Tuesday 22 October 2013

O MAL-ESTAR NAS CIÊNCIAS HUMANAS

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O MAL-ESTAR NAS CIÊNCIAS HUMANAS
Hilton Ferreira Japiassu 


Poderíamos indefinidamente glosar sobre a "cientificidade" das ciências humanas e sociais. O assunto é desafiador e estimulante. Nos dias de hoje, não desperta mais tanto interesse. No entanto, permanece ainda bastante atual a questão: são as ciências humanas ciências do homem? Sem dúvida, podemos afirmar que procedem de práticas do saber construindo pacientemente seus novos objetos, metodologia e epistemologia, mas sem se preocuparem com uma concepção global das ciências humanas. É reivindicado um campo preciso de pesquisas cuja fecundidade é medida de acordo com as transformações das idéias de "homem" e "humano" em nossa cultura. Se é verdade que essas ciências permanecem dependentes de ideologias recuperáveis, precisamos reconhecer: as pesquisas especializadas em história, linguística, educação, antropologia, sociologia, psicologia, etc. fornecem contribuições essenciais à reflexão sobre o futuro de nossa compreensão do "humano" no homem.O problema que se põe consiste em saber: o que tais estudos ganham em serem considerados como científicos? Trata-se de uma questão antiga. De um modo bastante polêmico, foi retomada por Karl Popper, ao construir seu critério de refutabilidade com o objetivo de estabelecer uma distinção entre as ciências da natureza e as outras formas de conhecimento podendo ser tentadas a apresentar-se como ciências, mas não possuindo as condições efetivas de atingir a objetividade. Claro que podemos desenvolver todos os tipos de objeções a respeito do conceito de refutabilidade, até mesmo ser céticos sobre seu interesse, sobretudo quando põe-se a funcionar de modo autônomo. Mas uma coisa nos parece correta: o problema da distinção entre ciências naturais e humanas. Nos anos 1970, quando se interrogava com seriedade sobre a existência dessas disciplinas e seu estatuto epistemológico, o professor Wolf Lepentes, diante da questão: "o que são as ciências humanas?", respnde: má literatura. Sua tese (em As três culturas) consiste em dizer que a ciência, como a literatura e as ciências humanas, não passam de discursos. Há discursos bem escritos, discursos que são bem construídos e discursos mal elaborados. A ciência é um discurso bem construído em seu domínio. Também a literatura, no seu próprio. No entanto, há uma espécie de entre-dois duvidoso: as ciências humanas, não sendo nem ciência nem literatura:, constituem má ciência e má literatura.
É inegável que as ciências humanas se encontram condicionadas pela sociedade moderna. E esta é incompreensível sem as ciências humano-sociais: não só transformaram o humano em objeto de saber rigoroso, válido e verificável, mas desempenharam um importante papel no projeto da emancipação iluminista, notadamente na efetivação da liberdade de pensamento e do exercício da tolerância. Não reivindicaram apenas uma liberdade abstrata. Forneceram os instrumentos teóricos para os homens tomarem consciência de que uma sociedade livre é a que lhes permite superar os dogmas, os preconceitos e as superstições que os aprisionam. De forma alguma queremos dizer que as ciências naturais pouco fizeram para tornar possível nossa modernidade. Sabemos que tiveram um papel decisivo em sua instauração e desenvolvimento. Apenas constatar que:
  • o "sentido" em que se move a tecnologia não é tanto o domínio mecânico da natureza, mas o desenvolvimento específico da informação e construção do mundo como "imagem";
  • a sociedade onde a tecnologia possui o seu auge na informação é a sociedade das ciências humanas: a) é conhecida e construída (como seu objeto apropriado) por essas disciplinas; b) em grande parte se exprime através delas.
Podemos constatar que as ciências humanas passam por uma profunda crise de identidade. E não somente por uma crise. Em muitos aspetos, vivem um profundo momento de mal-estar. No entanto, nunca houve tantos pesquisadores e estudantes nas disciplinas humanas e sociais quanto hoje. Nunca se produziu tantas obras especializadas. Numerosos têm sido os congressos, colóquios, simpósios, encontros e seminários. Também numerosas as publicações especializadas e a produção de dissertações e teses. Contudo, nunca se acreditou tão pouco no sentido nem se depositou tão pouca credibilidade na utilidade e na virtualidade de verdade de todos essas pesquisas e produções intelectuais quanto hoje. Não resta dúvida que os pais fundadores dessas disciplinas quiseram criar uma ciência, uma linguagem comum de direito a todos os homens, posto que seria a sintaxe enfim encontrada da verdade e da libertação. Esta pretensão meio desmesurada nos faz sorrir, pois a ciência atual parece ter renunciado à sua pretensão à verdade e, da forma como é praticada, pouco ou nada tem a ver com nossa libertação.Analisemos as essas disciplinas apenas no que diz respeito ao seu profundo mal-estar ou momento decrise. O que ainda têm a dizer-nos sobre o homem e a sociedade? Podem nos ajudar a compreendermos o mundo e a agirmos sobre ele para mudá-lo? A maioria de seus especialistas, entrincheirados nos muros de sua disciplina e dominados por um utilitarismo e um individualismo metodológico impedindo-os de reconhecerem a dimensão plural e coletiva da ação social, parece não saber mais interrogar sua época nem responder às exigências de uma construção democrática que não recalque o político em proveito do moral. Sem fazer concessão às exigências de um saber rigoroso, as ciências humano-sociais deveriam inventar novas formas de cidadania que seriam universalizáveis e, ao mesmo tempo, capazes de reconhecer as singularidades historico-culturais nas quais deveríamos buscar, não somente fontes de inspiração, mas razões de viver e esperar.
Aliás, as ciências humanas já nasceram por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica e prática: a sociedade industrial do século XIX precisou de novas normas para impor aos indivíduos. A Revolução francesa introduziu uma descontinuidade na história. Este acontecimento político, social e econômico inaugurou uma ruptura fundamental no universo ideológico da Europa de então. Por sua vez, o evolucionismo darwiniano veio demonstrar-nos a historicidade do ser vivo. A partir de então, como essa história não possui mais finalidade, intenção ou plano preestabelecido, surge a possibilidade desses saberes. Seu nascimento pressupunha o aparecimento teórico das noções de "Homem" e "História" como categorias filosóficas, que só aparecem no início do século XIX. Antes disso, o "Homem " não existia. Como nos lembra Foucault, "o campo epistemológico que percorreram as ciências humanas não foi prescrito anteriormente: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou das paixões. jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, algo como o homem. Porque o homem não existia (tampouco a vida, a linguagem ou o trabalho"(Les mots et les choses, 1966). Esta tese nos permite dizer que três foram as condições fundamentais que determinaram a produção desses saberes :
  • condições econômicas – O desenvolvimento da sociedade industrial produz problemas novos: organização do trabalho, gerência da produção e distribuição, previsão da evolução do mercado, etc. (economia política); formação, alojamento, educação, vigilância dos trabalhadores e suas famílias (sociologia, pedagogia); contar os trabalhadores e prever a evolução da mão-de-obra (demografia); selecionar os trabalhadores e estabelecer técnicas de adaptação às suas novas condições de vida, de aprendizagem e de trabalho (psicologia); ensinar-lhes a ler e a escrever (linguística); desenvolver mercados potenciais para os novos produtos da indústria (geografia, etnologia);
  • condições políticas – Torna-se indispensável uma transformação das estruturas políticas nas quais possam situar-se a produção da riqueza. A indústria nasce a partir do momento em que começam a existir trabalhadores livres e em que surgem leis definindo o mercado (papel das revoluções inglesa, americana e francesa). Ademais, as ciências humanas são postas a serviço, desde seu início, do bom funcionamento dos Estados, que passam a Ter novas tarefas;
  • condições teóricas – O modelo da Ciência, decalcado no das ciências naturais, passa a ser estabelecido, ideologicamente, como o lugar mesmo da verdade. Donde ser utilizado para o conhecimento do homem: trata-se de aplicar a Ciência ao homem, de instaurar um discurso sobre o homem e o humano. É essa representação ideológica que fornece sua legitimidade social à construção de discursos científicos ou positivos sobre o homem.
Desde seu surgimento, até mais ou menos os anos 1980, as ciências humanas se preocupavam em nos ajudar a compreender as relações do homem consigo mesmo e nossas relações com a sociedade; ajudavam-nos a entender nosso mundo e nosso tempo. E forneciam-nos meios para mudá-los. Como tudo isso parece passado, gostaria de interrogar sobre algumas das razões pelas quais renunciaram a pensar nosso tempo. Por que abdicaram de seu papel de despertadoras e esclarecedoras da consciência coletiva? Por que não conseguem mais dizer o possívele o desejável? Quais os motivos intelectuais de taldemissão? Em nosso entender, foram os modos deconceitualização nelas dominantes que as levaram progressivamente a se desinteressar por nossos problemas mais importantes e a se omitirem diante dos debates mais significativos de nossa época. Foi sua preocupação excessiva (embora louvável) com aobjetividade de seus conhecimentos que desviou seu olhar de tudo o que se presta facilmente a umamodelização reducionista. Nascidas do desejo de superar o conflito entre os homens, parecem não mais admitir que a luta e a rivalidade sobrevivem no interior mesmo da racionalidade. E que, neste domínio, toda pacificação só pode ser precária. Por outro lado, parecem não admitir que a democracia não se alimenta do consenso, pois tem como condição sine qua non o reconhecimento do seguinte fato: a divisão entre os homens pode e deve ser atenuada, mas é ilusória a crença em sua total abolição.Nos últimos anos, não só as ciências humanas vêm passando por um processo acelerado de crise de conjunto, mas cada uma vem sofrendo uma crise de identidade preocupante. Surgidas com o fortalecimento dos Estados-nações, têm se revelado mais ou menos desadaptadas ao atual processo de globalização e complexificação dos conhecimentos. Como cada vez mais só encontram legitimidade as proposições procedendo de vários campos disciplinares, perdem relevância as de cunho estritamente monodisciplinar. Para essa desadaptação, duas alternativas são propostas:
  • uma postula que devemos renunciar ao velhoprincípio disciplinar, em proveito de um utilitarismo e de uma bricolagem revestidos do pomposo nome de "multi- ou transdisciplinar";
  • a segunda, análoga à busca de uma supranacionalidade, postula que devemos buscar a saída numa espécie de supradisciplinaridadecapaz de federalizar as disciplinas autônomas.
Na prática, a maioria das ciências humanas continua jogando o jogo disciplinar instituído. Não são poucas as que, seguindo essa lógica endisciplinada, ainda depositam sua confiança num empirismo limitando-se a registrar fatos e resultados, como se os fatos falassem de modo suficientemente claro para as necessidades da prática. Outras acreditam encontrar a solução numpositivismo ainda em vigor, vale dizer, nas concessões mútuas do empirismo e da teoria disciplinar, num compromisso entre a insistência nos fatos e a utopia dos conceitos: a investigação empírica é elaborada sobre os pontos indicados pela teoria, mas esta se enunciando em conceitos operatórios, testáveis e invalidáveis pela observação. Sem falarmos das que cedem a um empirismo tecnocrático mais preocupado com o número dos contratos de pesquisa, como se os pesquisadores devessem provar que compreendem o lado administrativo e burocrático da realidade e que somente é real a visão administrativa e gestionária das coisas.Desde sua origem, as ciências humanas vêm enfrentado o desgastante debate em torno de sua "cientificidade". Esse debate, no decorrer do qual tentaram definir sua fisionomia específica, foi marcado pela distinção entre ciências naturais nomotéticas e ciências humanas idiográficas ou entre ciências da natureza e ciências do espírito, com a oposição entre explicação causal e compreensão. Nas décadas recentes, essa contraposição se revelou bastante insatisfatória, não somente porque não podíamos deixar as ciências humanas em poder de uma compreensão quase que exclusivamente intuitiva, mas porque as próprias ciências naturais cada vez mais se abriram aos modelos interpretativos de tipo histórico-cultural. Qualquer que seja o estado das coisas nas hard sciences, é inegável que, nas soft sciences se impuseram modelos de racionalidade (o centrado no tipo-ideal weberiano ou o "modelo zero" popperiano) nos quais fica evidente o caráter intra-histórico dos modelos de interpretação utilizados pelas ciências humanas. Neste sentido, a lógica de base com que podemos avaliar criticamente, não só o saber dessas disciplinas, mas a possível "verdade" do mundo e do homem que podem nos propor, é profundamente "hermenêutica", não uma simples conformidade de seus enunciados com qualquer estado de coisas.
A oposição radical entre Natdurwissenschaften eGeistwissenschaften se funda na idéia de que as segundas (reagrupando os domínios tradicionais da filosofia, da filologia, da história, e os domínios mais recentes da psicologia, da sociologia e da antropologia cultural) distinguem-se radicalmente das primeiras pela especificidade de seu objeto: o "espírito humano", dotado de uma natureza distinta da matéria inerte ou viva; seu estudo exigindo uma demarche mais decompreensão que de explicação. Ninguém nega a importância da linguagem e da dimensão histórico-cultural na espécie humana. Mas justifica isto a clivagem radical entre dois grandes territórios do saber? Por que introduzirmos essa ruptura no caso do homem, quando não acontece nos casos em que passamos das ciências da matéria inanimada às ciências da matéria viva? Na prática, a dicotomia torna bastante desconfortável a posição de disciplinas situadas na interface das ciências naturais e das humanas: psicobiologia, neuropsicologia, psicologia comprada, etnologia, disciplinas que não admitem uma separação radical entre biologia e ciências humanas. Entre elas, há certa continuidade, mas não necessariamente reducionismo
Se podemos dizer que as ciências humanas surgiram tentando inscrever-se no âmbito de uma "antropologia pragmática" fornecendo uma descrição "positiva" (não filosófico-transcendental) do homem, não a partir do que é por essência, mas do que faz de si mesmo, vale dizer, a partir das instituições, das formas simbólicas e da cultura; por outro lado, se admitimos que as ciências humanas são capazes de descrever "positivamente" o que o homem faz de si na cultura e na sociedade, claro que devemos reconhecer que a idéia de descrição está essencialmente condicionada pelo desenvolvimento de tal positividade do fenômeno humano articulando-se com o da sociedade moderna. Torna-se claro (a partir das Luzes) que, submeter as realidades humanas a uma análise científica não constitui apenas um programa epistemológico com interesses cognitivos, mas uma decisão política só podendo ser compreendida em relação a um ideal de transformação da sociedade e de superação dos dogmas, preconceitos e superstições.
Na medida em que as ciências humanas perderam as linhas de força capazes de comandar sua organizaçãoe seu funcionamento e passaram a adotar uma atitude predominantemente informada e dirigida por umutilitarismo generalizado sugerindo-lhes as questões a serem analisadas e apontando os resultados a serem obtidos, começaram a entrar em decadência. Em outras palavras, seu grande mal-estar tem início quando passam a ser comandadas pela chamadaaxiomática do interesse (modernosa versão teórica do velho utilitarismo) que continua identificando interesse com posse ou aquisição. Em sua lógica, tudo o que pensamos, fazemos ou sentimos é motivado e comandado pelo interesse em possuir alguma coisa: nossos desejos, nossos apetites, nossas aspirações ou esperanças teriam por causa última ou determinante o interesse manifesto ou oculto de possuir o objeto visado. Nesta perspectiva, a vida humana se reduz a um cálculo consciente ou inconsciente susceptível de regular a economia da posse. É o interesse do ter ou possuir que nos leva a amar os outros ou a dominá-los, a buscar o prazer, a felicidade, a virtude e o poder. Freud condensou seu pensamento numa frase: "Wo Es war, soll Ich werden". Propomos a seguinte tradução livre: "Lá onde o interesse está, a verdade do "desejamos" deve tornar-se". Por isso, diga-me aquilo pelo qual te interessas, e eu te tirei quem és!
A vertente normativa desse interesse é constituída pela identificação da Justiça à felicidade do maior número possível. Os economistas, os psicólogos, os sociólogos, os antropólogos, etc. estão muito mais preocupados em fornecer, lançando mão da chamadateoria das escolhas racionais, "receitas", "diretrizes" ou "conselhos" susceptíveis de orientar "cientificamente" as ações individuais e coletivas. Claro que nem todos os cientistas humanos e sociais deixam-se levar ou dominar por tal utilitarismo. No entanto, a maioria fica praticamente impossibilitada de escapar de uma lógica disciplinar ainda bastante mandarinal, aceitando o princípio "cujus regio, ejus religio". Na realidade, tudo indica que é essa axiomática do interesse (teoria da ação racional) que constitui a religião principal dessas disciplinas. E é justamente sua adoção que as leva a viverem, no plano horizontal, um processo dedissolução identitária e, no vertical, um processo deexplosão e de implosão. Donde sua atual indeterminação paradigmática.
Se esses saberes se tornaram politicamente insignificantes, talvez seja porque se esqueceram de que a essência das sociedades (como a do homem,zoôn politikôn) é política. Seu declínio coincide com seu processo de despolitização. Nosso atual cenário intelectual parece dividido em dois: de um lado, alguns filósofos e cientistas sociais são chamados a emitir suas opiniões ou pareceres sobre os assuntos mais diversos; do outro, uma comunidade esfacelada de pesquisadores em ciências humanas produzindo uma massa considerável de trabalhos dificilmente acessíveis e aparentemente distantes dos grandes debates públicos. Claro que vêm aparecendo trabalhos desembocando em proposições realmente inovadoras e fornecendo elementos para pensarmos de outra forma o humano, o social e o político. Novos conceitos e teorias vêm sendo elaborados, vindo restabelecer as pontes entre os diferentes campos da pesquisa e tentando ressituar o homem e o sujeito no cerne mesmo das reflexões. Uma nova geração está emergindo, preocupada com uma busca do sentido sem teleologia e revelando um grande gosto por uma ação sem ativismo, tendo em vista pensar o elo social na Cidade moderna. Mas limitemo-nos à compreensão do processo de crise.
Somos obrigados a reconhecer: aincz persiste, em muitos cientistas humanos, uma nefasta repartição de tarefas produzindo estragos irreparáveis: a reflexão sobre as normas e os valores deveria ser uma exclusividade dos filósofos; os cientistas só deveriam se preocupar com a análise fria dos fatos. Esta tese, segundo a qual o papel das ciências sociais se limita aos juízos de fato, é historicamente insustentável, como veremos. Há alguns anos, o filósofo das ciências Karl Popper parecia ter decretado a inutilidade dessas disciplinas ao constatar e resumir o aspeto positivo de seu otimismo: "Pretendo que vivemos num mundo maravilhoso. Nós, os Ocidentais, temos o insigne privilégio de viver na melhor sociedade que a história da humanidade jamais conheceu. É a sociedade a mais justa, a mais solidária, a mais humana da história". Em toda lógica, e em conformidade com sua epistemologia só atribuindo valor de verdade às proposições refutáveis, nosso autor conclui que as ciências sociais em geral e a sociologia em especial deveriam limitar-se a um papel bastante modesto de assistência social. Ademais, deveriam renunciar à sua pretensão de se interrogarem sobre a justiça e as formas desejáveisdas relações sociais e assumirem, como seu destino, um papel decididamente assistencialista, como se devessem se converter nas "enfermeiras" científicas dostatus quo.
Se a história terminou, como proclamam os neoliberais ou como vem propondo Popper há décadas (pois se julga um otimista racionalista ignorando tudo do futuro e, portanto, não fazendo nenhuma previsão", pois teriam desaparecido as grandes interpretações da história: a nacionalista ou racista, a marxista e a cínica), não valeria mais a pena tentarmos reinventá-la ou reanimá-la. Esta decretação do fim da história tem muito a ver com o processo de denegação do político. Sendo assim, as ciências humano-sociais não precisam maispensar nosso tempo. Deveriam ser reduzidas a doutrinas racionais das condutas. Seu grande objetivo: construírem uma sociedade sem poder, apolítica, funcionando sozinha graças à simples força das coisas. O que precisamos entender é que não foi o socialismo que realizou o sonho saint-simoniano de substituir a administração das pessoas pela gestão das coisas, mas a sociedade liberal. Ao se interrogarem sobre o ponto de vista do universalismo, do mercado, do Estado administrativo e da ciência, não ficam as ciências sociais impossibilitadas de compreender a afirmação das identidades particulares? E não tem contribuído este fenômeno para que assistamos hoje à explosão dos racismos, do ódio, da xenofobia e dos mais diversos fundamentalismos e, mesmo, obscurantismos? O que devemos fazer para que as ciências humanas e sociais voltem a alimentar o diálogo dos homens entre si e o debate político da sociedade consigo mesma? Creio que, ao analisar algumas das causas de seu mal-estar e de suas crise, já estaremos indicando algumas pistas possíveis de saída.
Em primeiro lugar, precisaríamos fazer uma análise rigorosa dos mecanismos da instituição universitária e do mundo da pesquisa a fim de compreendermos como seu agenciamento produz, sem que ninguém ouse assumir qualquer coisa, uma espécie dedesresponsabilização generalizada de todos em relação à coisa pública. Por que isto acontece? Minha uma hipótese: um dos principais fatores de esterilização do pensamento contemporâneo, sobretudo no domínio das ciências humanas, reside na crescente lógica da encomenda administrativa da pesquisa. Muitos jovens pesquisadores devem sua sobrevivência à sua capacidade de responder às pesquisas encomendadas pelo poder público ou pelas empresas privadas. E o que precisamos reconhecer é que essa encomenda pode desempenhar (e tem desempenhado) um papel bastante perverso. Ornada de todas as indumentárias utilitárias e da retórica científica, a pesquisa encomendada sugere mais ou menos claramente as questões pertinentes e subrepticiamente sugestiona as respostas os resultados desejados. A finalidade principal dessas pesquisas não é tanto a de fornecer esclarecimentos ou elucidações, mas a de, previamente, neutralizar ou amortecer toda eventual crítica vinda do exterior.
Nesse tipo de pesquisa, o importante é fazer os intelectuais e pesquisadores acreditarem que suas opiniões ou pareceres técnicos são importantes e serão levados em conta nas "políticas" e "decisões" do poder. Na verdade, não desempenham apenas funções protocolares e decorativas, permanecendo dóceis aos que os contratam? Não se convertem, as pesquisas nessas disciplinas, numa espécie de engenharia social ou de pragmatismo gestionário apto apenas a produzir intervenções mais ou menos miraculosas sobre as contradições da realidade? Se esses gestionários ou pragmatistas fossem ouvidos, será que haveria menos miséria e injustiça, com a ilusão renovada de que a gestão racional poderia suprimir todas as formas de dominação? Em sua sabedoria política, o rei Luiz XV já havia encarregado seu ministro Colbert de silenciar os intelectuais de sua época ofertando-lhes alguns cargos e honrarias.
Claro que os universitários não se encontram submetidos a priori ao regime da encomenda nem tampouco deixam-se facilmente cooptar pelos poderes ou seduzir por cargos e honrarias. Mas há algo estranho e surpreendente no meio acadêmico: o clima de medo que nele reina. Todo mundo parece desconfiar e ter medo de todo mundo. A situação adquirida dos "mandarinatos" no ensino, na pesquisa e na administração freia as inovações. O peso da rotina por vezes é sufocante. A rigidez das estruturas mentais paralisa e bloqueia as iniciativas. A inevitável inveja dos conformismos e conservadorismos em relação às idéias novas que seduzem alimenta o ódio fraterno. No enfeudamento das instituições, onde frequentemente o carreirismo é buscado sem competência e inexiste a crítica dos saberes fragmentados, os mestres mais titulados pouco se arriscam. Neste clima, a lógica da encomenda se revela uma tentação. Inclusive, uma sedução. O valor de cada um é medido pelo tamanho de seu gabinete, é proporcional ao número de contratos de pesquisa obtidos ou de orientandos, à quantidade de pesquisadores envolvidos e de instrumentos disponíveis.
Nessas condições, a lógica do conhecimento tende a submeter-se à da encomenda. Assim, instala-se o carreirismo. E busca-se a todo custo as promoções e o reconhecimento. Isto não quer dizer que os resultados obtidos não tenham nenhum valor. Em geral, o que é produzido se assemelha bastante a "relatórios" mais ou menos bem elaborados, mas de relevância cultural ou intelectual duvidosa ou de insignificante "utilidade" social. Não dizemos que os professores e pesquisadores de ontem eram melhores que os de hoje. Não resta dúvida que os de hoje são melhor preparados e mais bem informados. A causa da perda de sentido das ciências humanas e sociais reside na mutaçãomais ou menos radical das instituições do saber e na profunda mudança de rumo que se impuseram para se adequar às novas "políticas" de fomento e financiamento das pesquisas nesse setor.
Donde nossa segunda hipótese: a razão fundamental do declínio e esterilização das ciências humanas deve ser buscada na perda de sua capacidade de seautolegitimarem e se organizarem em função de uma lógica autônoma do questionamento e do pensamento. Privadas de espinha dorsal (com o abandono dopolítico), passaram a buscar sua legitimação fora delas mesmas, na encomenda administrativa ou privada. Enquanto se preocuparam com as questões que elas mesmas se colocavam, tiveram uma função social decisiva. Mas a partir do momento em que se deixaram colonizar pelo Estado administrativo e burocrático, que deixaram de acreditar no bem-fundado de suas próprias questões, que se puseram a responder socilitamente àdemanda social, praticamente ficaram mudas e se tornaram mais ou menos inúteis. Seu discurso, ao tomar essa direção, engendrou e manteve ilusões que custaram caro na prática. Porque é aos práticos que o preço é mais alto. A função dos acadêmicos (teóricos) tem sido o de acompanhar e sustentar um processo de pesquisa efetuado pelos práticos e, nesse procedimento, formá-los na pesquisa..
Por isso, talvez o único remédio possível, para tal evolução funesta, seja a reivindicação de umaseparação clara entre o Estado (e o Mercado) e o Saber. Separação análoga à que se instaurou entre a Igreja e o Estado. Só que, neste caso, foi o Estado que se libertou da Igreja. Agora, compete ao Saber tentar promover sua libertação. Daí a importância de redescobrirmos as ciências humanas como origem (oculta e mascarada) dos discursos administrativos que comandam o trabalho social (entre outros) e de enfatizarmos seu lugar na constituição desse ideal "utilitário" proposto aos pesquisadores. Porque têm ocupado, nas últimas décadas, um lugar essencial: como objeto de crítica (frequentemente excessiva e, mesmo, dogmática) nos anos 1960, e como fonte de esperanças tecnocráticas: sonhou-se até em fazê-las ocupar o lugar da filosofia. No período seguinte, somente a segunda tendência parece ter subsistido sob a denominação da utilidade.
Evidentemente que tal emancipação não significa um retorno ou mandarinato de outrora. A libertação do Saber relativamente ao Estado e ao mercado supõe a existência de cientistas dispostos a viverem para o Saber e com coragem de não aceitarem a posição que lhes parece estar reservada: a de simples funcionários ou de meros tecnocratas vivendo do Saber, mas a serviço do Poder e dos poderes. Ora, exigir a separação do Saber e do Estado (e do Mercado) é pedir o impossível, pois logo surge a questão: quem pagará ou financiará? Significa pedir ao Estado e às empresas que se disponham a financiar os cientistas sem exigir deles nenhuma prestação de contas ou que se submetam aos controles sociais. Assim, é tão intensa a submissão dos que sabem aos que gerem e financiam, que parece bastante inconsequente toda idéia de emancipação do Saber. Mas eis o problema: sem uma independência financeira, praticamente nenhum saber consegue libertar-se da instrumentalidade e da obrigação de ser útil.
Até bem recentemente, as ciências humano-sociais ainda possuíam um inegável caráter político. Contudo, a maioria dos chamados social scientists admite uma incompatibilidade radical entre o científico e o político, entre o desejo de saber e o de enunciar normas ou diretrizes de ação para a vida em comum. Somos "cientistas", não "ideólogos"! A ética fica praticamente reservada aos saberes ditos religiosos ou filosóficos. Quanto ao político, torna-se uma exclusividade das chamadas "ciências políticas". Assim, o caráter propriamente científico de uma obra ou de uma pesquisa é considerado como diretamente proporcional à ausência de toda cultura filosófica e à exclusão de todo propósito normativo (ético ou ideológico) e de todo juízo de valor. Pelo menos, é assim que funcionam as comissões de recrutamento e de promoção no ensino e na pesquisa. Produz-se uma verdadeira assepsia política do saber. Esta assepsia, que é recente, está fundada no princípio segundo o qual as ciências humano-sociais só conseguem impor seu estatuto de cientificidade na medida em que abandonam seus próprios desafios e se demissionam de seu questionamento ético-político. Como se devessem acreditar no dogma de não se sabe quê "imaculada conceição" das ciências. Como se lhes fosse possível instaurar uma completa dissociação entre os juízos de fato e os de valor. Como se devêssemos aceitar como uma aquisição inquestionável o triunfo definitivo da crença numa separabilidade radical entre o saber e o questionamento político.
Historicamente, as coisas não passaram assim. Na Grécia antiga, não há incompatibilidade entre a preocupação normativa e o conhecimento positivo. Para Platão e Aristóteles, é a preocupação normativa que impulsiona e dá forma ao conhecimento positivo. A questão primeira e central é a da justiça: quais as instituições mais desejáveis para a Cidade? Qual amelhor forma de vida para os indivíduos vivendo em sociedade? Este modo de ver fica mais ou menos inalterado até a era moderna. No começo do século XVII, o filósofo Hobbes, retomando o realismo cínico de Maquiavel, funda a filosofia política ao inventar as doutrinas do direito natural e as teorias do contrato social. Com isso, dá um novo elã à possibilidade do nascimento das ciências humanas. A partir de então, os pensadores não se preocupam tanto em descrever o mundo e a sociedade, mas em imaginar como poderiam e deveriam ser. Toda essa teoria iusnaturalista vai desembocar na doutrina dos direitos do homem. Praticamente todos os pensadores posteriores ficam obcecados pela seguinte idéia: descobrir, para o conhecimento da sociedade, fundamentos tão sólidos quanto os que Newton havia proposto para as ciências da natureza.
É somente no século XIX que podemos falar de um saber propriamente positivo do homem. Inicialmente, surge sob a forma da economia política (A. Smith); em seguida, da sociologia (Saint-Simon e Comte). Nas obras da maioria dos autores dessa época é marcante o caráter profético. E são repletas de injunções normativas. Posteriormente, Durkheim e Weber tentam produzir conhecimentos positivos (científicos) independentes dos juízos de valor e fundados apenas nos juízos de fato. No entanto, ambos se empenham para fundar uma moral e uma política. Fundação bastante paradoxal, porque incapazes (por natureza) de legitimar ou invalidar os valores últimos. Mas trata-se de um aparente paradoxo, pois, dessa impossibilidade mesma decorre a superioridade intrínseca que Weber atribuiu ao liberalismo ou, pelo menos, a esta doutrina que reconhece o politeísmo dos valores e que as aspirações dos homens precisam submeter-se às normas da racionalidade formal. Por sua vez, Durkheim (como seu mestre Comte) acredita na possibilidade de determinar cientificamente as normas necessárias a uma existência social harmoniosa. Portanto, para esses dois pais fundadores, o desafio primeiro da Sociologia reside justamente na questão política. O que realmente confere às suas obras uma importância fundamental é a acuidade do questionamento normativo e, por conseguinte, político da sociedade de sua época: tentam descrever o ideal para o qual ela deveria tender.
Mas tudo isso parece ter sido relegado ao passado das ciências humano-sociais. A partir dos anos 1980, a maioria de seus especialistas adota uma posição de renúncia ao político. Cada um se refugiam cada vez mais nas trincheiras de sua disciplina ou sub-disciplina, perdendo a capacidade de interrogar sua época. O esquecimento do político se inscreve no interior mesmo de suas teorias. E ganham terreno o utilitarismo e o individualismo metodológico impedindo-os de reconhecerem a dimensão plural e coletiva da ação social. No campo do ensino e da pesquisa, teria se instaurado uma profunda mutação. As ciências humanas teriam passado a funcionar segundo um novo regime epistemológico. Ao instaurarem uma ruptura com a tradição anterior, teriam iniciado o processo de suadespolitização. E ao recusarem cada vez mais a avaliação crítica, começaram a revelar sua verdadeira natureza: constituírem uma racionalização (no sentido psicanalítico) de uma prática de opressão, exploração e normalização.
É a partir de então que começa a triunfar a crença na separabilidade radical entre o Saber e o questionamento político. Nas diversas disciplinas, os clássicos pouco influenciam. Deles, os alunos e os jovens pesquisadores conhecem apenas os nomes e uma ou outra idéia geral. Seja pela leitura direta (de textos) ou dos manuais resumindo suas idéias ou seu pensamento, só é preservado, de suas obras, para cada campo do saber, o que se julga útil conhecer (pouco coisa). Trata-se de um tributo a ser pago à instituição ou à tradição. Esta, embora canonizada ou glorificada, apresenta-se como algo morto, pouco ou nada tendo a nos dizer nos dias de hoje. Ninguém mais parece segui-la, embora muitos ainda a ela se refiram como se fosse uma fonte inspiradora. Nos domínios da Sociologia, Linguística, História, Psicologia, Economia, etc., o que se diz é que atualmente se faz outra coisa, totalmente diferente do que se fazia antes. O grande problema consiste em sabermos o valor e o alcancedessa outra coisa que estariam fazendo os cientistas humanos. É possível que suas disciplinas tenham se tornado indescritíveis e inacessíveis a todo olhar englobante. A ponto de ninguém parecer mais saber de quê elas falam. Se ninguém sabe o quê nos dizem, talvez seja porque tenham abandonado (sem se darem conta) toda ambição normativa e a pretensão políticade elucidar a escolha das regras da Cidade. Ao se tornarem apolíticas, entraram num estado de letargia, transformando-se em "saberes instrumentais" a serviço dos poderes.
Por tudo isso, precisamos nos interrogar sobre a normatividade intrínseca dessas disciplinas e reconhecer que a separação radical entre juízos de valor e de fato não somente se revela impossível, mas nem mesmo é desejável. Claro que se distinguem. Todavia, nenhum critério positivo pode garantir-nos que nos encontramos efetivamente na ordem dos fatos e não mais na da valoração. Entre essas duas ordens está presente uma relação de incerteza e de indeterminação que precisa permanecer em aberto. Toda a pretensiosa afirmação de que a ciência teria chegado, enfim, ao verdadeiro real ou que teria conseguido abolir por completo o normativo e afastado os valores, é bastante ideológica e perniciosa. Por isso, por mais que possamos achar que as ciências humano-sociais "funcionam", diria que "não funcionam". Porque só "funcionarão" efetivamente quando conseguirem assumir seus próprios desafios e não proscrever sua textura propriamente normativa. Em outras palavras, só funcionarão quando voltarem a alimentar a esperança de compreender o sentido e elucidar a direção da aventura humana e, assim, contribuir para esboçar os contornos de uma sociedade menos injusta e mais harmoniosa. Não devem ter medo dessa esperança, a pretexto de um eventual retorno às velhas impregnações religiosas, teológicas e metafísicas.
Importa-nos lembrar que, historicamente, o papel das ciências humanas foi o de destruir as ingenuidades, dissolver a tradição e as sociedades arcaicas para promover a instauração de uma sociedade totalmente moderna e racionalizada, definitivamente cortada da tradição. Se tal tarefa já foi realizada (como parecem supor os epígonos no novo liberalismo), nada mais teriam a comunicar aos homens e à sociedade de hoje. Não lhes caberia mais propor-nos o possível e o desejável. Porque, se é verdade que a sociedade moderna "é a mais justa, a mais igualitária e a mais feliz jamais existente" (Popper); se a história já teria terminado, nada mais havendo a inventar, é claro que as ciências humanas não precisam mais intervir nos debates políticos e ideológicos, visto que as sociedades modernas teriam condições de funcionar sozinhas, sem necessidade de recorrer às idéias. Seriam incapazes de estar à altura dos desafios de nossa época, de contribuir para formular as questões cruciais e fornecer-lhes algumas das respostas mais esperadas Ora, como podem as ciências humano-sociais se calar quando sabemos que, do ponto de vista da efetividade sócio-histórica, vivemos em sociedades profundamente desiguais, notadamente no que diz respeito ao poder sob todos os seus aspetos? E pouco importa, quanto a essa desigualdade, a renovação das camadas dirigentes por recrutamento ou cooptação dos elementos mais aptos, hábeis ou inteligentes das camadas dominadas.
Claro que defendo a seguinte idéia: as ciências humano-sociais não podem abdicar de sua condição de pensar seu tempo e exercer, em nossa sociedade, o papel de esclarecedoras e despertadoras da consciência coletiva, se é que ainda pretendem dizer o possível e o desejável. Por isso, não podemos aceitar o diagnóstico pessimista a seu respeito. Porque parece-nos insustentável a dicotomia radical entre os juízos de fato e os de valor, entre o plano cognitivo e o normativo. Foi essa dicotomia fantasmática que introduziu o divórcio entre as ciências humanas e a filosofia. Ora, as primeiras surgiram, pela substituição do pensamento mítico ou religioso, quando buscaram, para a ordem social, uma origem propriamente humana, não divina. Quer dizer, quando tentaram fornecer-lhe um fundamento imanente. O que tentaram buscar os teóricos do direito natural (até Rousseau) foi o fundamento "político" da ordem social. A grande originalidade das ciências sociais foi a de reconhecerem que a sociedade civil não se reduz ao político, embora a essência do elo social seja de ordem política. Mas não tenhamos ilusão: esquecer "o político" não é a mesma coisa que olvidar "a política". Esquecer o político significa esquecer o Estado, que existem instituições políticas, um aparelho administrativo e um sistema eleitoral. Não é esquecer o confronto dos interesses organizados em vista da conquista do poder. Tampouco se omitir em levar em conta o conjunto das ações, das instituições, dos projetos, das representações e das crenças dizendo respeito à obtenção, preservação ou perda do "monopólio da violência simbólica". Sobre esse ponto, entregues aos cuidados dos juristas e dos cientistas políticos, as ciências humano-sociais permanecem bastante discretas. O que é uma pena.
No mundo de hoje, quando se anuncia e proclama o fim das certezas, o declínio das verdades e a crise da racionalidade científica; e quando assistimos ao fracasso das grandes ideologias, tudo isso transformando nossas vidas em aparências, em espetáculos e, mesmo, em simulacros, os cientistas humanos ficam completamente desamparados diante de uma sociabilidade desagregada, incapazes de conferir um sentido às nossas existências individuais e coletivas. Muitos se acomodam a essa situação. E se trancam no conforto da erudição acadêmica. Refugiam-se no indiferentismo e no cinismo ou passam a fazer concepções aos tecnoburocratas da pesquisa. Esquecem-se de que as ciências humano-sociais se encarnam em ações. Por isso, deixam de buscar o sentido dessas ações. Ora, sabemos que a questão do sentido se impõe em termos de verdade. E coloca o problema das relações entre Saber e Liberdade. Em sua Ética, Espinoza nos ensina que não podemos separar a exigência da liberdade, a busca da beatitude ou da alegria e o desejo de saber. Quem faz concessão ao Saber, faz concessão à Liberdade!
Tudo indica que as ciências humano-sociais só são prestigiadas quando podem ser recuperadas pela ideologia dominante a fim de pô-las a serviço da gestão da ordem estabelecida. Como se sua finalidade coincidisse com a de um pragmatismo gestionário tendo por função fornecer "receitas científicas" ("conselhos" ou "pareceres") aos dirigentes das empresas e da administração. Como se sua vocação fosse a de fornecer uma racionalização do conhecimento prático desses dirigentes. Mas quanto os cientistas humanos e sociais assumem um papel propriamente teórico e crítico, logo passam a ser suspeitos e a decepcionar os detentores dos poderes e as agências de financiamento. São socialmente desqualificados ou relegados a certo ostracismo, se não como "traidores", pelo menos como "parasitas inúteis". Mas a partir do momento em que põem seus saberes a serviço dos poderes e da ordem, merecem certa credibilidade e certos favores. Mas têm um preço a pagar: cedem em relação a seu Saber, consequentemente, em relação à sua Liberdade. Mas nem sempre foi assim. Esta concepção é relativamente recente.
No início dos anos 1960, quando as ciências humanas começaram a alimentar o sonho tecnocrático de produzir soluções tecnicamente estabelecidas para os problemas sociais, o psicanalista Jacques Lacan toma posição contra a transformação (na França) das Faculdades de Letras em Faculdades de Letras e Ciências Humanas: "Os programas que se esboçam como devendo ser das ciências humanas não têm outra função senão a de serem um ramo acessório do serviço dos bens, do serviço dos poderes". A partir de então, elas praticamente se convertem em auxiliares do exercício do poder. O interessante a observar é que, nesse momento histórico, entre nós, o ensino da filosofia passa a ser desprestigiado, tornando-se praticamente abolido (no curso secundário). Ora, devemos salientar a estreita ligação entre a existência de um ensino da filosofia e a possibilidade mesma da vida democrática; e a relação entre a supressão desse ensino e a tarefa consignada à educação de qualificar "profissionais" para o mercado e produzir agentes dóceis ao poder.
O que pretende nos mostrar Lacan é que o "serviço dos bens" diz respeito ao poder, a seu estabelecimento e à sua manutenção. Poder humano, demasiado humano, cuja consequência é o rebaixamento do desejo (do Saber, da Liberdade). Qual a proclamação de Alexandre (o Grande) ao conquistar Persépolis, como a de Hitler ao tomar posse de Paris? Ouçam-me! Eu vim libertá-los! Continuem a trabalhar! Que o trabalho não pare! Não ousem pensar! Isto é para o seu bem! Tradução: em hipótese alguma deve manifestar-se odesejo, quer dizer, a liberdade. O Saber é algo perigoso. Por isso, deve ser controlado e cooptado. Donde a moral do Poder, do serviço dos bens: o Desejo (a Liberdade, o Saber) sempre pode esperar. A função dos cientistas humanos e sociais é a de continuarem trabalhando na convicção de que isso é para o seu bem (lembremos que quando uma mãe perversa pratica certas atrocidades contra seus filhos sempre é para o seu bem!).
Creio que não somente podemos mas devemos reagir a esse processo de alienação. Porque jamais devemos agir em conformidade com mo desejo dos outros. Se assim o fizermos, estaremos nos alienando, obedecendo à lei de um outro e assumindo a servidão que, por ser voluntária, provoca em nós uma dupla atitude: de ignorância e de canalhice. Não podemos aceitar que ninguém se aproveite de sua posição de Saber para dar-nos conselhos ou impor-nos algo capaz de impedir a manifestação de nosso desejo ou de nossa liberdade, consequentemente, de nosso saber. Nem pedagogias, nem terapêuticas nem governos: todas essas práticas participam da escolha por um outro (para o seu bem, é claro), sem que este outro tenha sua palavra a dizer sobre o quê poderia constituir o seu bem. Não devemos aceitar que, a partir das ciências humanas, sejam constituídas técnicas capazes de bloquear o desejo dos sujeitos humanos, técnicas que podemos chamar de "reeducação", "readaptação", "reintegração", "reinserção", "ressocialização", etc. Todas têm por objetivo nossa normalização, nosso enquadramento nas normas e nosso conformismo (para o nosso bem). Ora, a função das ciências humanas á de inventar as normas, não impô-las. Não há "canalhice" em inventá-las e fazê-las respeitar, em difundi-las e ensiná-las, mas quando procuramos fazê-las passar por aquilo que não são: "leis da natureza", e não da sociedade.
Em relação a esse debate, creio que o discurso das ciências humanas e sociais deveria assumir a postura da filosofia que, com serenidade, reconhece: não serve para nada. Esta reivindicação de inutilidade remete à recusa de servir a algo ou a alguém. Dizer que a filosofia não serve para nada não significa negar que possa ter eventuais efeitos, mas recusar que lhe seja posta a questão de sua utilidade. Não podemos aceitar a lógica pretendendo que toda ação humana só vale pelo serviço que presta, que só podemos avaliar uma ação por sua operacionalidade ou seu valor de uso. Por isso, não servir para nada" significa recusar toda limitação à produção dos conhecimentos e à sua difusão; significa jamais aceitar que, em nome da utilidade, muitas pessoas sejam mantidas na ignorância por outros que saberiam por elas e em seu lugar. Ora, nenhuma ignorância é útil. Esta deveria ser a divisa de todas as escolas.
Coloca-se aqui, no plano da educação, o problema daprofissionalização. Tanto os professores quanto os alunos podem subordinar seu ensino e sua aprendizagem às palavras de ordem das necessidades do mundo econômico ou do mercado. Sendo assim, ö que significa este nome pomposo "profissionalização"? Nada mais nada menos uma interdição dirigida a todos de se interessarem por outra coisa distinta do que poderia almejar um empregador possível. Profissionalizar consiste, antes de tudo, em reduzir o campo dos conhecimentos (fazer o máximo de concessão possível ao Saber), a pretexto da especialização necessária à eficácia, à rentabilidade (da formação, do formado e do formador). Neste sentido, é altamente castradora da liberdade, pois faz demasiadamente concessão ao Saber, só levando os indivíduos a aprenderem o que é útil, o que pode estar a serviço dos bens ou submetido às "leis" do mercado.
Se o especialista é alguém que possui grandes lacunas em sua ignorância, profissionalizar significa aumentar essas lacunas. E quanto essa perspectiva profissionalizante domina a mentalidade dos professores e pesquisadores, trata-se de uma "questão de polícia", pois mutila tudo o que poderia fazer delesintelectuais, considerados numa tríplice afirmação: potência de tornar-se ativo, vontade que avalia e vontade que interpreta. Enquanto potência de tornar-se ativo, o intelectual se define pelo interesse ou paixão por aquilo que escolheu como seu objeto: recusa que um objeto lhe seja imposto pelo jogo da atribuição de cargos ou subvenções. Enquanto vontade que avalia, define-se e afirma-se pelo caráter diferenciado de seu trabalho. Enquanto vontade que interpreta, define-se e se afirma como alguém que tem o direito ao pensamento e à paixão por esse pensamento. Assim, não condenamos as ciências humanas por terem nascido (como projeto) do capitalismo. Devemos criticá-las quando passam a adotar seu ideal utilitarista e fornecer-lhe justificações epistemológicas (empirismo), teóricas (evolucionismo, organicismo e naturalismo) e filosófico-morais (noção de natureza humana eterna e ideal).
Dissemos que uma das funções fundamentais que os saberes humanos se deram foi a de acompanhar o advento da Modernidade e contribuir para a liquidação simbólica e ideológica das sequelas da sociedade tradicional. Mas será que esse programa que, de uma forma ou de outra, desempenharam em nossas sociedades modernas, já estaria mais ou menos realizado? Teria sido concluído? Se a resposta for afirmativa, claro que essas disciplinas do saber não teriam mais razão de ser nem um papel importante a desempenhar. Se o grande projeto da modernidade consistiu em desembaraçar os indivíduos dos particularismos da sociedade tradicional a fim de impor os três universais que mais a caracterizam: o Mercado, o Estado representativo e a Ciência, e como parecem inegáveis os êxitos desses universais, a conclusão a que se poderia chegar é a de que, nesse domínio, também teria terminado a aventura das ciências humano-sociais.
Estarão elas condenadas ao conformismo presente e ao desaparecimento futuro? Ou teriam ainda condições de inventar novas formas de cidadania universalisáveis ou de reconhecer as singularidades histórico-culturais nas quais os indivíduos possam buscar razões de viver e esperar? Evidentemente que não creio em suademissão ou em sua derrota. Pelo contrário, acredito que deveriam revisitar esses três universais da modernidade com o objetivo de encontrar uma resposta satisfatória para esta questão desafiadora e aparentemente insolúvel: qual a essência do elo social? Formulada de outro modo: qual a essência do que permite os homens viverem juntos? A primeira coisa a ser feita deveria ser o questionamento radical do corte, durante tanto tempo considerado constitutivo da especificidade dessas disciplinas, entre os juízos de fatos e os de valor.
Com isto, estaríamos superando a perniciosa cisão entre ciências humanas e filosofia, o filósofo deixando de ser o guardião exclusivo e patenteado do juízonormativo e o especialista das ciências humanas deixando de ser o guardião legítimo da veracidade dosfatos. As ciências humanas teriam muito a ganhar se voltassem a reatar seus vínculos mais ou menos indissolúveis com sua matriz, a filosofia política. Voltariam a ter condições de novamente poderem colocar a questão do verdadeiro, do justo e do desejável. Porque é a partir de uma filosofia política que podemos interrogar a sociedade. Como o político constitui o eixo constitutivo da relação social, compete a uma filosofia política a tarefa de esboçar o espaço de questionamento sobre as variantes institucionais da sociedade e as condições de sua unidade.
Quando falo da esterilidade política das ciências humanas, tomo o termo "político" como a relação dos homens com o conflito e a divisão social. Por isso, se quisermos saber qual a direção que precisariam tomar para que reconquistem peso, alcance, audiência, credibilidade, estima de si e razão de ser, diria que deveriam restaurar uma de suas funções mais profundas e libertárias: a de constituírem o momento reflexivo por excelência da invenção democrática. Não se trata de subordinarmos todo o movimento do conhecimento às exigências da busca e instauração do projeto democrático. Mas, consideradas em seu conjunto, as ciências humanas nunca tiveram tanta fecundidade e tanto alcance, tanta credibilidade e tanta força emancipatória, mesmo permanecendo no plano teórico-cognitivo, quanto nos momentos em que emprestaram sua voz às aspirações democráticas de todos os que procuravam viver sua liberdade e sua autonomia em sociedades pondo em questão, lúcida e explicitamente, suas próprias instituições. E uma das tarefas fundamentais que historicamente se deram, devemos destacar: a crítica da ordem estabelecida e a denúncia dos privilégios abusivos e dasdominações ilegítimas. Assim, contribuíram de modo decisivo para revelar a parte de contingência sobre a qual se baseia a invenção das regras da vida em comum.
Aliás, é nesta direção que vêm aparecendo trabalhos (nas diversas disciplinas) desembocando em proposições realmente inovadoras e fornecendo novos elementos para pensarmos de outra forma, no domínio dos saberes sobre o homem e a sociedade, o políticoe o social. Novos conceitos vêm sendo elaborados e novas teorias têm surgido tentando restabelecer as pontes entre os diferentes campos de pesquisa e ressituar o homem no cerne mesmo das reflexões. Uma nova geração de pesquisadores está surgindo, preocupada com uma busca de sentido para o elo social na Cidade moderna. Em seu livro L 'empire du sens: l'humanisation des sciences humaines (La Découverte, 1995), o historiador F. Dosse nos fornece um balanço de tudo o que vem sendo pesquisado nos vários domínios das ciências humanas, permitindo-nos identificar as pesquisas mais fecundas e promissoras e uma grande renovação do pensamento político (na Europa e nos Estados Unidos). Mostra-nos que os trabalhos produzidos nos últimos anos já nos permitem perceber a instauração de uma nova cartografia ou de um novo paradigma para essas disciplinas. Já são emblemáticos dos novos modos de elaboração dos conhecimentos, pois nos permitem abrir as portas de acesso a um campo intelectual cuja maior característica consiste num método coletivo de funcionamento.
Outro traço dessa situação em curso: a reconciliaçãoanunciada das relações entre as ciências naturais, as humanas e a filosofia. Parece promissor o papel das ciências humanas nesse processo de pacificação. Posições diversas convergem para certas linhas de força onde se destaca a atenção que vem sendo dada à parte explícita e refletida da ação e à superação da velha dicotomia entre explicar e compreender. E a filosofia é vivida, não mais como o passado ou a arqueologia dos saberes positivos sobre o homem e a sociedade, mas como seu futuro. Cada vez mais os pesquisadores vão buscar, na velha e sempre "mestra" filosofia, os conceitos de que precisam para analisar seu material empírico. Consideram importante seu papel de provedora de conceitos e de retomada reflexiva dos conteúdos científicos. Por sua vez, cada vez mais ela se abre às questões de ética, direito, política e se mostra muito mais receptiva às questões sociais e políticas.
Hoje já podemos falar de uma interfecundação entre filosofia e ciências humanas, na medida em que a circulação conceitual tende a quebrar as fronteiras disciplinares e inaugurar um tipo de aliança permitindo que cada disciplina utilize a outra para aprender a seu respeito, melhor compreender o sentido do que está fazendo e reconhecer a opção que a dinamizou. Será que as imagens que as ciências humanas nos fornecem do mundo constituem a própria objetividade do mundo, ou são representações diferentes de uma "realidade" que de algum modo nos é "dada"? Teria razão Nietzsche quando diz: "Não existem fatos, só interpretações", pois "o mundo verdadeiro se tornou finalmente fábula"? Em nosso entender, a lógica na base da qual podemos, não somente descrever e avaliar criticamente o saber das ciências humanas, mas descobrir sua "verdade" sobre o homem e o mundo social é uma lógica "hermenêutica" clara procurando a verdade como continuidade, "correspondência" ou diálogo entre textos, não como conformidade de seus enunciados a determinados estados de coisas. Só um discurso claro e inteligível se presta à análise crítica e ao debate. E os cientistas humanos têm uma dupla obrigação de clareza: pois esta constitui uma regra técnica interna de sua profissão, mas também uma regra ética de sua posição relativamente à sociedade onde a exercem e vivem.

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