Tuesday, 22 October 2013

Aforismos Rortyanos II

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Aforismos Rortyanos II

Um fichamento pouco ortodoxo de Contingency, Irony, and Solidarity, do filósofo Richard Rorty
Alcir Pécora
Continuo e encerro nesta edição da CULT o que pensei originariamente como um fichamento pouco ortodoxo, mas não impróprio, de Contingency, Irony, and Solidarity (Cambridge University Press, 1989), do filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007), livro (a meu ver) incontornável para se pensar crítica literária no contemporâneo. Apresento, portanto, um resumo do Contingency…, dispondo-o praticamente nas próprias palavras do filósofo, como é costume fazer em exercícios escolares. Alerto, entretanto, para o termo “praticamente”, pois ele encerra uma pequena armadilha. Empreguei-o para acentuar o meu desejo de dar a cada frase de Rorty em português a forma de um aforismo que não me parece descabido existir nela. Usei como base dessa tentativa a tradução portuguesa de Nuno Ferreira da Fonseca (Editorial Presença, 1992), que tampouco segui ao pé da letra.
1. Numa perspectiva filosófica tradicional, existe um “eu” que tem “desejos e crenças” e pode decidir entre eles, ou exprimir-se por meio deles, de acordo com a sua coerência interna ou com a sua referência a algo exterior a eles. O pressuposto é que os desejos são melhores quanto mais correspondem à natureza do “eu”, e que as crenças são tanto melhores quanto mais correspondem à realidade.
2. Um filósofo tradicional pressupõe que existem relações nas quais o que é linguagem é uma unidade que se pode opor ao que é não-linguagem.
3. Da dupla pressuposição (oposição linguagem/não-linguagem, e unidade da linguagem) se segue uma dupla decorrência: supor que há “significados”, entidades não-linguísticas, que cabe à linguagem “exprimir”, e supor que há “fatos”, entidades não-linguísticas, que cabe à linguagem “representar”.
4. Uma filosofia alternativa simplesmente desconsidera as vantagens da linguagem como meio entre o “eu” e a “realidade”, seja ele “transparente”, como julgam os realistas, seja “opaco”, como pensam os céticos.
5. Conhecer uma linguagem não é diferente de saber orientar-se no mundo; não há uma estrutura definida partilhada pelos usuários de uma linguagem, que primeiro a dominam, e depois a aplicam. Regras gramaticais não explicam o ato de linguagem efetuado.
6. “Mente” e “linguagem” não são nomes de intermediários entre o “eu” e a “realidade”, mas sinais da conveniência de se utilizar certo vocabulário para lidar com certos organismos, de fazer convergir seus sinais e ruídos; ou seja, são táticas úteis de previsão e controle de comportamento.
7. Quando desaparece a ideia de linguagem como meio desaparece também a ideia de que ela tem uma finalidade: é o fim da história intelectual como teleologia.
8. O que chamamos familiarmente de “nossa linguagem” é o resultado de um grande número de contingências, de milhares de pequenas mutações.
9. Revoluções científicas são “redescrições metafóricas” da natureza. Elas não estão mais perto das “próprias coisas” ou “menos dependentes da mente” do que as redescrições da história oferecidas pela crítica da cultura.
10. Usos literais em geral se prestam a ser abordados pelas antigas teorias; usos metafóricos levam a desenvolver uma nova teoria.
11. Platônicos e positivistas têm em comum uma perspectiva reducionista da metáfora, como se elas devessem ser parafraseáveis ou então fossem inúteis para o que consideram ser a única finalidade séria da linguagem, a “representação da realidade”.
12. Românticos são, ao contrário, expansionistas em matéria de metáfora: consideram-na estranha, mística, afeta à faculdade misteriosa da “imaginação” que expressa- ria o centro do “eu”. Para eles, “literal” é o mesmo que dizer “irrelevante”.
13. A história positivista da cultura vê a linguagem como algo que gradualmente toma a forma do mundo físico; a história romântica a vê como algo que gradualmente traz o Espírito à autoconsciência. Nenhuma das duas distingue os sentidos pelos usos.
14. Para os positivistas, Galileu fez uma descoberta; para um filósofo revolucionário como Wittgenstein, Galileu é alguém que encontrou uma ferramenta mais útil para determinados fins do que qualquer outra anteriormente existente.
15. Cientistas, filósofos e poetas revolucionários não resolvem problemas anteriores, mas apenas os dissolvem, mudam a manei- ra de falarmos e, portanto, mudam o que julgamos ser.
16. Problemas filosóficos são tão históricos como os poéticos.
17. Se se entendesse o sentido da história como história de metáforas sucessivas, o poeta, na acepção genérica de criador de novas palavras ou linguagens, seria a “vanguarda da espécie”.
18. A ideia da “natureza intrínseca” é remanescente da ideia do mundo como criação divina.
19. Abandonar a ideia da linguagem como representação é “desdivinizar” o mundo; de quebra, obriga o intelectual a despir-se da “função sacerdotal” de contatar o que transcende o humano.
20. A distinção entre literal e metafórico não é a que existe entre dois tipos de significado ou entre dois tipos de interpretação, mas sim entre usos familiares e não familiares de ruídos e sinais.
21. Metáforas não têm significados: lançar uma metáfora num texto é uma forma de produzir efeito no interlocutor, não uma maneira de transmitir mensagens.
22. A metáfora não pode ser parafraseada por uma frase familiar, não tem lugar fixo num jogo de linguagem e não tem valor de verdade. Com o tempo poderá tornar-se habitual; será, então, uma metáfora morta.
23. A linguagem assemelha-se à ideia de evolução: novas formas de vida a matar velhas, às cegas, sem qualquer finalidade superior.
24. Não há nenhuma função fixa a ser desempenhada pela linguagem; a dizer como Davidson, nem mesmo existe a “linguagem”.
25. “Linguagem” e “mente” podem ser consideradas “naturais” apenas por apresentarem relações de “causa” com o resto do universo, não por apresentarem relações de adequação da “representação” ou da “expressão”.
26. A história da linguagem e da cultura é semelhante à seleção natural na teoria da evolução de Darwin: metáforas antigas estão constantemente a morrer, a tornar-se literais e a servir de plataforma para novas metáforas.
27. As descrições filosóficas são um processo de avaliação de metáforas.
28. Filosofia é como crítica literária.

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