Por Rob Wallace
Publicado em Marx21
Nesta entrevista publicada em 11 de março, Rob Wallace, autor de Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, com sua incisividade habitual e amplo conhecimento, fala sobre os perigos da covid-19, o papel do agronegócio na crise e a importância de rever o relacionamento da humanidade com os ecossistemas, a fim de chegar às raízes da crise.
Qual é o perigo do novo coronavírus?
Depende em que momento se encontra o surto local de covid-19: no início, no momento de pico, no final? Qual é a resposta da sua região em matéria de saúde pública? Quais são os seus dados demográficos? Qual é a sua idade? Está imunossuprimido? Como é a sua saúde geral? Para perguntar sobre uma possibilidade não diagnosticável: a sua imunogenética — a genética intrínseca à sua resposta imunitária — se ajusta ou não ao vírus?
Então todo este barulho sobre o vírus é apenas tática para gerar medo?
Não, claro que não. Em nível da populacional, a covid-19 registrava, no início do surto de Wuhan, uma taxa de mortalidade de 2% a 4%. Fora de Wuhan, a taxa de mortalidade parece cair para mais ou menos 1% ou ainda menos, mas também parece disparar em pontos aqui e ali, incluindo em locais na Itália e nos Estados Unidos. O seu alcance não parece grande em comparação com, digamos, a taxa de mortalidade de 10% da Sars, a de 5% a 20% da gripe de 1918, a de 60% da “gripe aviária” H5N1 ou, em alguns pontos, a de 90% do ebola. Mas excede certamente a taxa de mortalidade de 0,1% da gripe sazonal. O perigo, porém, não é apenas uma questão de taxa de mortalidade. Temos de lidar com aquilo a que se chama taxa de penetração ou de ataque comunitário: ou seja, quanto da população global é atingida pelo surto.
Pode ser mais específico?
A rede global de viagens está em uma conectividade recorde. Sem vacinas ou antivirais específicos para o coronavírus, nem, neste momento, qualquer imunidade grupal ao vírus, mesmo uma cepa com uma mortalidade de apenas 1% pode representar um perigo considerável. Com um período de incubação de até duas semanas e provas crescentes de alguma transmissão antes da doença — antes de sabermos que as pessoas estão infectadas —, poucos locais estariam livres de infecção. Se, por exemplo, a covid-19 registrar 1% de mortalidade no decurso da infecção de quatro bilhões de pessoas, são quarenta milhões de mortos. Uma pequena parte de um grande número pode ser também um grande número.
Estes são números assustadores para um patógeno ostensivamente menos que virulento.
Definitivamente, e estamos apenas no início do surto. É importante compreender que muitas novas infecções mudam ao longo do curso das epidemias. A infecciosidade, a virulência, ou ambas, podem atenuar. Por outro lado, outros surtos aumentam em termos de virulência. A primeira onda da pandemia de gripe, na primavera de 1918, foi uma infecção relativamente leve. Foram a segunda e terceira ondas, no inverno de 1918 e em 1919, que mataram milhões de pessoas.
Mas os céticos da pandemia argumentam que muito menos doentes foram infectados e mortos pelo coronavírus do que pela gripe sazonal típica. O que pensa sobre isso?
Eu seria o primeiro a celebrar se este surto se revelasse um fracasso. Mas estes esforços para desconsiderar o Covid-19 como um possível perigo, citando outras doenças mortais, especialmente a gripe, é um dispositivo retórico para apontar a preocupação com coronavírus como algo desproporcional.
Então, a comparação com a gripe sazonal é capenga?
Faz pouco sentido comparar dois agentes patogênicos em diferentes partes das suas curvas epidemiológicas. Sim, a gripe sazonal infecta muitos milhões em todo o mundo, matando, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 650 mil pessoas por ano. A covid-19, porém, está apenas iniciando a sua viagem epidemiológica. E, ao contrário da gripe, não dispomos nem de vacinas, nem de imunidade de grupo para retardar a infecção e proteger as populações mais vulneráveis.
Mesmo que a comparação seja enganadora, ambas as doenças são causadas por vírus de um grupo específico, os vírus RNA. Ambas podem causar doenças. Ambas afetam a região da boca e da garganta e, por vezes, também os pulmões. Ambas são bastante contagiosas.
Estas são semelhanças superficiais que ignoram uma parte crítica da comparação entre dois agentes patogênicos. Sabemos muito sobre as dinâmicas da gripe. Sabemos muito pouco sobre a covid-19: a doença está impregnada de incógnitas. Na verdade, há muito sobre a covid-19 que era indecifrável até o surto se manifestar plenamente. Ao mesmo tempo, é importante compreender que não se trata de covid-19 versus gripe. Trata-se de covid-19 e gripe. O surgimento de infecções múltiplas capazes de se tornarem pandêmicas, atacando populações em massa, deve ser a preocupação principal e central.
Há vários anos você pesquisa as epidemias e as suas causas. O seu livro Pandemia e agronegócio tenta estabelecer essas ligações entre as práticas agrícolas industriais, a agricultura biológica e a epidemiologia viral. Quais são seus argumentos?
O perigo real de cada novo surto é o fracasso ou, melhor dizendo, a recusa conveniente de compreender que cada novo covid-19 não é um incidente isolado. O aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à produção alimentar e à rentabilidade das empresas multinacionais. Quem pretender compreender por que razão os vírus estão se tornando mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção animal. Neste momento, poucos governos — e poucos cientistas — estão dispostos a fazê-lo.
Quando surgem os novos surtos, os governos, a mídia e mesmo a maioria dos estabelecimentos médicos estão tão concentrados em cada emergência que descartam as causas estruturais que estão conduzindo múltiplos agentes patogênicos marginalizados ao status de súbitas celebridades globais, um após o outro.
De quem é a culpa?
Eu disse agricultura industrial, mas há um âmbito mais vasto. O capital é a ponta de lança da invasão de terras das florestas primárias e das terras agrícolas de pequenos proprietários em todo o mundo. Estes investimentos impulsionam o desmatamento e o desenvolvimento que conduzem ao aparecimento de doenças.
A diversidade funcional e a complexidade que estas enormes extensões de terra representam estão sendo racionalizadas de tal forma que agentes patogênicos anteriormente “encaixotados” estão se espalhando para o gado local e as comunidades humanas. Em suma, os centros metropolitanos, como Londres, Nova York e Hong Kong, devem ser considerados os nossos principais focos de doença.
Este o caso para quais doenças?
Neste momento, não existem agentes patogênicos livres do capital. Mesmo os mais remotos são afetados, ainda que de forma distante. O ebola, o zika, os coronavírus, a febre amarela, uma variedade de influenzas aviárias e a peste suína africana estão entre os muitos agentes patogênicos que saem das zonas mais remotas do interior para os circuitos periurbanos, as capitais regionais e, por fim, para a rede global de viagens: de morcegos frugívoros no Congo à morte de banhistas em Miami, em algumas semanas.
Qual é o papel das empresas multinacionais neste processo?
Neste momento, o Planeta Terra é, em grande parte, o Planeta Fazenda, tanto na biomassa como nas terras utilizadas. O agronegócio tem como objetivo monopolizar o mercado de alimentos. A quase totalidade do projeto neoliberal está organizada em torno do apoio aos esforços das empresas sediadas nos países industrializados mais avançados para roubar a terra e os recursos dos países mais fracos. Como resultado, muitos desses novos agentes patogênicos, anteriormente controlados por ecologias florestais há muito evoluídas, estão sendo liberados, ameaçando o mundo inteiro.
Que efeitos têm os métodos de produção do agronegócio sobre este aspecto?
A agricultura direcionada pelo capital, que substitui as ecologias naturais, oferece o meio exato pelo qual os agentes patogênicos podem evoluir para fenótipos mais virulentos e infecciosos. Não se conseguiria conceber um sistema melhor para criar doenças mortais.
Como assim?
O cultivo de monoculturas genéticas de animais domésticos retira a proteção imunológica que poderia estar disponível para retardar a transmissão. As dimensões e densidades maiores da população facilitam taxas maiores de transmissão. Estas condições de aglomeração diminuem a resposta imunitária.
O elevado rendimento, uma parte de qualquer produção industrial, proporciona um fornecimento continuamente renovado de produtos sensíveis, o combustível para a evolução da virulência. Em outras palavras, o agronegócio está tão concentrado nos lucros que a seleção de um vírus que pode matar bilhões de pessoas é tratada como um risco aceitável.
O quê!?
Estas empresas podem simplesmente externalizar os custos das suas operações epidemiologicamente perigosas para os próprios animais, os consumidores, os trabalhadores agrícolas, o meio ambiente local e os governos, em todas as jurisdições. Os prejuízos são tão elevados que, se devolvêssemos esses custos aos balanços das empresas, o agronegócio, tal como o conhecemos, acabaria para sempre. Nenhuma empresa poderia suportar os custos dos danos que impõe ao entorno humano e natural.
Em muitos meios de comunicação, afirma-se que o ponto de partida do coronavírus foi um “mercado de alimentos exóticos” em Wuhan, na China. Esta descrição é verdadeira?
Sim e não. Existem pistas geográficas a favor desta noção. O rastreio de contatos relacionados com infecções remonta ao mercado de Hunan, em Wuhan, onde animais selvagens eram vendidos. A amostragem ambiental parece indicar a extremidade oeste do mercado, onde os animais selvagens eram mantidos.
Mas a que distância e até que ponto devemos investigar? Quando é que a emergência começou realmente? O enfoque sobre o mercado não leva em conta as origens da agricultura selvagem no interior do país e a sua crescente capitalização. A nível global, e na China, os alimentos selvagens estão se formalizando como um setor econômico.
Mas a sua relação com a agricultura industrial vai além da mera partilha dos mesmos sacos de dinheiro. À medida que a produção industrial — ovo, aves e similares — se expande para a floresta primária, exerce pressão sobre os operadores de alimentos selvagens para que estes se alimentem ainda mais profundamente na floresta, aumentando a interface com novos agentes patogênicos, incluindo o novo coronavírus.
O coronavírus não é o primeiro vírus a desenvolver-se na China que o governo tentou encobrir.
Sim, mas não se trata, porém, de um excepcionalismo chinês. Os Estados Unidos e a Europa também serviram de pontos zero para novas gripes, recentemente o H5N2 e o H5Nx, e as suas multinacionais e aliados neocoloniais impulsionaram o surgimento do ebola na África Ocidental e do zika no Brasil. Funcionários de saúde pública dos Estados Unidos protegeram o agronegócio durante os surtos de H1N1 (2009) e H5N2.
A reestruturação neoliberal do sistema de saúde agravou tanto a investigação como o tratamento geral dos doentes, por exemplo, nos hospitais. Que diferença poderia fazer um sistema de saúde mais bem financiado para combater o vírus?
Há a terrível mas contagiosa história do empregado da empresa de aparelhos médicos de Miami que, ao regressar da China com sintomas semelhantes aos da gripe, fez a coisa certa pela sua família e pela sua comunidade e exigiu um exame hospitalar local para a covid-19. Ele temia que a sua opção mínima no Obamacare não cobrisse os testes. Ele estava certo. De repente, ele estava com uma conta de 3.270 dólares.
Uma opção estadunidense poderia ser uma ordem de emergência que estipula que, durante um surto pandêmico, todas as contas médicas pendentes relacionadas com os testes de infecção e de tratamento após um teste positivo seriam pagas pelo governo federal. Queremos encorajar as pessoas a procurar ajuda, em vez de estimular que se escondam e infectem outras pessoas porque não podem pagar o tratamento. A solução óbvia é um serviço nacional de saúde — dotado de pessoal e equipamento adequados para fazer frente a emergências de dimensão comunitária — para que não haja espaço para um problema tão ridículo como o de desencorajar a cooperação comunitária.
Assim que o vírus é descoberto num país, os governos de todos os países reagem com medidas autoritárias e punitivas, tais como a quarentena obrigatória de áreas inteiras. Justificam-se medidas tão drásticas?
A utilização de um surto virótico para testar o mais recente controle autocrático é um sinal do capitalismo de catástrofe que descarrilou. Em termos de saúde pública, eu preferiria cometer erros apostando na confiança e na solidariedade, que são importantes variáveis epidemiológicas. Sem qualquer delas, as autoridades perdem o apoio das suas populações. O respeito comum é uma parte essencial da cooperação de que necessitamos para, em conjunto, sobreviver a tais ameaças. As autoquarentenas com o devido apoio de brigadas de bairro treinadas, caminhões de abastecimento de alimentos que vão de porta em porta, libertação do trabalho e seguro-desemprego podem suscitar esse tipo de cooperação, e o sentimento de que estamos todos juntos nisto.
O que seria uma mudança sustentável?
A fim de reduzir o aparecimento de novos surtos de vírus, a produção alimentar tem de mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um setor público forte podem refrear as infecções descontroladas, assim como a introdução de variedades de criações e culturas. Permitir que os animais destinados à alimentação se reproduzam no local para transmitir as imunidades testadas. Relacionar produção justa com circulação justa. Subsidiar preços e programas de compras que apoiem a produção agroecológica. Defender estas experiências tanto das compulsões que a economia neoliberal impõe aos indivíduos e às comunidades como da ameaça da repressão do Estado liderada pelo capital.
O que os socialistas devem exigir perante a dinâmica crescente dos surtos de doenças?
O agronegócio como modo de reprodução social tem de acabar definitivamente, mesmo que não seja por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de alimentos depende de práticas que põem em perigo toda a humanidade, neste caso ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Devemos exigir que os sistemas alimentares sejam socializados de forma a impedir que surjam agentes patogênicos tão perigosos. Isso exigirá a reintegração da produção alimentar nas necessidades das comunidades rurais, em primeiro lugar. Isso exigirá práticas agroecológicas que protejam o ambiente e os agricultores à medida que cultivam os nossos alimentos. Em termos gerais, temos de curar as fissuras metabólicas que separam as nossas ecologias das nossas economias. Em suma, temos um planeta a ganhar.