Tuesday 27 September 2011

Luiz Henrique Lopes dos Santos - ética na pesquisa

fonte: fapesp
http://www.fapesp.br/6566


Sobre a integridade ética da pesquisa

(texto de trabalho; FAPESP, abril de 2011)

Luiz Henrique Lopes dos Santos
Membro da Coordenação Adjunta da Diretoria Científica da FAPESP e
Professor Livre Docente, Departamento de Filosofia, FFLCH, USP

            A expressão “integridade da pesquisa” (research integrity) vem sendo utilizada para demarcar um campo particular no interior da ética profissional do cientista, entendida como a esfera total dos deveres éticos a que o cientista está submetido ao realizar suas atividades propriamente científicas. No interior dessa esfera, pode-se distinguir, por um lado, o conjunto dos deveres derivados de valores éticos mais universais que os especificamente científicos. São dessa natureza aqueles que compõem o campo da chamada Bioética, derivados, por exemplo, do valor (não especificamente científico) que é o respeito à integridade física, psicológica e moral dos seres humanos e do interdito (não especificamente científico) de submeter animais a tratamento cruel. É enquanto pesquisador que um cientista se relaciona com os sujeitos e as cobaias de seus experimentos, mas não é por ser um pesquisador que ele deve preservar os direitos dos sujeitos de seus experimentos ou deve ponderar, no planejamento desses experimentos, o possível sofrimento de suas cobaias.
            Por outro lado, a ética profissional do cientista inclui um conjunto de deveres derivados de valores éticos especificamente científicos, isto é, valores que se impõem ao cientista em virtude de seu compromisso com a própria finalidade de sua profissão: a construção coletiva da ciência como um patrimônio coletivo. O princípio desse campo particular da ética profissional é: ao exercer suas atividades científicas, um pesquisador deve sempre visar a contribuir para a construção coletiva da ciência como um patrimônio coletivo, deve abster-se de agir, intencionalmente ou por negligência, de modo a impedir ou prejudicar o trabalho coletivo de construção da ciência e a apropriação coletiva de seus resultados. É a essa parte da ética profissional do cientista que remete a expressão “integridade da pesquisa”. Pretendo aqui explorar, em linhas gerais, o conceito de integridade da pesquisa e, em seguida, esboçar um balanço de como se vem lidando, no mundo, com as questões relativas à integridade da pesquisa.
            Antes disso, porém, cabe uma observação terminológica. Empregarei aqui a palavra “ciência” e seus cognatos em sentido bastante amplo. Para dispor de um termo suficientemente geral para meus propósitos, polêmicas epistemológicas à parte, chamarei de ciência todo corpo racionalmente sistematizado e justificado de conhecimentos, obtido por meio do emprego metódico de observação, experimentação e raciocínio. Essa definição ampla aplica-se às chamadas Ciências Exatas, Naturais e Humanas, bem como às disciplinas tecnológicas e àquelas ordinariamente incluídas entre as chamadas Humanidades. Chamarei de pesquisa científica toda investigação original que vise a contribuir para a constituição de uma ciência e chamarei deatividade científica toda atividade que vise diretamente à concepção e realização de pesquisas científicas, à comunicação de seus resultados, à interação científica entre pesquisadores e à orientação ou supervisão de processos de formação de pesquisadores.
O compromisso de um cientista com a finalidade de sua profissão submete-o a deveres profissionais de duas espécies. Há, em primeiro lugar, os deveres do cientista concernentes à qualidade científica dos resultados de seu trabalho de pesquisa, seus deveres em relação ao avanço da ciência. Dado que o trabalho individual de um pesquisador apenas se efetiva como parte da construção coletiva da ciência e apenas contribui para que a ciência se constitua como patrimônio coletivo na medida em que é coletivizado, isto é, comunicado, todo pesquisador tem o dever de respeitar alguns pressupostos que acompanham toda comunicação científica.
Quando se ouve ou se lê uma comunicação científica, pressupõe-se que o autor utilizou, para tratar de seu tema, os procedimentos que julgou serem cientificamente adequados a esse tratamento; pressupõe-se também que relatou fielmente os procedimentos que utilizou e seus resultados. As ações de um pesquisador que, intencionalmente ou por negligência, contrariam esses pressupostos constituem condutas eticamente inadequadas do ponto de vista da integridade da pesquisa. Entre elas, estão os tipos de conduta consensualmente tidos como os mais graves desse ponto de vista: a fabricação (ou invenção pura e simples) e a falsificação (ou manipulação intencional) de dados, informações. procedimentos e resultados.
Há, em segundo lugar, os deveres do cientista perante a comunidade científica no interior da qual seu trabalho se efetiva como trabalho coletivo. Para que esse trabalho coletivo seja possível, é necessário que a comunidade se organize segundo regras, que governem a formação das reputações científicas (e, portanto, das relações de confiança profissional) e a distribuição das oportunidades, recompensas e sanções profissionais, bem como os modos de reprodução da própria comunidade. Ainda que muitas dessas regras tenham sido historicamente instituídas por consensos práticos e sejam, em princípio, mutáveis, elas devem existir para que o trabalho coletivo de produção da ciência seja possível, de modo que toda ação que, intencionalmente ou por negligência, as transgrida ameaça a eficácia do sistema coletivo de pesquisa e, portanto, o avanço da ciência.
No que concerne às regras vigentes de formação de reputações e distribuição de oportunidades, recompensas e sanções profissionais, o conceito chave é o de autoria. Os pesquisadores ganham oportunidades de realizar suas pesquisas e são profissionalmente recompensados ou sancionados na medida de sua reputação científica, que é, por sua vez, estimada principalmente pelos resultados científicos que já obtiveram e comunicaram como sendo seus resultados. Dado um relato científico, pressupõe-se que, salvo indicação expressa em contrario, os pesquisadores expressamente identificados como seus autores apresentam tudo o que é relatado como sendo resultados que julgam ser originais de seu próprio trabalho de pesquisa. Ações que, intencionalmente ou por negligência, contrariem esse pressuposto contribuem para o estabelecimento de falsas reputações e para a distribuição cientificamente injustificada de oportunidades e recompensas. Nessa medida, minam as condições que hoje garantem a possibilidade do trabalho coletivo eficaz de construção da ciência e constituem condutas eticamente inadequadas do ponto de vista da integridade da pesquisa. Entre elas, a que é considerada mais grave é o plágio de textos ou idéias; além do plágio, a falsa indicação de autoria – a omissão, entre os autores de uma comunicação, do nome de alguém que fez uma contribuição cientificamente significativa para a obtenção dos resultados apresentados ou, inversamente, a inclusão do nome de alguém que não fez nenhuma contribuição dessa natureza.
No que concerne às regras relativas à reprodução da comunidade científica, o conceito chave é o de tutoria. Pesquisadores em formação aprendem a fazer pesquisa científica fazendo pesquisas científicas sob a orientação ou supervisão de pesquisadores já qualificados e experientes, muitas vezes integrados nas equipes de pesquisa em que esses pesquisadores desempenham funções de direção. Enquanto instrumento de reprodução da comunidade cientifica, pressupõe-se que a tutoria seja sempre exercida em benefício da formação do tutelado como pesquisador independente. Ações que contrariem esse pressuposto (como, por exemplo, a utilização do tutelado apenas como mão de obra barata) constituem condutas eticamente inadequadas do ponto de vista da integridade da pesquisa, na medida em que minam as condições vigentes de reprodução cientificamente eficaz da comunidade científica e, portanto, as condições de continuidade da construção coletiva da ciência.
Como lidar com as questões relacionadas à integridade da pesquisa? Até os anos 80 do século passado, predominava a crença difusa de que más condutas do ponto de vista da integridade da pesquisa seriam acontecimentos tão raros e excepcionais que não justificariam a preocupação com a formulação de políticas sistemáticas para a promoção e preservação da qualidade ética das pesquisas e com a criação de instrumentos institucionais e organizacionais para a implementação de tais políticas. Predominava a crença difusa de que o debate científico rotineiro e os mecanismos rotineiros de peer review seriam suficientes para coibir as más condutas científicas. Por tornarem alta a probabilidade de serem desmascaradas, esses mecanismos de controle recíproco entre os cientistas coibiriam as más condutas, fazendo delas iniciativas de alto risco; quando elas acontecessem, impediriam que acarretassem prejuízos graves para a ciência.
Há cerca de trinta anos, começou a impor-se a percepção de que as más condutas científicas talvez não fossem tão raras e excepcionais como se pensava. Embora não haja dados empíricos que permitam afirmar com segurança que tenha havido, a partir dos meados do século XX, um crescimento, em termos proporcionais, do número de ocorrências de má conduta, pode-se conjeturar que tenha havido esse crescimento, em função da amplitude, complexidade e espalhamento crescentes do sistema de pesquisa mundial, em função da natureza cada vez mais interativa e competitiva desse sistema e em função das facilidades tecnológicas para a prática de ações fraudulentas, como, por exemplo, o plágio e a manipulação de imagens.
Seja como for, ainda que o número de más condutas tenha crescido apenas proporcionalmente ao crescimento do sistema de pesquisa, na medida em que os efeitos das más condutas passaram a repercutir no trabalho de um número cada vez maior de pesquisadores, eles passaram a repercutir, em virtude de um efeito dominó, na qualidade dos resultados de um número cada vez maior de pesquisas. E, o que talvez seja o mais grave, passaram a prejudicar mais seriamente a fidedignidade pública da ciência. A ciência vive de sua credibilidade, não só porque depende cada vez mais de investimentos públicos e privados, mas principalmente porque, sem essa credibilidade, perde sua principal razão de ser: seu potencial de fazer diferença na vida das pessoas, por meio da ampliação do estoque de seus conhecimentos e dos meios de orientação racional de suas ações.
O que se pode dizer com segurança é que os dados disponíveis sobre casos conhecidos, investigados e eventualmente punidos de má conduta científica nos últimos trinta anos certamente não refletem a amplitude atual do problema da integridade ética da pesquisa. Por exemplo, um estudo que analisa estatisticamente vários levantamentos realizados entre 1987 e 2005 conclui que, dos pesquisadores consultados nesses levantamentos, 2% confessaram já ter praticado má conduta grave e 33% confessaram já ter praticado conduta ao menos eticamente questionável; 14% declararam já ter observado a prática de má conduta grave e 72% declararam já ter observado a prática de conduta eticamente questionável por parte de outros pesquisadores. [1] Desde 2002, o Journal of Cell Biology vem testando as imagens incluídas nos artigos aceitos para serem nele publicados. Até 2006, verificou-se que 25% dos artigos aceitos continham imagens manipuladas de modo inadequado e, no caso de 1% dos artigos aceitos, essa manipulação afetava a credibilidade científica das conclusões. [2]
Uma vez reconhecida a necessidade de submeter as questões relativas à integridade da pesquisa a um tratamento sistemático e institucional, formaram-se alguns consensos a respeito de como lidar com elas. É hoje um consenso que, diferentemente dos aspectos éticos das atividades científicas que não dependem essencialmente de valores especificamente científicos, os aspectos concernentes à integridade da pesquisa devem ser objeto de autorregulação e autocontrole pela comunidade científica. Cabe aos cientistas formular os princípios e valores especificamente científicos que definem o conceito de integridade da pesquisa, cabe aos cientistas definir, com base nesses princípios e valores, os critérios que permitam distinguir as boas e más condutas nas diferentes áreas da ciência, cabe aos cientistas aplicar esses critérios para a identificação, investigação e eventual punição das más condutas científicas.
A caracterização de uma ação particular como boa ou má conduta científica muitas vezes depende de juízos que são de natureza propriamente científica e nem sempre são triviais. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, distinguir que dados são relevantes e que dados não são relevantes para a confirmação ou não de uma hipótese científica, quando se trata de estabelecer se um certo artigo relata com fidelidade todos os dados relevantes para a ponderação do grau de corroboração que propõe para suas hipóteses. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, determinar se as idéias expostas por um autor como suas são suficientemente semelhantes a idéias de outro autor para que essa exposição seja considerada como possível caso de plágio. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, distinguir o erro involuntário, o erro por imperícia, da má conduta intencional e da má conduta negligente. E nem sempre é trivial, e frequentemente requer muita sensibilidade científica, distinguir o que é um desvio cientificamente injustificado de práticas científicas geralmente aceitas e o que é um desvio inovador cientificamente valioso.
Na verdade, todo conceito ético é suscetível de aplicações que requerem algum grau de interpretação subjetiva, isto é, de interpretação não governada mecanicamente por regras universais. A tipificação de uma ação como correta ou incorreta depende, no mais das vezes, da aplicação de noções cujas fronteiras são indefinidas e, no mais das vezes, depende da consideração das circunstâncias particulares em que a ação é realizada. Nas situações em que as noções envolvidas se aplicam de maneira suficientemente inequívoca e as circunstâncias relevantes são identificáveis de maneira suficientemente inequívoca, a aplicação do conceito deixa-se governar, de maneira praticamente adequada, por um conjunto de regras universais, deixando pouco espaço para interpretações subjetivas. No entanto, quando isso não ocorre, nas situações que se incluem na zona cinzenta das noções envolvidas e nas quais os parâmetros circunstanciais relevantes não são suscetíveis de identificação inequívoca, a aplicação do conceito exige a intervenção essencial do que chamamos de bom senso, isto é, da capacidade de julgar irredutível à aplicação mecânica de regras e constituída a partir de um misto de talento natural e experiência.
É um consenso que, exceto em situações extremas, a aplicação dos conceitos da ética da pesquisa, a tipificação das condutas científicas como boas ou más, requer essa espécie de bom senso – no caso, um bom senso científico, uma capacidade de julgar que envolve a familiaridade com o que é e o que não é cientificamente  relevante para essa tipificação. Isso reforça a idéia de que a esfera da ética da pesquisa deva ser objeto de autorregulação pela comunidade científica, ainda que não seja um consenso que essa autorregulação deva ser irrestrita., tendo em vista o risco do corporativismo e dos conflitos de interesse que a autorregulação irrestrita poderia acarretar.
É um consenso que, no plano institucional, as instituições de pesquisa têm a responsabilidade principal por garantir que as pesquisas que nelas se realizam se conformem aos padrões da integridade ética da pesquisa. Por ser o ambiente próximo em que os pesquisadores desenvolvem sua atividade científica, ela dispõe dos meios mais ágeis e eficazes para promover entre seus pesquisadores os valores da ética da pesquisa, e também para implementar mecanismos de prevenção, identificação, investigação e punição de eventuais más condutas.
É um consenso que o objetivo principal de uma política de promoção da integridade da pesquisa – principal na medida em que, de certo modo, inclui todos os demais – deve ser a formação de uma cultura da integridade, no sentido da palavra “cultura” em que ela remete ao arraigamento de certos valores na prática cotidiana, a tal ponto que o respeito a eles aconteça espontaneamente e o desrespeito a eles gere, no ambiente, uma sanção moral imediata. Para a formação dessa cultura, certamente é um elemento fundamental a percepção da punibilidade, a existência de procedimentos explícitos para a identificação, investigação e eventual punição de supostas más condutas, bem como de mecanismos institucionais para a aplicação desses procedimentos. No entanto, igualmente importantes são ações que visem a dar visibilidade contínua à questão da integridade, como, por exemplo, a instituição de programas de treinamento voltados a pesquisadores em formação, a divulgação de materiais educativos, a inclusão de compromissos formais com códigos de boa conduta em contratos de trabalho ou termos de concessão de bolsas e auxílios. O reconhecimento da importância do componente pedagógico no contexto de uma política de promoção da integridade é uma consequência imediata do fato de que a distinção entre boas e más condutas científicas não é um assunto trivial, exigindo não apenas boa fé, mas também competências de natureza especificamente científica.
Se é um consenso que, no plano institucional, a responsabilidade principal pela manutenção da integridade da pesquisa cabe às instituições de pesquisa, vem se formando também o consenso de que outras instâncias institucionais devem compartilhar, em maior ou menor grau, essa responsabilidade, o consenso de que as ações necessárias para a garantia da integridade da pesquisa implicam a articulação de esforços de diferentes instituições e órgãos, em diferentes instâncias envolvidas no fomento e na realização das pesquisas. Particularmente, as agências de fomento vêm desempenhando, em muitos países, um papel central no que concerne à formulação e aplicação de políticas de integridade.
Grosso modo, podemos classificar os países em um espectro de três tipos, conforme o modo como, em cada um deles, se lida institucionalmente com a questão da integridade da pesquisa. Em um extremo do espectro, estão os países em que reina a anarquia. É o caso do Brasil, mas também de países de peso científico considerável, como a França. Neles, não há políticas sistemáticas de promoção e prevenção, não há mecanismos institucionais permanentes destinados a lidar com a questão da integridade. Eventuais alegações de más condutas são tratadas de maneira casuística, não havendo procedimentos previamente definidos e concebidos para garantir investigações e decisões imunes à percepção de enviesamento, por corporativismo ou conflitos de interesse, e respeitadoras da reputação dos investigados e de seu direito a presunção de inocência.
No outro extremo do espectro estão países que dispõem de uma estrutura institucional já relativamente complexa para lidar com a questão da integridade, uma estrutura coordenada por órgãos dotados de poder e dever legalmente atribuídos para fazê-lo. É o caso dos Estados Unidos, e também da Noruega e Dinamarca. Nos Estados Unidos, foi legalmente estabelecido, em 1993, que, no caso de pesquisas financiadas com recursos federais, a competência das instituições de pesquisa para lidar com as questões de integridade deve ser limitada pela supervisão de órgãos federais associados às agências de fomento, mas independentes delas, órgãos que respondem diretamente ao Congresso. Foi criado um órgão para esse fim no Departamento de Saúde, com competência sobre as pesquisas financiadas pelos National Institutes of Health (Office of Research Integrity – ORI); o órgão corregedor da National Science Foundation (NSF Office of Inspector General – NSF OIG) passou a cumprir essa tarefa em relação às pesquisas apoiadas pela NSF. Esses órgãos supervisionam e aconselham as instituições de pesquisa no que diz respeito às suas atividades de promoção da integridade da pesquisa e de prevenção e investigação de possíveis más condutas. Se julgarem necessário, podem conduzir autonomamente investigações e sugerir punições.
Em 2000, a Secretaria de Política Científica e Tecnológica do governo americano publicou a Federal Policy on Research Misconduct, aplicável a todos os órgãos federais que financiam pesquisas e, indiretamente, às instituições de pesquisa que recebem esse financiamento. Esse instrumento legal define um conjunto mínimo de procedimentos obrigatórios no caso de denúncias de más condutas. Com base nesse documento, o ORI e o OIG elaboraram códigos de procedimentos bastante minuciosos, aplicáveis às investigações conduzidas tanto por eles como pelas instituições de pesquisa. As linhas gerais desses códigos tornaram-se, a partir de então, paradigmáticas, estando presentes em muitos códigos posteriormente elaborados em outros países. Eis algumas dessas linhas gerais.
(1) Cabe tratar as más condutas diferentemente, conforme seus diferentes graus de gravidade. São consideradas más condutas graves típicas a fabricação e a falsificação de dados, informações, procedimentos e resultados, assim como o plágio. São consideradas ordinariamente más condutas menos graves, por exemplo, a atribuição incorreta de autoria, o chamado (talvez inadequadamente) auto-plágio, a ocultação de potenciais conflitos de interesse, a conservação inadequada dos registros de pesquisa, a omissão de dados de modo a dificultar a replicação de experimentos, a retenção injustificada de informações de modo a dificultar que a linha de pesquisa seja desenvolvida por outros pesquisadores.  Os procedimentos de investigação previstos no caso de denúncias de más condutas graves são rigorosos e complexos, impondo-se às instituições de pesquisa o dever de segui-los. A obediência a esses procedimentos é diretamente supervisionada pelos órgãos associados às agências de fomento. No caso de más condutas menos graves, confere-se às instituições de pesquisa maior autonomia no tratamento de denúncias e investigações. Algumas más condutas consideradas mais leves podem ser tratadas apenas internamente pelas instituições de pesquisa, sob o argumento de que, tornadas públicas denúncia e investigação, a mancha na reputação dos denunciados já seria pena severa demais para a pouca gravidade da má conduta em questão.      
(2) Cabe garantir aos denunciados por más condutas científicas, no curso de processos de investigação, o direito à presunção de inocência e à preservação de suas reputações. Na medida do possível, esses processos devem transcorrer confidencialmente e o denunciado deve ser mantido a par de todas as suas etapas do processo, com direito de resposta a todas as acusações levantadas e direito de recurso no final do processo, em caso de veredito adverso.
(3) As punições devem ser proporcionais à gravidade das más condutas identificadas. Para estimar o grau de gravidade de uma má conduta, deve-se considerar se ela foi intencional ou apenas fruto de negligência, se foi um caso isolado ou obedeceu a um padrão regular de comportamento e em que medida foi prejudicial ao avanço e à fidedignidade da ciência.
As agências de fomento americanas influenciaram diretamente o estabelecimento, nas instituições de pesquisa, de órgãos e instrumentos institucionais permanentes destinados a tratar dos diferentes aspectos da questão da integridade da pesquisa. A concessão de bolsas de pós-graduação e pós-doutorado, por exemplo, é condicionada ao compromisso de que o bolsista receba treinamento regular para lidar com questões de integridade. Toda instituição de pesquisa que pretenda receber recursos federais deve ter um órgão encarregado não apenas de receber denúncias e coordenar investigações de más condutas, mas também de desempenhar funções educativas e consultivas.
No meio do espectro, estão países onde não existem órgãos centralizados legalmente instituídos para regular e supervisionar as atividades das instituições de pesquisa relativas à integridade da pesquisa, mas onde as agências nacionais de fomento assumem de fato funções regulatórias. É o caso da Alemanha, Reino Unido, Canadá e Austrália. Na Alemanha, essas funções são desempenhadas pela Deutsche Forschungsgemeinschat (DFG) e, no Reino Unido, Canadá e Austrália, pelos conselhos centrais das agências nacionais de fomento. As agências publicam códigos de conduta e de procedimentos para tratar de casos de má conduta e condicionam a concessão de bolsas e auxílios à aceitação dessas códigos, bem como à implementação de políticas de prevenção de más condutas.
Na Alemanha, criou-se a figura do ombudsman, com funções exclusivamente consultivas. A motivação para isso foi, em primeiro lugar, o reconhecimento da importância de se ter mecanismos institucionais para o aconselhamento dos pesquisadores sobre questões de integridade da pesquisa, já que nem sempre é clara, mesmo para o pesquisador qualificado, a fronteira entre as boas e más condutas; em segundo lugar, o reconhecimento da importância de serem distintas as instâncias responsáveis pelo aconselhamento dos pesquisadores e aquelas responsáveis pela investigação e eventual punição de más condutas, pois quem procura aconselhamento deve ter garantia de confidencialidade e alguém com funções investigativas não pode dar essa garantia.  A DFG mantém um ombudsman para cada uma das três grandes áreas do conhecimento e requer que haja um ombudsman em cada instituição de pesquisa beneficiária de seus auxílios e bolsas.
No Reino Unido, há uma organização privada – mantida por órgãos governamentais, agências de fomento, universidades e instituições privadas envolvidas com a pesquisa – que fornece consultoria e orientação, sobre questões gerais e casos particulares concernentes à integridade da pesquisa, para instituições, pesquisadores e o público em geral. É a UK Research Integrity Office (UKRIO), criada em 2006. Faz aconselhamentos confidenciais a pessoas e instituições sobre casos de possíveis más condutas  (em 2010, fez consultoria em 60 casos), presta consultoria a programas institucionais de educação e treinamento e presta assessoria em investigações institucionais de má conduta. Embora não tenha poderes legais, nem mesmo regulatórios, elaborou um Procedimento para a Investigação de Má Conduta em Pesquisa e umCódigo de Conduta para a Pesquisa que foram adotados, com leves modificações, pelas instituições de pesquisa e pelas agências de fomento do país. Além disso, promove pesquisas empíricas sobre o estado da integridade da pesquisa no país e no mundo e sobre a eficácia de políticas de promoção e prevenção.

abril de 2011



[1] Fanelli, D., “How Many Scientists Fabricate and Falsify Research? A Systematic Review and Meta-Analysis of Survey Data”, PLoS ONE | www.plosone.org 11 May 2009 | Volume 4 | Issue 5 | e5738.
[2] V. carta do editor do Journal Of Cell Biology ao presidente da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (20 de fevereiro de 2006) em http://rupress.typepad.com/files/nas_letter.pdf

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