Este
é nosso relato da experiência de pesquisa de campo em São Pedro de
Joselândia, pertencente ao município de Barão de Melgaço/MT no pantanal
mato-grossense, se insere numa pesquisa de caráter qualitativo sobre as
"Manifestações artísticas e os processos de etnoaprendizagem nas
comunidades de áreas úmidas" que, por sua vez, pertence ao escopo do
projeto "Ciência na Reinvenção Educomunicativa". Tem como objetivo
investigar o estado da arte dos saberes e fazeres intrínsecos ao
universo da viola-de-cocho no pantanal mato-grossense supondo-se que:
- Há condições e contextos muito específicos no recorte temporal e territorial que referem e são referidos desde a confecção deste instrumental musical (unicidade, univocidade, unidade...) até os momentos em que ele é requerido como suporte às manifestações artísticas de caráter religioso em que pese a indissociabilidade entre sacro e profano;
- Estas condições e contextos têm sido modificados ao longo do tempo, mas principalmente nos últimos 60 anos por conta de profundas modificações ecossistêmicas face às pressões do capitalismo que, por sua vez, se manifesta na perda do direito à cidade conforme preconiza Lefebvre (1969).
A metodologia utilizada
nesta investigação é de cunho fenomenológico (MERLEAU-PONTY, 1971) e implica em
mergulhos e diálogos junto às pessoas ligadas ao universo da viola-de-cocho,
sobretudo em relação à percepção de, ao menos, dois processos em trânsito neste
saber-fazer. O primeiro de caráter estritamente educativo que implica numa
pedagogia musical da qual já temos algumas notícias tanto na literatura (CONDE;
NEVES, 198[4]; PRASS, 1996; ARROYO, 1998; OLIVEIRA, 2009) quanto em relação a
nosso informante Galasso. O segundo,
relativo à percepção sobre Trabalhos Ecossistêmicos de Cultura e
Provisão na medida em que seus elementos constituintes estejam em franca
e rápida modificação em virtude das Mudanças Climáticas.
Cabe
ressaltar que a separação entre o ambiente educativo e o ambiente
ecossistêmico (chamemos assim) foram separados neste primeiro momento
apenas para efeito de entendimento do que está em jogo, não havendo
separação real entre a pedagogia musical do saber-fazer (confecção e
execução) da viola-de-cocho e os trabalhos ecossistêmicos que ela
implica.
Em
relato de campo anterior, aventamos a hipótese (que vai se confirmando)
acerca da pressão dos sistemas urbanos sobre a ruralidade e que, em
virtude da hegemonia de uma lógica capitalista, vem aos poucos perdendo
espaços simbólicos e naturais. Entre outros motivos, mas evidentemente
em virtude do isolamento territorial, São
Pedro de Joselândia é provavelmente um dos refúgios de formas de saber,
conhecer e fazer que remontam à pré-modernidade e onde se revelam
relações sustentáveis numa perspectiva comunitária e das relações que se
constroem no enredamento da comunidade: comunicação, compartilhamento
de códigos que implicam numa observância mais estrita da linguagem para a
estabilidade da comunidade (BAUMAN, 2003). Ora, se atentarmos para
alguns pontos dos Trabalhos Ecossistêmicos veremos que os elementos
constituintes do bem-estar humano (MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT,
2005) apontam para:
- Segurança;
- Materiais básicos para uma boa vida;
- Saúde; e
- Boas Relações Sociais.
Esses sistemas
urbanos podem ser observados em pequenas modificações de comportamento,
por exemplo, na medida em que Cururu e Cururueiros perdem a primazia e
centralidade da festa (pra não dizer a univocidade) para dar lugar ao
"baile". Ora, num passado não muito distante (20 a 30 anos),
a festa era realizada apenas com viola de cocho, ganzá e adufe[1],
com cururu e siriri. Esta relação estaria intimamente associada ao catolicismo
popular e ao domínio de beatos, padres leigos, tiradores de reza enquanto
herdeiros de tradições medievais pré-modernas (LE GOFF, 1996). A perda deste
status ocorre concomitante à dessacralização da natureza onde os trabalhos
ecossistêmicos nas comunidades biorregionais (SATO, 2005) são mais sentidos e
mais intrínsecos. Até onde esta pesquisa alcança, em termos metodológicos e
epistemológicos, não há nenhuma possibilidade de ferir um trabalho
ecossistêmico e seus elementos constituintes isoladamente, ou seja, sem que uma
cadeia de modificações se opere entre si, ainda que a perda possa ser maior ou
menor em cada grupo, elemento ou situação específica.
Se
a viola-de-cocho apenas estivesse inserida em determinado espaço e
tempo como mero objeto ela não participaria ativamente das dinâmicas que
a cercam, mas seria apenas e tão somente um estar ali sem possibilidades de alcançar e, portanto, constituir-se como e no ali-agora de Benjamin (2012). Oras,
há um elemento vivo no objeto, que é tomado de empréstimo pelos
sujeitos que o empunham, do e no próprio contexto espaço-temporal e que o
aproxima de um aqui-agora aurático na perspectiva de Benjamin (2012).
Se pudermos criar uma analogia entre o "aqui-agora" de Benjamin e a
educação ambiental no viés antropofágico oswaldiano será possível
observar de maneira bastante crítica e eficaz a maneira como se
constituíram ou mesmo ainda se constituem os processos de
dessacralização da natureza, enquanto ruptura das condições relacionais
humano-natureza dentro do sistema de troca-dádiva (MAUSS, 2001).
[1]
Instrumentos musicais da ordem dos: cordofones, idiofones e membranofones,
respectivamente. Geralmente fabricados por pessoas das comunidades ligadas às
manifestações artísticas citadas aqui e que são, por óbvio, sujeitos desta
pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARROYO, Margarete. Representações sociais sobre práticas de ensino e aprendizagem musical:
um estudo etnográfico entre congadeiros, professores e estudantes de
música. Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor
em Música. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad.: Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. 1 reimpr.
Porto Alegre: Zouk, 2012.
CONDE, Cecília; NEVES, José Maria. Música e
educação não-formal. Pesquisa e Música:
Revista do Centro de Pós-Graduação do CBM. Rio de Janeiro, v.1, n.1, pp.41-52,
1984/85.
HAESBAERT, Rogério. Da Desterritorialização à
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Geógrafos da América Latina, 2005, São Paulo. Anais do X Encontro de
Geógrafos da América Latina, 2005. p. 6774-6792.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo:
Editora Documentos, 1969.
LE
GOFF, Jacques. História e memória.
4ª ed. Tradução de Bernardo Leitão et. al. Campinas: UNICAMP, 1996. Título
original: Storia e memória.
MAUSS,
Marcel. O ensaio sobre a dádiva. Rio
de Janeiro: Edições 70, 2001.
MERLEAU-PONTY,
Maurice. Fenomenologia da percepção.
São Paulo, Martins Fontes, 1971.
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OLIVEIRA,
Herman Hudson de. Aprendizagem musical na Dança do Congo do Quilombo Mata
Cavalo/MT. In: SOUZA, Cássia Virgínia Coelho de. Percursos da Música: múltiplos contextos de educação.1 ed. Cuiabá:
EdUFMT, 2013, p. 113-130.
PORTO-GONÇALVES,
Carlos Walter. O desafio ambiental.
Rio de Janeiro: Record, 2004. (Coleção Os porquês da desordem mundial. Mestres
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PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma bateria de escola de samba: uma etnografia
entre os Bambas da Orgia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
SATO,
Michèle. Biorregionalismo. In: FERRARO, L. (Org.) Encontros e caminhos - Formação de educadores(as) ambientais e
coletivos educadores. Brasília: Diretoria de Educação Ambiental, MMA, 2005.
WISNIK, José Miguel. O
som e o sentido. Uma outra história das músicas. 2º Ed. 5ª reimp. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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