Friday, 28 September 2012

Artes da cultura popular

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Artes da cultura popular

REDAÇÃO | Edição 174 - Agosto de 2010

O artigo “Artes de musicar e de improvisar na cultura popular”, de José Machado Pais, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, explora bases de sustentabilidade do valor patrimonial das chamadas culturas marginais, tomando como referência as artes de musicar e de improvisar. Aos preconceitos que associam a cultura popular à frivolidade se contrapõem evidências da sua criatividade. Para isso, o autor compara tendências e influências musicais de Portugal e do Brasil, na base de uma matriz partilhada de repentes e improvisações. Os exemplos do fado e do samba são usados para ilustrar as variações simbólicas, no decurso do tempo, das produções culturais: dos antros de marginalidade podem emergir ícones de nacionalidade.
Cadernos de Pesquisa – vol. 39 – nº 138 – São Paulo – set./dez. 2009

LEMINSKI - A diferença da crítica

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A diferença da crítica

Leminski: o poeta da diferença | Elizabeth Rocha Leite | Edusp / Fapesp, 160 páginas, R$ 35,00 (preço estimado)
MARCELO TÁPIA | Edição 198 - Agosto de 2012
Elizabeth Leite realiza, no estudo que ora se publica, uma proeza de leitura crítica da obra de um autor que a merece: o “poeta-síntese dos anos 1970”, Paulo Leminski. O trabalho evidencia o ilimitado potencial de cumplicidade da análise interpretativa com a própria criação, ao reinventar sentidos no texto tomado como objeto. Seja quem for o leitor, mesmo que conhecedor de poesia e de teorias da linguagem e leitor de Leminski, descobrirá novidades por meio das associações estabelecidas no estudo de Elizabeth. Em seu entender, a obra leminskiana se constrói como um “campo de testes para uma grande diversidade de procedimentos”: o poeta-teórico se proporia a “questionar os limites tradicionais da poesia com base em um viés extraliterário”; seu interesse central seria “compreender as relações entre vida, linguagem e pensamento”. Com base nessa constatação, a autora procurará “estabelecer correspondências entre sua escrita e alguns postulados da filosofia da linguagem”.
A principal proposição que Elizabeth faz, e que será a base para sua leitura, é a da existência de “pontos em comum entre a poética do autor e a filosofia da diferença” (ou desconstrução), a teoria pós-estruturalista da década de 1960, protagonizada, na França, por Jacques Derrida e Gilles Deleuze. No dizer de Elizabeth, seria essa uma “visada teórica que permite ressaltar aspectos inéditos da poesia de Leminski”. A óptica de análise também incluirá, como referência, o pensamento de Wittgenstein, ao qual se poderia aproximar a poética estudada (com base, essencialmente, no uso que esta faz de jogos de linguagem), “independentemente de o poeta ter a ele se referido em seus escritos”. A autora levará adiante sua própria experimentação analítica no campo fértil da produção do poeta experimentador, cuja pretensão seria vista, sempre, como “irônica e estratégica”.
O próprio Leminski poderia surpreender-se com algumas das leituras sugeridas pela autora: pontos de vista diversos propiciam descobertas nos textos, que se complementam na expansão do sentido. As explicitações ou conjecturas relativas a aspectos da construção do poema o re-produzem e suscitam novos níveis de entendimento. É proveitosa, por exemplo, a leitura do poema “apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme”, incluída no estudo sob o tópico “poesia, fala, música”. Elizabeth argumenta que, embora viesse a “defender a fala” em conhecidas afirmações suas – corroborando o que Derrida apontaria como “rebaixamento da escrita” e “fonocentrismo”, característicos do “pensamento formado com base em oposições binárias” –, Leminski “não adere a uma lógica binária da linguagem”: para ele “o negócio da poesia é ficar brincando nas fronteiras”. No poema citado, o poeta teria construído uma “fórmula encantatória, uma espécie de mantra”, para cuja compreensão evocam-se os possíveis significados e o conceito etimológico de charme(carmen, encantamento).
Em tópico dedicado à “crítica da racionalidade cartesiana”, Elizabeth expõe que, comparavelmente à proposição derridiana de se romperem as “velhas formas de pensamento”, Leminski, no poema “isso sim me assombra e deslumbra / como é que o som penetra na sombra / e a pena sai da penumbra?”, quebra regras da lógica e da gramática ao estabelecer relações etimológicas legítimas e falsas entre os “híbridos mutantes” do poema.
Mesmo quando as premissas são incertas – caso da leitura do verso “a grave advertência dos portões de bronze” como dodecassílabo – as análises de Elizabeth, com base nas referências teóricas expostas com certeiro poder de síntese, contribuem fortemente para a natural constatação de que Leminski “construiu uma poética diferenciada, que constitui um marco significativo em nossas letras”.
Marcelo Tápia é poeta e tradutor, doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP e diretor da Casa Guilherme de Almeida – Centro de Estudos de Tradução Literária.

Ossos que falam

revista fapesp
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Ossos que falam

Escavações na zona portuária do Rio de Janeiro revelam retrato pouco conhecido da escravidão
CARLOS HAAG | Edição 190 - Dezembro de 2011
© MERCADO DE ESCRAVOS NA RUA DO VALONGO, DEBRET, AQUARELA SOBRE PAPEL, C. 1816-1828. REPRODUÇÃO DO LIVRO DEBRET E O BRASIL – OBRA COMPLETA, ED. CAPIVARA, 2009
Uma das “casas de carne” do mercado do Valongo na visão algo otimista de Debret ao mostrar poucos escravos vigiados pelo comerciante
O Instituto Nacional de Criminalística estabelece uma série de procedimentos para se investigar um crime: o reconhecimento, que delimita a extensão da cena do crime e a preserva; a documentação cuidadosa e a observação científica do lugar; a procura de provas e evidências a serem coletadas; a análise científica num laboratório das provas recolhidas pelo perito. É na junção dessas áreas que se encontra a solução de, por exemplo, um assassinato. Seria possível usar os mesmos procedimentos para “desvendar” um crime cometido há vários séculos, com milhões de vítimas? Pesquisas recentes feitas em universidades brasileiras indicam que a adoção da mesma interdisciplinaridade, reunindo historiadores, arqueólogos, geneticistas (paleogenéticos) e patologistas, poderá, enfim, dar conta de um dos maiores crimes já cometidos: a escravidão.
“Para se entender a realidade da escravidão é preciso devassar arquivos, desencavar o passado e submeter as evidências materiais aos analistas nos laboratórios. É preciso superar a mera historiografia documental ou a visão economicista que só vê o escravismo do ponto de vista dos modos de produção. A escravidão deve ser materializada”, diz Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Museu Nacional, no Rio, e coordenadora do projeto de escavação do Cais do Valongo, porto por onde passaram, entre 1811 e 1831, 1 milhão de africanos. Foram as obras do Porto Maravilha, a revitalização da área portuária carioca iniciada neste ano tendo em vista as Olimpíadas de 2016, que permitiram aos arqueólogos reabrir a “cena do crime” oculta desde 1843, quando foi recoberta com 60 centímetros de pavimento e se transformou no Cais da Imperatriz, lugar de recepção para Teresa Cristina, a futura mulher de Pedro II. “Havia outros lugares, mas se optou pelo Valongo como forma de apagamento das manchas passadas da escravidão”, diz Tânia. Essas cercavam todo o cais, formando o complexo do Valongo. Casas próximas armazenavam e comercializavam os negros (veja vídeo sobre as escavações). Quem ficava doente era levado ao lazareto vizinho, onde o tratamento se reduzia a “sangrias” feitas por barbeiros negros. Os que não resistiam eram enterrados, com total descaso, em valas comuns a poucos metros do cais. Logo, o sítio é o sonho de qualquer arqueólogo, trazendo à luz, diariamente, pilhas de objetos pessoais e rituais dos chamados “pretos novos”, cativos recém-chegados da África: contas, búzios, cachimbos, brincos com a “meia-lua” islâmica, miçangas e até “pedras de assentamento de orixás”. Sacerdotes e especialistas na cultura e religião africanas ajudam a reconhecer e catalogar os achados.
“O complexo do Valongo foi criado para tirar os negros do centro do Rio, pois eles eram vistos como ameaça à saúde, ‘carregadores de doen-ças’ e um perigo à ordem pública”, explica o historiador Cláudio Honorato, autor do estudo Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro (Universidade Federal Fluminense, UFF, 2008). “O Valongo era parte do projeto ‘civilização nacional’, intensificado com a transformação do Rio em sede do Império. Mas resultou de um paradoxo: criar uma Corte ‘europeia’ com multidões de negros soltos pelas ruas. Pensou-se que a solução seria usar os escravos para criar a cidade à altura do rei. Esse movimento, porém, aumentou a demanda por mais escravos e, assim, a cidade não conseguia perder as ‘feições do atraso’. Era preciso diminuir um pouco daquela promiscuidade e, assim, tirou-se o mercado escravista da região do Paço, levando-o para um lugar distante e desabitado: o Valongo, um porto natural na Gamboa”, construído por ordem do vice-rei, o Marquês de Lavradio. Em pouco tempo, o comércio de escravos atraiu a população e o local virou um dos mais movimentados do Rio. Além do cais, o complexo do Valongo abrigava 50 “casas de carne”, onde os negros recém-chegados eram negociados. “A primeira loja de carne em que entramos continha 300 crianças. O mais velho podia ter 12 anos e o mais novo, não mais de 6. Os coitadinhos ficavam agachados num armazém. O cheiro e o calor da sala eram repugnantes. O termômetro indicava 33ºC e estávamos no inverno!”, escreveu o inglês Charles Brand em 1822.
Após 60 dias a bordo de um “tumbeiro”, os africanos, exauridos e doentes, enfrentavam a falta de alimentação, de roupas e moradias apropriadas. A combinação com os castigos os deixava propensos a contrair vírus, bacilos, bactérias e parasitas que floresciam na população densa do Rio. Mais de 4% dos escravos morriam no primeiro momento, entre o desembarque, a quarentena e a exposição no mercado. Era preciso um lugar para enterrar tantos mortos e assim criou-se nas proximidades o Cemitério dos Pretos Novos. “A mortalidade alta justificaria lugar na lógica de importação de mão de obra em números crescentes, onde mais mortes significava trazer mais escravos. Nos seus últimos seis anos, o cemitério superou uma média anual de mil enterros”, afirma o historiador Júlio César Pereira, da Fiocruz, autor de À flor da terra (Garamond, 2007). A vinda da Corte aumentou a chegada de cativos pelo porto do Rio: se em 1807 entraram menos de 10 mil, em 1828 foram 45 mil. O ano também marcou um recorde no cemitério com o enterro de mais de 2 mil pretos novos. “Sem esquife e sem a menor peça de roupa são atirados numa cova que nem tem dois pés de profundidade. Levam o morto e o atiram no buraco como a um cão morto, põem um pouco de terra em cima e se alguma parte do corpo fica descoberta, socam-no com tocos de madeiro, formando um mingau de terra, sangue e excrementos”, descreveu o viajante Carl Seidler em 1834. O lugar, porém, obedecia à lógica e às regras que engendraram o complexo: “Os escravos que não forem vendidos não sairão do Valongo nem depois de mortos”.
Estima-se que o cemitério abrigou mais de 20 mil corpos até ser fechado em 1830, por causa de reclamações dos vizinhos, temerosos dos “miasmas” exalados pelos cadáveres “à flor da terra”, bem como da suspensão do tráfico, não obstante sua continuidade ilegal. O lugar caiu no esquecimento, vindo a ser coberto pela malha urbana que se expandiu na região portuária em fins do século XIX. Só foi redescoberto em 1996 durante uma reforma numa casa, quando operários abriram sondagens para alicerce e encontraram milhares de dentes e fragmentos de ossos humanos. Como uma “cena do crime” era preciso saber quem eram as vítimas. Determinar a origem geográfica dos 5 milhões de escravos forçados a vir ao Brasil é fundamental para várias áreas do conhecimento, já que dá pistas da constituição genética e cultural dos brasileiros, muito impactados pela mestiçagem. “O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da humanidade. Entre os séculos XVI e XIX mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e levados para a América e Europa. Desses, cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia”, afirma o historiador Manolo Florentino, da UFF, autor de Em costas negras (Companhia das Letras, 1997). “Os registros dos navios negreiros não são confiáveis sobre a origem dos africanos, porque o porto de embarcação, registrado nos arquivos, nem sempre refletia a origem geográfica dos negros, por vezes capturados no interior, a quilômetros do litoral”, observa.
© INSTITUTO PRETOS NOVOS
Arcada dentária recuperada no cemitério com os cortes rituais feitos nos dentes pelos africanos
Nessa tarefa os historiadores recebem grandes contribuições dos geneticistas, como mostra a reportagem “A África nos genes do povo brasileiro” (Pesquisa FAPESP, nº 134) sobre a pesquisa do geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que comparou o padrão de alterações genéticas compartilhado por africanos e brasileiros. Com isso, Pena ajudou a revisar a versão histórica de que a maior parte dos escravos era da região centro-ocidental africana, deixando de lado a participação relevante de negros vindos da África Ocidental. “Por isso a transdisciplinaridade é fundamental para entender a escravidão. Cada enfoque é limitado para dar conta das perguntas e nenhum é suficiente. As pesquisas genéticas são muito informativas, mas partem da análise de brasileiros que são descendentes dos escravos”, diz Pena. Daí a importância do Cemitério dos Pretos Novos, que abrigava primordialmente escravos africanos recém-chegados ao Brasil.
Registros feitos pela igreja de Santa Rita, que administrava o lugar,  permitem afirmar que 95% dos corpos são de pretos novos (os outros 5% seriam de escravos “ladinos”). O sítio privilegiado deu origem à  pesquisa bioarqueológica Por uma antropologia biológica do tráfico de escravos africanos para o Brasil: análise das origens dos remanescentes esqueletais do Cemitério dos Pretos Novos, coordenada pelo bioantropólogo Ricardo Ventura Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), concluída recentemente. Foi feita a análise da composição isotópica de estrôncio de esmalte dentário presente nas amostras colhidas em 1996, com a finalidade de determinar a origem geográfica dos vestígios. “Os dentes são formados na infância e não se remodelam, o que permite descobrir onde alguém viveu seus primeiros anos. O estrôncio é como um DNA geoquímico e existe como dois isótopos, de números 86 e 87. As proporções entre eles são assinaturas geoquímicas ligadas às características das rochas de uma região”, explica Sheila de Souza, integrante do projeto. A pesquisa revelou uma grande diversidade de valores dessas proporções, o que indica (e confirma) que os escravos trazidos ao Rio vieram de múltiplas regiões da África. Confirmou-se também que se tratava de negros africanos, jovens e recém-chegados.
Para estabelecer essa delimitação foram detectadas “modificações intencionais dos dentes”, cortes feitos na arcada de motivação cultural, característicos de regiões africanas como Moçambique, o que, de certa forma, corrobora a tese de Pena. “Vimos também o polimento dos dentes, que geram ranhuras microscópicas e são características da higiene bucal de grupos africanos, que usavam gravetos nos dentes e mastigavam plantas como ‘pasta dental’. É uma prática restrita de pretos novos, pois, uma vez aqui, não havia como mantê-la. Dentes de ‘ladinos’ não têm essas marcas”, diz Sheila. A variabilidade de razões de estrôncio observada contrasta com o encontrado em outros cemitérios de escravos das Américas, sendo maior, por exemplo, do que a medida nos africanos enterrados no New York Burial Ground, cemitério de escravos americanos encontrado em Manhattan em 1991.
“Na contramão da América do Norte e de outras regiões do Brasil, o Rio recebia uma quantidade mais expressiva de cativos com uma maior diversidade étnica e genética”, afirma Santos. Pode-se identificar que a base alimentar desses indivíduos na infância não continha itens de procedência marinha. “Faz todo o sentido. A chegada da família real aumentou a demanda por escravos, culminando na fase áurea do tráfico, que acabou legitimando uma situação de fato: a Coroa não tinha mais o monopólio, o que dava livre acesso ao comércio. Logo, poucas partes do continente ficaram ilesas aos traficantes e, entre 1760 e 1830, o Rio, revelam os registros, efetivamente recebeu negros de muitas regiões africanas”, nota Florentino. “Também se confirma um padrão do tráfico, que agia da costa para o interior, em busca dos que haviam migrado do litoral.”
É possível comprovar até o caminho da ilegalidade, que não rendeu documentação. Em 1815, Portugal e Inglaterra assinaram um acordo que proibia a compra e tráfico de escravos ao norte do equador. “As pesquisas de Pena e Santos demonstram, na prática, que, apesar da proibição, os contrabandistas atuavam na área. Dizendo navegar até Angola, desviavam para a Nigéria, onde pegavam escravos, que registravam como angolanos”, diz o historiador. A análise sobre o cemitério igualmente comprovou uma faceta pouco conhecida do tráfico: a baixa faixa etária dos cativos. “Os vestígios são de negros muito jovens”, fala Santos. Cerca de 780 mil crianças foram escravizadas para o Brasil a partir de meados do século XIX, porque eram mais “maleáveis” que os adultos e suportavam melhor as travessias. Nos estertores do tráfico, em especial no Rio, um em cada três escravos era criança. “A elite escravocrata ao sentir que o fim do tráfico estava próximo passou a buscar mais mulheres, ou seja, mais úteros para gerar escravos; e crianças, que trabalhariam por mais tempo após o fim do tráfico”, explica Florentino.
Novas escavações no cemitério corroboram essa prática pela presença de crânios e arcadas de jovens. As prospecções foram retomadas pela equipe de Tânia Lima, que, temerosa das consequências da especulação imobiliária em torno do sítio, por causa do Porto Maravilha, encarregou o arqueólogo Reinaldo Tavares, do Museu Nacional, da pesquisa O Cemitério dos Pretos Novos: delimitação espacial, que até o final do ano traçará o mapa do cemitério. O seu tamanho é uma incógnita. Segundo relatos da época, teria 50 braças, algo como um campo de futebol. O arqueólogo desconfia da medida, exígua demais para abrigar tantos corpos. Abrindo valas no entorno do sítio ele busca os seus limites. “Não é preciso cavar mais do que 70 centímetros para deparar com restos de corpos”, diz. O lugar era uma vala comum onde os corpos eram jogados, após ficarem dias amontoados num canto. Quando a fossa enchia, era reaberta e os vestígios eram incinerados e destruídos para dar lugar a novos corpos. “Encontramos também lixo urbano misturado aos ossos: comida, vidros, material de construção, animais mortos, dejetos. A tese inicial era que o cemitério fora transformado em ‘lixão’ da vizinhança após seu fechamento. As escavações apontam que ele ainda funcionava quando os detritos foram jogados com os corpos.”
A genética só aumenta o peso simbólico provocado por esse desprezo. “Os escravos entravam no Brasil pelo Nordeste ou pelo Rio. A própria proximidade geográfica levou escravos da África Ocidental para o Nordeste e os da África Central para o Rio. Desses, a grande maioria era de bantos”, diz Pena. Seriam, portanto, corpos desse grupo étnico que lotam o cemitério. Do cais e dos armazéns era possível ver como os seus mortos eram tratados. “Para os bantos, o sepultamento indigno impossibilita a reunião entre o morto e seus antepassados, crença central da etnia. Pode-se imaginar que se sentiam condenados a uma ‘segunda morte’, cientes de que se apagara da memória o lugar de seu repouso final”, observa Júlio César. Os vivos, porém, não tinham grandes chances: só um terço dos pretos novos viveria como escravo mais do que 16 anos.
A causa dessas precocidades dos óbitos eram as muitas doenças com que conviviam, como comprovam as pesquisas paleogenéticas de Alena Mayo, do Laboratório de Genética Molecular de Microrganismos da Fiocruz, que rastreia, via DNA, as moléstias do Rio colonial. No cemitério de escravos da praça XV, por exemplo, verificou-se pelas ossadas que 7 em cada 10 cativos estavam infectados com protozoários ou helmintos. “Era resultado da péssima nutrição dos escravos, aliada às condições impróprias de higiene em que viviam”, diz Alena. A descoberta genética comprova vários aspectos do estudo clássico da historiadora americana Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2000). Como a afirmação de que “as condições de vida dos escravos e as doenças matavam mais do que a violência física do cativeiro”.
A pesquisadora estudou o Cemitério dos Pretos Novos, onde encontrou traços de tuberculose, um total de 25% de amostras positivas. “As condições desumanas em que eram transportados faziam os escravos suscetíveis a contrair, já na chegada, a doen-ça, então difundida pela cidade.” Isso também remete à pesquisa documental da americana: “A mortalidade dos africanos recém-chegados ao Valongo não se relacionava apenas às condições terríveis dos ‘tumbeiros’. Mesmo sobrevivendo à travessia, no cais eles enfrentavam um desafio maior: adaptar-se às novas, e péssimas, condições de vida para não sucumbir, de cara, às doenças do Rio”.
Uma escavação em particular trouxe revelações importantes. “Ossadas encontradas na igreja Nossa Senhora do Carmo, no Rio, de sepulturas do século XVII, destinadas a pessoas de ascendência europeia, apesar de muito degradadas, deram positivo para tuberculose em 7 das 10 costelas analisadas”, afirma Alena. No local foram também encontradas ossadas de índios e negros. Na comparação dos vestígios, a pesquisadora concluiu não só que a tuberculose já grassava na cidade no século XVII, mas que, na medida em que apenas os europeus deram positivo para tuberculose, foram os colonizadores os responsáveis pela introdução da doença no Rio. “Em estudos que fiz sobre material pré-colombiano, encontrei helmintíases intestinais e registros da doença de Chagas. Concluímos que eram doenças que não vieram com os europeus. No Brasil colonial, ao contrário, evidencia-se o papel de europeus na introdução e disseminação de doenças epidêmicas como a tuberculose.” Logo, os temores das “doenças dos negros” que levaram à criação, exatos 200 anos atrás, do Cais do Valongo, seriam infundados. Não há crime perfeito quando os conhecimentos se reúnem.

Uma narrativa que flui como um rio

revista fapesp
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Uma narrativa que flui como um rio

Jean-Claude Bernardet e Cao Hamburger destrincham o que torna Xingu inovador no cinema brasileiro
MARIA GUIMARÃES | Edição 196 - Junho de 2012
© BEATRIZ LEFèVRE
Os irmãos Villas-Bôas fazem o primeiro contato com os índios
O Xingu é terra de rios. Eles são as estradas que cortam a imensidão amazônica. No filme de Cao Hamburger, o rio é a distância que os irmãos Villas-Bôas precisam atravessar para estabelecer o primeiro contato amistoso com uma tribo indígena. Não é à toa que a água corre pelas letras nos créditos de Xingu, mas para o crítico Jean-Claude Bernardet a fluidez do filme vai muito além dos cursos d’água. Segundo ele, ela vem de uma harmonia entre os vários níveis da confecção do filme: roteiro, decupagem, filmagem e montagem. “O movimento constante da câmera dá uma leveza à narrativa que raramente se vê no cinema brasileiro”, comenta, incluindo nessa percepção o contraste com trabalhos anteriores de Hamburger, como O ano em que meus pais saíram de férias. “Xingu traz uma contribuição que merece ser tema de reflexão entre os cineastas.”
A temática do filme é forte, descrevendo a busca pelo governo brasileiro por ocupar o oeste e o norte do país. Uma terra remota que, logo fica claro, já estava muito bem ocupada. Na definição de Chris Riera, que colaborou com a equipe de roteiristas,Xingu mostra a invasão da Amazônia pela mancha branca. Cabe aos irmãos Villas-Bôas assegurar que essa invasão seja feita da forma mais pacífica possível. Bernardet lamenta que a crítica feita sobre o filme tem se limitado a essa história. Para ele não basta: “Não há significado sem significante”. É justamente a construção desse significante que interessa a esse pesquisador da linguagem cinematográfica e que o levou a procurar Cao Hamburger para uma conversa.
“Eu queria uma câmera que pudesse chegar mais perto dos atores e que fosse mais estável”, explica o diretor. Por isso escolheu um equipamento diferente da câmera apoiada no ombro que usou em outros trabalhos, que gera certo sacolejo na imagem e dá um toque mais de documentário. Desta vez ele optou por uma steadicam, que fica presa ao operador por uma estrutura como um colete com um sistema estabilizador para a câmera. É isso que dá a impressão de que a câmera flutua pela cena, observando os acontecimentos como se a ação não estivesse se desenrolando justamente para ela. Um olhar muito diferente, talvez até consequência, em parte, de trabalhar num ambiente tão diferente do costumeiro. “Nunca tinha filmado sem porta, janela, cadeira, carro, copo…”, conta Hamburger, que em busca de entender a experiência da falta desses pontos de referência urbanos passou férias em lugares ermos e viu todos os filmes com cenas externas que conseguiu encontrar.
Também contribui para a sensação de fluidez a forma como o diretor constrói as cenas. A partir do roteiro, e da percepção do filme que só existe impregnado em seu pensamento, ele faz ensaios logo antes da filmagem, em que decide junto com a equipe como será o posicionamento de cada um. Essa dinâmica cria um trabalho coletivo, em que atores, operador de câmera e todos os envolvidos participam da criação e contribuem com suas percepções, ideias e emoções.
© BEATRIZ LEFèVRE
Cláudio e Leonardo se alistam para a expedição
Mais importante, as cenas são atuadas por inteiro – mesmo as partes que não são filmadas. Um exemplo importante dessa filmagem que não se baseia em planos está logo no começo do filme, em que Cláudio e Leonardo Villas-Bôas se alistam para participar da expedição de desbravamento das zonas remotas do Brasil. É uma longa fila, em que cada um anuncia seu nome, nível de instrução e qualificação a um fiscal que anota, sentado atrás de uma mesa. “O ator que faz o fiscal só aparece numa tomada muito curta, quando encara Cláudio, mas ele fez a cena completa”, conta o diretor. A cena continua a acontecer, como indicam os nomes enunciados, enquanto os irmãos se afastam festejando a conquista, acompanhados pela câmera – um recurso que interliga os momentos e os espaços da ação, conduzindo o espectador como se navegasse o Xingu numa canoa. “Mesmo o que não é filmado faz parte da cena, e muitas vezes algo fora do campo de filmagem fica mais legal do que o que está dentro”, reflete Hamburger, surpreso com a observação que ninguém tinha feito antes de Bernardet sobre as consequências para a narrativa dessa forma de filmar.
Chama a atenção do crítico de cinema o fato de a fluência se manter mesmo com grandes elipses, em que nem tudo é explicado. Muito diferente de uma narrativa mais conservadora, em que para explicar que um personagem foi de um lugar a outro é preciso mostrá-lo chamando um táxi, entrando nele, fechando a porta e chegando ao destino. “Gosto de deixar espaço para o espectador pensar, sentir e criar suas próprias conclusões ou passagens”, diz Hamburger. Além disso, o filme representava um desafio especial: precisava percorrer uma extensão muito ampla de tempo e de espaço, e por isso a narrativa necessariamente precisaria dar saltos. “Optei por deixar pequenas lacunas em vários momentos, para que o espectador entrasse no ritmo de elipses que possibilitaria os grandes saltos”, explica. Para Bernardet a construção é tão benfeita que essas elipses não geram um desinteresse ou uma desorientação por parte de quem vê o filme. Elas não são lacunas. “Essa narrativa por alusão a cenas é uma contribuição ao cinema brasileiro”, afirma.
Uma sutil narração em off e a trilha sonora que acompanha a narrativa e reforça as emoções são outros elementos, pensados e adicionados ao retomar o roteiro durante a montagem, que mantêm a fluência e dão informações ao espectador de maneira econômica e leve.
Apesar de tudo isso, Xingu não foi um grande sucesso de bilheteria. Bernardet se pergunta se justamente a sutileza e a elegância da narrativa não satisfazem uma parcela do público. O diretor admite que talvez um filme de grande público precisasse ser mais explícito. Mas ele acha, no entanto, que muitos outros empecilhos no caminho entre o espectador e o cinema tiveram um papel mais decisivo. “O brasileiro realmente detesta índio”, comenta. Para tentar desfazer essa barreira, ele não mostra os índios como vítimas e não se detém em lamúrias, mesmo nos momentos em que o encontro com os brancos é destrutivo. Para testar a influência da linguagem narrativa no sucesso de público, seria preciso fazer um filme completamente diferente. 
E aí seria outro filme.

Foto de índio

pesquisa fapesp
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Foto de índio

REDAÇÃO | Edição 185 - Julho de 2011
© CLÁUDIA ANDUJAR
O artigo “O índio na fotografia brasileira: incursões sobre a imagem e o meio”, de Fernando de Tacca, da Universidade Estadual de Campinas, pretende explorar contradições e confluências entre o meio (fotográfico) e a imagem do índio brasileiro sob uma perspectiva histórica da fotografia brasileira. A imagem do índio nessa fotografia manifesta-se em três momentos distintos, escreveu o autor. Na fase inicial, no lugar do exótico, o contraditório ao sentido moderno da fotografia durante o Segundo Império. Na segunda fase, as fronteiras entre o etnográfico e o nacional se diluem, nos primeiros 50 anos do século XX, a exemplo da Comissão Rondon/Seção de Estudos do SPI e do fotojornalismo moderno no Brasil da revista O Cruzeiro. No terceiro momento, as manifestações de uma etnopoética das fotografias de Claudia Andujar (na foto, Sonhos, 1974-2003) fazem meio e imagem se fundirem como lugar etnográfico na arte contemporânea.
História, Ciências, Saúde-Manguinhos – vol. 18 – nº 1 – Rio de Janeiro – mar. 2011

Thursday, 27 September 2012

Corujas


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Para os apreciadores de Corujas :)

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Coruja é simbolicamente associada com a clarividência, projeção astral, magia negra e branca. Ela é a águia da noite. A noite é amiga da coruja. Ela emite seu som na escuridão e identifica qualquer som estranho. Esta qualidade lhe dá a vantagem quando procura comida. Ela é a caçadora noturna. Nós não ouvimos quando a coruja voa, mas sua caça sabe definitivamente quando ela ataca, pelo seu bico e unhas fortes e afiadas. A Coruja é freqüentemente a medicina dos bruxos e bruxas. Em algumas culturas a coruja é o símbolo da sabedoria, porque ela vê o que os outros não podem. Atena, a deusa da sabedoria tem como companhia no ombro uma coruja, a qual revela ‘a ela todos os segredos ocultos. A coruja conecta com todas as partes do ser, e permite vencer o temor e aprender a qualidade da consciência do existir e do fluir em todos os níveis.A coruja trás como significado "o ver a totalidade", ou seja, ela, através da sabedoria, nos dá a possibilidade do ver as coisas na sua totalidade, o consciente e o inconsciente. Esse animal tem a capacidade de ver na escuridão, o que significa também ampliação dos limites da percepção. A coruja conecta com todas as partes do ser, e permite vencer o temor e aprender a qualidade da consciência do existir e do fluir em todos os níveis. Os poderes da coruja são a clarividência, a projeção astral e a magia. Na essência, a coruja vê o que os outros não vêem, e pode ter mais percepções a respeito de outras pessoas do que de si mesma. Mas mesmo assim, o poder desse animal pode ser invocado para que a pessoa desperte a capacidade de olhar para si mesma, em busca de uma visão mais íntegra a respeito de si, ou de aspectos que ainda permanecem obscuros e precisam ser vistos.