Monday, 14 October 2013

O papel essencial, mas geralmente oculto, das controvérsias científicas

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Artigo
O papel essencial, mas geralmente oculto, das controvérsias científicas
Por Gildo Magalhães
10/10/2013
Muitos já ouviram falar de controvérsias científicas e imaginam que elas se restrinjam a questões de prioridade nas descobertas ou na formulação de hipóteses e teorias. Surgem aqui e acolá também acusações de plágio, ou ainda de roubo de algum material de cunho científico. Estes aspectos naturalmente fazem parte da história das ciências, mas ocorrem também em maior ou menor grau em outras atividades humanas, como nas artes ou na propaganda, ou ainda, na política. A propriedade intelectual é, de resto, um campo muito vasto e debatido. Não é este, todavia, nosso principal interesse pelas controvérsias científicas.
Para entender melhor a questão que pretendemos aqui levantar, é necessário voltar os olhos para o modo como se divulga a ciência, seus métodos e resultados. A partir principalmente do século XVII, vem-se construindo e solidificando em nossa cultura uma noção de que a ciência e a verdade são inseparáveis, de tal forma que se algo for cientificamente fundamentado será a expressão inescapável da verdade. Ora, se isto assim fosse entendido literalmente, não haveria como justificar que, ao longo da história, tantas teorias científicas fossem se modificando e até mesmo cedendo o lugar a outras, por vezes radicalmente distintas. A necessidade de progresso contínuo da ciência foi logo destacada e entendida como vital por pensadores como Pascal, no século XVII. No entanto, o triunfalismo das visões que se tornaram consagradas e o efeito de uma história escrita pelos “vencedores” não deixam margem a dúvidas e chegam mesmo a ridicularizar os “derrotados” como se tivessem sido cientistas inferiores ou fracassados.
Alguns exemplos podem esclarecer nosso ponto de vista. As leis da mecânica que hoje se aprendem no ensino médio derivam dos trabalhos de inúmeros cientistas ao longo dos tempos, tais como Arquimedes, Kepler, Galileu, Huygens, Pascal, Descartes, Hooke, Leibniz, Newton e muitos outros. Estudando-se suas obras, verifica-se que nem sempre estiveram de acordo; mais ainda: aqueles que foram contemporâneos entre si manifestaram suas divergências, fortemente, por meio de cartas ou artigos com acusações por vezes pesadas.
No entanto, o aluno de ensino médio recebe a esse respeito apenas um conteúdo estabelecido paulatinamente, com o nome um tanto inexato de “mecânica newtoniana”, por ter sido Newton o autor da síntese em que desapareceram todas as controvérsias. Ao ler um desses relatos usuais da física é como se tivesse havido uma sucessão linear de conquistas da razão, expressando uma ciência que tudo vence porque tem ao seu lado a verdade.
Nessas versões não há lugar para se explorar as controvérsias que envolveram episódios como a complexa conjunção de fatores que redundaram na condenação de Galileu, ou o engano cometido por Descartes ao deduzir a lei da refração da luz, ou ainda como Leibniz reagiu ao ver sua concepção de um universo otimizado ser contrariada pela visão de mundo de Newton, em que este se torna um relógio cuja corda vai se gastando.
Não se trata de uma simples indisponibilidade de tempo para lidar com esses aspectos históricos: o que se perde ao não revisitar as disputas é que elas, mesmo sofrendo transformações, reaparecem em contendas científicas posteriores e mesmo atuais. Por exemplo, a controvérsia citada de Newton versus Leibniz reapareceu tempos depois na discussão da validade do aumento da entropia ser uma “lei” natural, ainda objeto de discussão desde o final do século XIX, e que ainda constitui um núcleo não confessado da feroz disputa política e científica que cerca a defesa do aquecimento climático global antropogênico e os climatologistas que advogam opinião contrária.
Examinando a história de outras ciências verificaremos que a situação é bastante similar. Poderíamos citar como exemplos as controvérsias em anatomia e fisiologia envolvendo Vesalio, Paracelso, Serveto e Harvey, a que se podem acrescentar as discussões de Needham, Spallanzani, Bernard, Pouchet, Pasteur, Koch, Roux e tantos outros que nos permitiram traçar o quadro moderno da medicina. E na biologia básica lembramos ainda da apresentação bastante incorreta, historicamente falando, das várias teorias da evolução, praticamente substituídas por uma única “verdadeira”, a darwinista.
A experiência de muitos anos de estudo e ensino universitário da história das ciências nos autoriza a emitir a opinião de que algo semelhante ocorre na química, geologia, e também nas ciências humanas. Nestas, porém, já existe uma tradição acadêmica bem exercitada de revisitar os temas e explorar as controvérsias do passado e as atuais. Num outro extremo da palheta, algumas pessoas podem acreditar que as matemáticas estariam imunes a tais desavenças. Nada mais ingênuo, pois os matemáticos formaram grupos que historicamente se opõem ferozmente em torno de controvérsias. Basta lembrar dos formalistas, intuicionistas e outras vertentes, para quem a demonstração de uns será considerada inválida por outros. Isto explica porque grandes teorias como a dos conjuntos transfinitos de Cantor, ou a de Gödel, da indecidibilidade e incompletude dos sistemas formais, permanecem um desafio para a conciliação após tantos anos de sua formulação.
Não temos aqui o espaço para nos alongarmos sobre tantas e diversas controvérsias. Há cerca de cem anos a história das ciências vem constituindo um vasto campo especializado, com copiosa bibliografia, cobrindo aspectos pouco ou nada divulgados nas salas de aula ou na mídia não-especializada. Mas o que significa e qual a real importância da existência de controvérsias passadas ou presentes? Aí devemos tomar cuidado, pois a história das ciências não nos autoriza a concluir que não existem verdades pelo fato de que há controvérsias. Pelo contrário, se as teorias científicas nunca puderam se arrogar a exclusividade de serem a verdade, é forçoso apontar que as ciências buscam a verdade. Este aspecto é essencial, pois coloca as controvérsias, a par de constituirem objeto de pesquisa histórica, como parte da base epistemológica do empreendimento científico em qualquer época.
Diferentemente da apresentação paradigmática das ciências e de sua história, é mais instrutivo apreender o processo de construção do conhecimento como uma série de etapas dialéticas. Em todos os tempos, o pensamento científico se distinguiu pela confrontação de teorias com a realidade. Mesmo levando em conta outro debate, o da construção de fatos de interesse para um determinado fim – construção essa que pode ser pessoal, sociológica, ou mesmo ideológica – e que acaba privilegiando alguns fatos em detrimento de outros, as hipóteses, e consequentemente as teorias e leis erigidas em torno desses fatos e hipóteses, estão sempre a serem confrontadas com a realidade, num processo que pode ser de longa duração.
Neste sentido, não há teorias que sejam “verdadeiras” para todo sempre, mas apenas teorias mais adequadas num momento. Senão, teríamos dificuldade, voltando a nosso exemplo inicial, em explicar para alguém que, depois de ter assimilado como verdadeira a “mecânica newtoniana”, depois fosse apresentado à “mecânica relativística”. Deveríamos então esclarecer que a primeira permanece bastante “verdadeira” para as escalas de velocidade a que estamos habituados. E pode bem suceder que em algum outro momento a teoria da relatividade se mostre inadequada em outras escalas e tenha de ser superada por outras teorias.
Em resumo, o pensamento científico admite controvérsias e não deveria se fechar em dogmas, mas estar pronto para aceitar o desafio de contestações cuja base experimental ou teórica seja diferente dos padrões estabelecidos. E precisamente este é o problema que afeta a maioria dos divulgadores científicos: se não tiverem presente que a controvérsia é a característica fundamental da atividade científica, põem-se em busca da “voz mais autorizada” em determinada especialidade, que em geral é alguém representante da versão acadêmica mais aceita, ou ao menos daquela que detém o maior prestígio e poder. Não ocorre sempre aos divulgadores perguntar pelas opiniões controversas quando já admitem tacitamente que se houver, estas representarão as posições incorretas ou duvidosas dos cientistas que não atingiram os patamares de notoriedade com títulos e prêmios importantes.
O que a história das ciências pode iluminar é o quão enganosa tem sido essa abordagem. Por exemplo, ao final do século XIX o célebre e certamente brilhante cientista britânico Lorde Kelvin, também um famoso divulgador científico, proclamou que a física estava completa no seu essencial, faltando apenas detalhes – para imediatamente surgirem novas teorias como as da relatividade e da física quântica para desmenti-lo. Outro exemplo: quantos geólogos não desprezaram inicialmente o climatólogo Wegener com sua teoria da deriva dos continentes, que aos poucos foi se impondo como correta? Ou ainda: como se revelaria presunçosa a ridicularização feita pelo importante cientista Otto Hahn quanto à afirmação da química alemã Ida Noddack, feita em 1934, de que os experimentos realizados por Fermi e outros indicavam não a obtenção de elementos transurânicos, como acreditavam, mas sim a fissão nuclear – algo que o próprio Hahn só admitiu a partir das explicações de sua colega Lise Meitner?
Seria, portanto, um terrível engano e uma falta de entendimento de como opera a ciência achar que sua história serve apenas para esclarecer um passado já solidificado na forma da ciência dominante. Afinal, nalgum futuro este nosso presente será considerado suficientemente distanciado para ser olhado como passado.
Dito isto, podemos nos atrever a lançar uma questão decorrente do exposto: quais são então as controvérsias científicas, grandes ou pequenas, por que passamos atualmente? Com esse olhar investigativo combinado com o narrativo, historiadores, filósofos, sociólogos e divulgadores da ciência poderiam se aproximar da atividade científica mais contemporânea para indagar do estado e modo de funcionar desse tipo de conhecimento chamado “ciência”. (Gostaríamos na incluir nessa relação também os próprios cientistas, mas sabemos como é difícil o distanciamento crítico – só alguns atores o conseguem com relação a si mesmos.)
Assim considerada, verificar-se-ia como está plena de controvérsias a ciência atual. Se isto é mais remoto para controvérsias relativamente menores, ao menos as disputas que envolvem dogmas prevalecentes mostrariam o quadro do progresso científico mais distintamente como um processo em construção. Certamente surgiriam temas como a explicação cosmológica do “big bang”, a aceitação da relatividade restrita e da geral, a formulação não causal da teoria quântica, a origem da vida e das espécies, as classificações taxonômicas, os projetos genômicos, o estatuto da fusão a frio, as estimativas de petróleo e outros energéticos, o uso de isótopos na química, a suposta superfluidade de viagens espaciais, a teoria do aquecimento global, a luta contra o câncer.
Muitos outros tópicos deveriam ser acrescidos, pois se trata de um fenômeno geral do conhecimento científico: as controvérsias existem, elas são o motor do progresso científico, mas ficam ocultas, conhecidas apenas por integrantes das elites científicas e, mesmo assim, não por todos. Se a ciência e seus intérpretes calam as controvérsias, optando pela inquestionabilidade dos dogmas, ela se torna um instrumento do status quo contra as mudanças, em suma um instrumento reacionário do poder. Ao contrário dos dogmas religiosos, a ciência deve ir se livrando de dogmas e explicações insatisfatórios.
Pelo contrário, a exposição das controvérsias realça a busca do progresso e da aprimoração dos conhecimentos. Em última instância, se desde pequenos aprendêssemos que esse confronto das controvérsias científicas é que é, no fundo, o processo da busca da verdade, temos a impressão de que seriam despertadas mais vocações para essa busca e as ciências seriam enfim mais popularizadas e menos elitizadas. Quão mais não seria prazerosa a prática das ciências e o aprendizado de sua história?
Gildo Magalhães é professor associado da USP.

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