a quem tiver tempo, divagar sobre o uso que se deu a esse objeto pornográfico em posse dos adultos que o inventaram.
A questão da pedofilia é das mais sérias e graves. Ela representa um limite para a compreensão, sobretudo porque as crianças são sujeitos vitimados que não têm como defender ou responder por si mesmos. Não há espaço para nos dedicarmos a esse tema no momento. Mas é importante levantar a questão para que possamos compreender o horizonte ao qual dedicamos nossa atenção.
Por muito tempo, o Brasil levou fama de país liberado sexualmente. Ainda em vigência fora do país, a imagem dos trópicos erotizados mostra mais do que uma mera fantasia. Está sempre em jogo o interesse ou a projeção dos colonizadores na sexualidade dos colonizados que, segundo os clichês de sempre, viveriam soltos em praias, matas e ilhas selvagens, a gastar seu tempo infinito em orgias longe de culpas cristãs. O campo do desejo é o campo de mil projeções, onde surge todo tipo de delírio. Os índices de assassinatos de pessoas LGBTs e de feminicídios, de estupros e violência doméstica sempre relacionadas também à questão de gênero, demonstram a falta de sentido dessas fantasias. Misoginia, homofobia, LGBTfobia são provas de que não estamos de bem com o desejo em termos coletivos e culturais, de que há algo que ainda não foi elaborado entre nós no campo da sexualidade. A proximidade entre sexualidade e morte é uma pista que devemos seguir para entender o estágio atual do autoritarismo brasileiro.
O poder se coloca entre a sexualidade e a morte em seu lugar mais confortável. Se seguirmos Foucault em suas investigações históricas e filosóficas sobre a sexualidade, podemos entendê-la como o conjunto dos discursos e práticas, as tentativas de compreender e teorizar, o imaginário e o simbólico em torno da ideia de sexo. Sexo é o que se diz e o que se faz, o que se imagina, o que se usa, o que se troca, se dá ou se vende em seu nome. Sexo é o objeto de teorias, de pesquisas, de leis e instituições. Sexo é um objeto de poder, ou até mesmo uma forma de poder.
Assim como o gênero, sexo pode nos servir como categoria de análise válida para pensar a nossa época. Precisamos falar mais em sexo, em identidades e diferenças sexuais, em violências e abusos envolvendo o lugar do sexo. É preciso falar de sexo como categoria de análise, assim como se deve falar de capital, de Deus e de poder. Perceber a função dessas categorias em nossa vidas é o caminho da nossa libertação de dominações e violências que nos são impostas.
Aquilo que é tratado pelo senso comum ou pelas instituições de maneira fundamentalista deve ser sempre investigado criticamente. A pergunta que podemos nos colocar, portanto, diz respeito ao que essas categorias têm a nos dizer quando somos corpos viventes e sobreviventes que lutam contra opressões em nome de direitos básicos, tais como simplesmente existir.
Ora, quando falamos de sexo estamos também a falar de vida, de desejo, de potencialidades, de erotismos, de ludicidades e, necessariamente, de todo um modo de estar no mundo que, em termos simples, foi chamado de alegria de viver, algo que se perdeu do cotidiano ao ser transformado em mercadoria ao alcance apenas do capital.
Há uma aliança entre sexo e poder, uma aliança sustentada em um acordo de aparências que devemos compreender. O sexo tem sido mantido em um nível inconsciente e, justamente por meio disso, livrado da responsabilidade que, assumida, reinscreveria o sexo na ordem do desejo e o salvaria da ordem do poder no qual ele é usado contra a própria vida. É porque o sexo está a serviço do poder, porque foi sequestrado por ele, que o desejo vai mal. Na guerra de todos contra todos, que se torna cada vez mais visível, devemos voltar a Freud. À oposição entre pulsão de vida e de morte. Tânatos impera contra Eros em nossa cultura. A morte é um princípio, um ambiente mais atraente do que a vida porque, de fato, não há mais espaço e tempo para o prazer. Mas por que o prazer se perdeu dando lugar ao que chamamos de “gozo perverso”? O gozo do ódio e da ignorância? O gozo da maldade?
Uma análise mais profunda da sexualidade em nossa época se faz mais do que necessária. Para isso, é urgente uma ciência adequada ao objeto. Darei a ela o nome provisório de sexologia política. Essa ciência interdisciplinar surge a partir dos esforços da psicanálise, da estética, da filosofia, da antropologia, da semiótica, da reflexão no campo da ética e da ciência política. Essa ciência não busca apenas o conhecimento, mas um enfrentamento dos fantasmas que são produzidos por sujeitos especializados em mistificar nossas vidas humanas, simples e crédulas. Com o objetivo de descortinar as relações entre sexo e poder é que criamos a sexologia política e oferecemos, os trabalhos que seguem, alguns sinais iniciais do que essa ciência pode vir a ser.
O lugar da covardia entre o poder e o sexo
Muitos dizem não acreditar nas promessas hiperautoritárias de cancelamento de direitos e até matanças de opositores feitas pelo novo presidente do Brasil e alguns governadores eleitos nos estados. Há quem, da boca para fora ou de fato, concorde com o assassinato em massa, mas muita gente não acredita que se possa chegar a tanto. É certo que os motivos pelos quais não se pode acreditar no que vem sendo pregado envolve, de um lado, a negação do horror. O desejo de que o que se promete não aconteça ou a aposta de que as pessoas eleitas não sejam tão loucas ou tão más pode ser real.
Curiosa, no entanto, é a manifestação de não se acreditar nas promessas, quando esses candidatos, na verdade, não prometiam muito mais do que isso. Quem saberia dar resposta à pergunta sobre o que eles realmente prometiam além da aniquilação do inimigo? Ora, levar a sério a “descrença” é urgente quando ela se torna um fator eleitoral no ato em que se elegem candidatos sem outras propostas além de matar seus opositores.
De fato, o ódio a um “inimigo”, essa outra figura que emerge na política contemporânea, vem sendo fundamental há anos no Brasil. Por menos impactante que seja a descrença quando comparada ao ódio, ela pode não ser muito diferente dele. Sua função concreta é a de servir de desculpa para dar aval à matança. Se ainda se pode ter alguma vergonha em relação ao ódio que se sente, e certa culpa, a descrença vem a apaziguar de toda culpa. Aquele que diz “não acreditar” vive menos o seu próprio ódio no instante em que ele é recalcado. Aquele que não acredita talvez não seja nem cínico, nem hipócrita, nem simplesmente uma vítima do seu próprio recalque. Talvez ele nos revele uma outra categoria importante para a análise política, a covardia. Tão covarde quanto aquele que ameaça matar enquanto posa de valentão é aquele que diz não acreditar para não posar de culpado.
Ao falarmos de covardia, nos referimos a um vício moral por oposição à virtude da coragem. Covarde é a figura de uma negação. Do sujeito “em cima do muro” ao que disfarça, há o fraco que enfrenta os mais fracos para parecer forte. Mas a covardia é mais do que uma filosofia das virtudes morais poderia nos sugerir. A covardia é também uma tática do poder muito bem utilizada e administrada. Há uma figura da covardia complexa no Brasil, aquele que se mostra valentão ameaçando matar e ao mesmo tempo conta com um covarde que não quer acreditar. Em geral, o cínico que está no poder é também um covarde que convence um outro, que coloca esse outro na posição de otário. Esperto, ele vive de administrar um grande escamoteamento.
Mas não é só o elo que une cínicos e otários, ou mistificadores e descrentes, o que está em jogo. A maior parte dos que não elegeram o mal também não acreditam que ele seja possível. Sabemos que, na Alemanha nazista, muitos não acreditaram, sejam alemães ou judeus, sejam sobreviventes ou vítimas. A descrença acoberta a covardia e, por isso mesmo, é valorizada.
Tendo isso em vista, podemos nos colocar a questão sexual. No Brasil das últimas décadas, os jogos de poder político se fazem como jogos sexuais. Jogos em que a linguagem sexual assume uma característica eminentemente política de um modo que nos obriga à análise.
É nesse sentido que coragem e covardia são mais do que problemas morais, são problemas políticos. Podemos falar de coragem ou covardia para respeitar a democracia, por exemplo. Mas devemos, a partir dessas categorias, levantar outra hipótese que pode nos ajudar a descortinar os jogos de poder político no Brasil. Isso porque a questão da oposição entre coragem e covardia encontrou uma configuração que até agora permanece não analisada.
Coragem e covardia são também categorias que nos permitem pensar a sexualidade. Levando a sério que o sexo é um dispositivo de poder, tal como expresso na teoria de Foucault, gostaria de sustentar que há entre nós jogos de poder que são, em tudo, não apenas aplicação do dispositivo, ou seja, um certo uso que se faz do sexo, por exemplo, tornando-o algo incompreensível e sempre passível de uma “vontade de saber”. É verdade que o sexo se confunde com o poder e é por ele usado, mas do mesmo modo o sexo também usa o poder. Nesse caso, o sexo não seria algo simplesmente submetido ao poder. Hetero e homossexualidade são “cenas” do poder ou de um contrapoder. A heterossexualidade é a ideologia em vigência. Ideologia, por sua vez, nada mais é do que a grande mentira na qual todos estão mergulhados como se ela fosse a grande verdade. Isso não quer dizer que a homossexualidade seja a verdade, apenas que, na lógica do poder, ela faz outro papel.
Em certa época se falou muito de “orgulho gay”, mas hoje em dia podemos falar em algo como “coragem LGBT”. A coragem é a capacidade de assumir, de não esconder, em oposição à covardia que sempre escamoteia. A coragem LGBT vem sendo fortemente combatida há séculos e com mais força há anos no Brasil autoritário, pois ela rompe com regras de um jogo previamente estabelecido pelos representantes da heterossexualidade compulsória que estão desde sempre no poder, pelos donos do poder que fazem a cena da heterossexualidade. O poder tradicional se sustenta por meio da aparência da heterossexualidade como podemos ver no estilo “tradição, família, propriedade”, ele mesma uma pura ideologia, um arranjo mais estético do que moral.
Um rombo na subjetividade, o retorno de Tânatos
Todos os que vociferam contra a vida alheia querem não apenas que os outros morram, mas querem também morrer. A subjetividade à qual demos o nome de fascista é esfacelada, efeito de um grande rombo produzido por relações doentias e más. Sejam os fascistas de Estado, aqueles que ocupam cargos de poder, sejam os “fascistas em potencial” do dia a dia, todos têm um profundo rombo na subjetividade. Esse rombo interno é ocultado por um véu de agressividade que se torna estilo de ser e de viver e, no limite, objeto de mistificação. A agressividade é um valor que os otários submissos reconhecem em seu líder cínico autoritário.
Ora, o que uma subjetividade fascista deseja é o que ela justamente projeta para fora de si por meio da linguagem e de seus atos. O desejo de morrer. Ela sabe quais são seus próprios crimes. Ela é movida pelo desejo de matar, um desejo de matar que é projeção de um desejo infinitamente mais radical, o de morrer. Não há Deus, drogas, dinheiro que seja suficiente para conter esse desejo irrealizável, pois o sujeito está já morto. Quem possa vir a conter esse desejo com alguma promessa de vida deve ser eliminado. Pois viver também não é possível.
Sexo, da misoginia e da homofobia à fama
Dito tudo isso, podemos falar do uso político da sexualidade nos últimos anos. Não foi por acaso que Dilma Rousseff foi objeto de tanta misoginia. Sexo é uma categoria de análise tanto quanto gênero, e também ajuda a entender o seu caso. Mas ajuda a entender também a ascensão de Bolsonaro.
A homofobia mostra-se hoje como um padrão bastante manipulável no contexto autoritário. Ela não é mais rejeitada ou ocultada por vergonha. Com Jean Wyllys, a homossexualidade foi objeto de preconceito, mas não por si mesma. O mal de Jean foi declarar-se a partir de seu “orgulho gay”, a coragem LGBT de nossos dias. Ao declarar-se como o único deputado que assume sua homossexualidade, ele quebrou com um acordo prévio sobre o ocultamento da homossexualidade que garante o poder derivado da cena “tradição, família, propriedade”. Ele rompeu com a hipocrisia e praticou a maior heresia possível, uma heresia tão imensa quanto ser uma mulher incorruptível e de esquerda, como Dilma Rousseff, e ousar ser presidenta de uma república autoritária e machista comandada por corporações midiáticas.
Há uma camada mais complexa e incontornável da sexualidade, ela diz respeito ao desejo, mas a um desejo que, deixando de ser vivido de modo saudável, se deixa corromper em ódio. Esse desejo se expressa como ordem de matar. Ora, o ódio é um afeto marcado por projeções. Odeia-se aquilo que se deseja e não se pode ter por falta de autorização externa ou interna. Destruir aquilo que se deseja e não se pode ter é uma regra do inconsciente. Que o Brasil seja o campeão em assassinatos de pessoas LGBTs é um sintoma de algo que nossa sexologia política deve nos ajudar a compreender e superar.
Dossiê | Sexologia política
Edição do mêsSexo é um objeto de poder, ou até mesmo uma forma de poder (Arte Andreia Freire/Revista CULT)
O sexo, por tanto tempo perseguido e demonizado, tantas vezes falado e pesquisado, vem sendo deixado de lado em muitas análises que se beneficiariam de uma atenção maior ao seu âmbito. Tornado algo banal e corriqueiro, presença cada vez mais comum nos programas e novelas de televisão, o sexo vem sendo subestimado em nossa vida social. É como se, de tanto aparecer, ele tivesse perdido a sua força. Ninguém mais quer saber de sexo. Todo o interesse que havia no sexo dos jovens, dos casais, dos burgueses, das mulheres, dos religiosos, dos amantes deixou de ser importante diante de um único tema, a perversão da pedofilia.
Hoje em dia só se fala em pedofilia. Como se tudo o que diz respeito ao sexo estivesse bem, exceto a pedofilia. A propósito, seu uso estratégico na campanha presidencial brasileira, com a fabricação de uma imagem perversa de uma “mamadeira em forma de pênis”, se não chegou a substituir o uso estratégico dado à corrupção na fabricação de inimigos, certamente reforça a ideia de que a esquerda é o mal. A estratégia dos grupos que criaram essa mamadeira e dedicam-se a sustentar a mentira do “kit-gay” segue sem limites ao imaginário voltado à produção de uma narrativa da perversão da esquerda. A esquerda corrupta e pedófila é traduzida para o cidadão comum como a imagem do mal. Resta, a quem tiver tempo, divagar sobre o uso que se deu a esse objeto pornográfico em posse dos adultos que o inventaram.
A questão da pedofilia é das mais sérias e graves. Ela representa um limite para a compreensão, sobretudo porque as crianças são sujeitos vitimados que não têm como defender ou responder por si mesmos. Não há espaço para nos dedicarmos a esse tema no momento. Mas é importante levantar a questão para que possamos compreender o horizonte ao qual dedicamos nossa atenção.
Por muito tempo, o Brasil levou fama de país liberado sexualmente. Ainda em vigência fora do país, a imagem dos trópicos erotizados mostra mais do que uma mera fantasia. Está sempre em jogo o interesse ou a projeção dos colonizadores na sexualidade dos colonizados que, segundo os clichês de sempre, viveriam soltos em praias, matas e ilhas selvagens, a gastar seu tempo infinito em orgias longe de culpas cristãs. O campo do desejo é o campo de mil projeções, onde surge todo tipo de delírio. Os índices de assassinatos de pessoas LGBTs e de feminicídios, de estupros e violência doméstica sempre relacionadas também à questão de gênero, demonstram a falta de sentido dessas fantasias. Misoginia, homofobia, LGBTfobia são provas de que não estamos de bem com o desejo em termos coletivos e culturais, de que há algo que ainda não foi elaborado entre nós no campo da sexualidade. A proximidade entre sexualidade e morte é uma pista que devemos seguir para entender o estágio atual do autoritarismo brasileiro.
O poder se coloca entre a sexualidade e a morte em seu lugar mais confortável. Se seguirmos Foucault em suas investigações históricas e filosóficas sobre a sexualidade, podemos entendê-la como o conjunto dos discursos e práticas, as tentativas de compreender e teorizar, o imaginário e o simbólico em torno da ideia de sexo. Sexo é o que se diz e o que se faz, o que se imagina, o que se usa, o que se troca, se dá ou se vende em seu nome. Sexo é o objeto de teorias, de pesquisas, de leis e instituições. Sexo é um objeto de poder, ou até mesmo uma forma de poder.
Assim como o gênero, sexo pode nos servir como categoria de análise válida para pensar a nossa época. Precisamos falar mais em sexo, em identidades e diferenças sexuais, em violências e abusos envolvendo o lugar do sexo. É preciso falar de sexo como categoria de análise, assim como se deve falar de capital, de Deus e de poder. Perceber a função dessas categorias em nossa vidas é o caminho da nossa libertação de dominações e violências que nos são impostas.
Aquilo que é tratado pelo senso comum ou pelas instituições de maneira fundamentalista deve ser sempre investigado criticamente. A pergunta que podemos nos colocar, portanto, diz respeito ao que essas categorias têm a nos dizer quando somos corpos viventes e sobreviventes que lutam contra opressões em nome de direitos básicos, tais como simplesmente existir.
Ora, quando falamos de sexo estamos também a falar de vida, de desejo, de potencialidades, de erotismos, de ludicidades e, necessariamente, de todo um modo de estar no mundo que, em termos simples, foi chamado de alegria de viver, algo que se perdeu do cotidiano ao ser transformado em mercadoria ao alcance apenas do capital.
Há uma aliança entre sexo e poder, uma aliança sustentada em um acordo de aparências que devemos compreender. O sexo tem sido mantido em um nível inconsciente e, justamente por meio disso, livrado da responsabilidade que, assumida, reinscreveria o sexo na ordem do desejo e o salvaria da ordem do poder no qual ele é usado contra a própria vida. É porque o sexo está a serviço do poder, porque foi sequestrado por ele, que o desejo vai mal. Na guerra de todos contra todos, que se torna cada vez mais visível, devemos voltar a Freud. À oposição entre pulsão de vida e de morte. Tânatos impera contra Eros em nossa cultura. A morte é um princípio, um ambiente mais atraente do que a vida porque, de fato, não há mais espaço e tempo para o prazer. Mas por que o prazer se perdeu dando lugar ao que chamamos de “gozo perverso”? O gozo do ódio e da ignorância? O gozo da maldade?
Uma análise mais profunda da sexualidade em nossa época se faz mais do que necessária. Para isso, é urgente uma ciência adequada ao objeto. Darei a ela o nome provisório de sexologia política. Essa ciência interdisciplinar surge a partir dos esforços da psicanálise, da estética, da filosofia, da antropologia, da semiótica, da reflexão no campo da ética e da ciência política. Essa ciência não busca apenas o conhecimento, mas um enfrentamento dos fantasmas que são produzidos por sujeitos especializados em mistificar nossas vidas humanas, simples e crédulas. Com o objetivo de descortinar as relações entre sexo e poder é que criamos a sexologia política e oferecemos, os trabalhos que seguem, alguns sinais iniciais do que essa ciência pode vir a ser.
O lugar da covardia entre o poder e o sexo
Muitos dizem não acreditar nas promessas hiperautoritárias de cancelamento de direitos e até matanças de opositores feitas pelo novo presidente do Brasil e alguns governadores eleitos nos estados. Há quem, da boca para fora ou de fato, concorde com o assassinato em massa, mas muita gente não acredita que se possa chegar a tanto. É certo que os motivos pelos quais não se pode acreditar no que vem sendo pregado envolve, de um lado, a negação do horror. O desejo de que o que se promete não aconteça ou a aposta de que as pessoas eleitas não sejam tão loucas ou tão más pode ser real.
Curiosa, no entanto, é a manifestação de não se acreditar nas promessas, quando esses candidatos, na verdade, não prometiam muito mais do que isso. Quem saberia dar resposta à pergunta sobre o que eles realmente prometiam além da aniquilação do inimigo? Ora, levar a sério a “descrença” é urgente quando ela se torna um fator eleitoral no ato em que se elegem candidatos sem outras propostas além de matar seus opositores.
De fato, o ódio a um “inimigo”, essa outra figura que emerge na política contemporânea, vem sendo fundamental há anos no Brasil. Por menos impactante que seja a descrença quando comparada ao ódio, ela pode não ser muito diferente dele. Sua função concreta é a de servir de desculpa para dar aval à matança. Se ainda se pode ter alguma vergonha em relação ao ódio que se sente, e certa culpa, a descrença vem a apaziguar de toda culpa. Aquele que diz “não acreditar” vive menos o seu próprio ódio no instante em que ele é recalcado. Aquele que não acredita talvez não seja nem cínico, nem hipócrita, nem simplesmente uma vítima do seu próprio recalque. Talvez ele nos revele uma outra categoria importante para a análise política, a covardia. Tão covarde quanto aquele que ameaça matar enquanto posa de valentão é aquele que diz não acreditar para não posar de culpado.
Ao falarmos de covardia, nos referimos a um vício moral por oposição à virtude da coragem. Covarde é a figura de uma negação. Do sujeito “em cima do muro” ao que disfarça, há o fraco que enfrenta os mais fracos para parecer forte. Mas a covardia é mais do que uma filosofia das virtudes morais poderia nos sugerir. A covardia é também uma tática do poder muito bem utilizada e administrada. Há uma figura da covardia complexa no Brasil, aquele que se mostra valentão ameaçando matar e ao mesmo tempo conta com um covarde que não quer acreditar. Em geral, o cínico que está no poder é também um covarde que convence um outro, que coloca esse outro na posição de otário. Esperto, ele vive de administrar um grande escamoteamento.
Mas não é só o elo que une cínicos e otários, ou mistificadores e descrentes, o que está em jogo. A maior parte dos que não elegeram o mal também não acreditam que ele seja possível. Sabemos que, na Alemanha nazista, muitos não acreditaram, sejam alemães ou judeus, sejam sobreviventes ou vítimas. A descrença acoberta a covardia e, por isso mesmo, é valorizada.
Tendo isso em vista, podemos nos colocar a questão sexual. No Brasil das últimas décadas, os jogos de poder político se fazem como jogos sexuais. Jogos em que a linguagem sexual assume uma característica eminentemente política de um modo que nos obriga à análise.
É nesse sentido que coragem e covardia são mais do que problemas morais, são problemas políticos. Podemos falar de coragem ou covardia para respeitar a democracia, por exemplo. Mas devemos, a partir dessas categorias, levantar outra hipótese que pode nos ajudar a descortinar os jogos de poder político no Brasil. Isso porque a questão da oposição entre coragem e covardia encontrou uma configuração que até agora permanece não analisada.
Coragem e covardia são também categorias que nos permitem pensar a sexualidade. Levando a sério que o sexo é um dispositivo de poder, tal como expresso na teoria de Foucault, gostaria de sustentar que há entre nós jogos de poder que são, em tudo, não apenas aplicação do dispositivo, ou seja, um certo uso que se faz do sexo, por exemplo, tornando-o algo incompreensível e sempre passível de uma “vontade de saber”. É verdade que o sexo se confunde com o poder e é por ele usado, mas do mesmo modo o sexo também usa o poder. Nesse caso, o sexo não seria algo simplesmente submetido ao poder. Hetero e homossexualidade são “cenas” do poder ou de um contrapoder. A heterossexualidade é a ideologia em vigência. Ideologia, por sua vez, nada mais é do que a grande mentira na qual todos estão mergulhados como se ela fosse a grande verdade. Isso não quer dizer que a homossexualidade seja a verdade, apenas que, na lógica do poder, ela faz outro papel.
Em certa época se falou muito de “orgulho gay”, mas hoje em dia podemos falar em algo como “coragem LGBT”. A coragem é a capacidade de assumir, de não esconder, em oposição à covardia que sempre escamoteia. A coragem LGBT vem sendo fortemente combatida há séculos e com mais força há anos no Brasil autoritário, pois ela rompe com regras de um jogo previamente estabelecido pelos representantes da heterossexualidade compulsória que estão desde sempre no poder, pelos donos do poder que fazem a cena da heterossexualidade. O poder tradicional se sustenta por meio da aparência da heterossexualidade como podemos ver no estilo “tradição, família, propriedade”, ele mesma uma pura ideologia, um arranjo mais estético do que moral.
Um rombo na subjetividade, o retorno de Tânatos
Todos os que vociferam contra a vida alheia querem não apenas que os outros morram, mas querem também morrer. A subjetividade à qual demos o nome de fascista é esfacelada, efeito de um grande rombo produzido por relações doentias e más. Sejam os fascistas de Estado, aqueles que ocupam cargos de poder, sejam os “fascistas em potencial” do dia a dia, todos têm um profundo rombo na subjetividade. Esse rombo interno é ocultado por um véu de agressividade que se torna estilo de ser e de viver e, no limite, objeto de mistificação. A agressividade é um valor que os otários submissos reconhecem em seu líder cínico autoritário.
Ora, o que uma subjetividade fascista deseja é o que ela justamente projeta para fora de si por meio da linguagem e de seus atos. O desejo de morrer. Ela sabe quais são seus próprios crimes. Ela é movida pelo desejo de matar, um desejo de matar que é projeção de um desejo infinitamente mais radical, o de morrer. Não há Deus, drogas, dinheiro que seja suficiente para conter esse desejo irrealizável, pois o sujeito está já morto. Quem possa vir a conter esse desejo com alguma promessa de vida deve ser eliminado. Pois viver também não é possível.
Sexo, da misoginia e da homofobia à fama
Dito tudo isso, podemos falar do uso político da sexualidade nos últimos anos. Não foi por acaso que Dilma Rousseff foi objeto de tanta misoginia. Sexo é uma categoria de análise tanto quanto gênero, e também ajuda a entender o seu caso. Mas ajuda a entender também a ascensão de Bolsonaro.
A homofobia mostra-se hoje como um padrão bastante manipulável no contexto autoritário. Ela não é mais rejeitada ou ocultada por vergonha. Com Jean Wyllys, a homossexualidade foi objeto de preconceito, mas não por si mesma. O mal de Jean foi declarar-se a partir de seu “orgulho gay”, a coragem LGBT de nossos dias. Ao declarar-se como o único deputado que assume sua homossexualidade, ele quebrou com um acordo prévio sobre o ocultamento da homossexualidade que garante o poder derivado da cena “tradição, família, propriedade”. Ele rompeu com a hipocrisia e praticou a maior heresia possível, uma heresia tão imensa quanto ser uma mulher incorruptível e de esquerda, como Dilma Rousseff, e ousar ser presidenta de uma república autoritária e machista comandada por corporações midiáticas.
Há uma camada mais complexa e incontornável da sexualidade, ela diz respeito ao desejo, mas a um desejo que, deixando de ser vivido de modo saudável, se deixa corromper em ódio. Esse desejo se expressa como ordem de matar. Ora, o ódio é um afeto marcado por projeções. Odeia-se aquilo que se deseja e não se pode ter por falta de autorização externa ou interna. Destruir aquilo que se deseja e não se pode ter é uma regra do inconsciente. Que o Brasil seja o campeão em assassinatos de pessoas LGBTs é um sintoma de algo que nossa sexologia política deve nos ajudar a compreender e superar.
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