Wednesday 23 January 2019

Usos e desusos do conceito de gênero





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Usos e desusos do conceito de gênero

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Usos e desusos do conceito de gênero
Simone de Beauvoir autografa livros em sua passagem pelo Brasil, em 1960 (Foto: Arquivo Nacional)

A história dos conceitos é formada a partir de debates, exigências políticas, disputas e discussões. O conceito de gênero tem sido, desde a segunda metade do século 20, objeto dessas idas e vindas, fluxos e refluxos, em campos como a Antropologia, as Ciências Sociais e a Filosofia. O gênero como categoria útil de análise, como no título da norte-americana Joan Scott, foi feito e desfeito a partir de questionamentos sobre até que ponto tal conceito foi e ainda é um importante operador para a crítica de situações sociais nas quais as mulheres (mas não apenas os corpos físicos fêmeos) ainda são subjugadas. Na história das teorias sociais sobre diferenças sexuais, a distinção sexo/gênero possibilitou interrogar a ideia de diferença sexual como princípio universal de diferença e de classificação.
A partir da dessemelhança sexo/gênero, delineiam-se os argumentos para pensar a diferença sexual como produto da cultura e não como essência da modelação dos papéis sexuais. Nesta abordagem, indivíduos nascidos e classificados como homens e mulheres seriam socializados para agir, pensar e sentir segundo roteiros culturalmente construídos em posições vinculadas ao sexo anátomo-biológico. São perspectivas que trabalham com base na construção cultural dos papéis de gênero e tendem a conceber as relações entre os sexos a partir de pressupostos de costume e estabilidade social. Em geral, tendem também a descartar a possibilidade de mudança nesse arranjo social.
A década de 1970 foi marcada pela progressiva incorporação do conceito de gênero nas Ciências Sociais e na História. A distinção sexo/gênero foi se constituindo como ferramenta conceitual e política, e representou um argumento decisivo nas lutas em torno dos direitos das mulheres. Nesse processo de diferenciação, o primeiro termo – sexo – remeteria à natureza e, de maneira mais específica, à biologia, e o segundo termo – gênero – se refere às construções culturais das características consideradas femininas e masculinas. Tais construções são percebidas como aspectos que mantêm relação com a biologia, mas dela não derivam condutas específicas. A enorme variação dos humanos em diferentes contextos atesta essa não determinação. Ao iluminar o caráter arbitrário das noções de masculinidade e feminilidade, a distinção entre sexo e gênero permitiu que pesquisadoras e militantes feministas salientassem a natureza eminentemente social (e política) da subordinação das mulheres e apontassem, portanto, para sua possível alteração.
O “sistema de sexo e gênero”, criado por Gayle Rubin em 1975, propõe que a assimetria entre homens e mulheres presente em múltiplas sociedades deveria ser debitada às formas de organização social do sexo e da reprodução. Interpelando a teoria sobre a circulação de mulheres formulada por Lévi-Strauss, Rubin indica que a desigualdade de distribuição de poder está na raiz da apropriação pelos homens da capacidade reprodutiva do sexo feminino. Essas ideias são centrais no desenvolvimento da Antropologia dedicada ao gênero nas décadas de 1970 e 1980. No marco de abordagens que consideram a subordinação feminina um aspecto universal da organização social, o conceito de gênero foi amplamente utilizado como instrumento de crítica à construção social das diferenças entre homens e mulheres, de forma a compreender as maneiras como essas convenções se relacionavam com as práticas sociais, situando as mulheres em posições de desigualdade.
Na trajetória do conceito de gênero como questionador da naturalização das relações sociais e da diferença sexual, desde que foi publicado, em 1986, no volume 5 da edição 91 da American Historical Review, “Gênero – uma categoria útil de análise histórica”, da historiadora e teórica feminista Joan Scott, tornou-se a grande referência no Brasil para o uso do termo no debate sobre hierarquia ou assimetria de gênero. O texto de Scott muito contribuiu para que pesquisadores da área de ciências humanas reconhecessem o valor das relações sociais estabelecidas com base nas diferenças percebidas entre homens e mulheres. As culturas criam padrões associados aos corpos que se distinguem por seu aparato genital e pela capacidade de gerar outros seres (isto é, pela reprodução humana). Diferença sexual, sexualidade (heterossexual) e gênero passam a ser dimensões que se cruzam, mas uma não decorre da outra.
Simone de Beauvoir em Paris, 1946 (DeniseBellon_divulgacao)
Simone de Beauvoir em Paris, 1946 (Foto: Denise Bellon/Divulgação)
Scott argumenta que o conceito é uma ferramenta de análise acerca dos diversos modos de interação social e humana que nos permite interrogar como a diferença sexual funciona nas relações sociais. Na medida em que gênero se integra na metodologia das Ciências Sociais, conforme tal categoria torna-se central para rejeitar explicações biológicas para as relações sociais, e, sobretudo, quando gênero aparece como uma classificação social que se impõe sobre um corpo sexuado, a categoria oferece novas perspectivas sobre as relações de poder e permite pensar igualdade política e social com o objetivo de incluir, além da dimensão de gênero, as questões de classe e raça que até ali subjaziam em análises cujo ponto de partida era a neutralidade do humano. Outras dimensões, como a (homos)sexualidade, também aparecem como problema teórico no âmbito de um novo registro epistemológico que incorpora o gênero como categoria estratégica de análise.
Na Filosofia, coube à Simone de Beauvoir, em 1949, com a publicação de O segundo sexo, marcar o início da reflexão sobre a subalternidade feminina, que anos depois foi encampado pelos chamados “estudos de gênero”. Estudos de gênero que começaram a investigar cantos obscuros do conhecimento em relação ao universo dito feminino, mas que nos anos 1990 vão orientar toda a investigação social sobre masculinidades, sejam elas hegemônicas ou subalternas. Beauvoir parte da premissa de que a hierarquia entre masculino e feminino está dada pela mesma oposição cultura/natureza, estando o masculino e a cultura na parte privilegiada dessa hierarquia, e o feminino e a natureza na parte inferior. A pensadora francesa se opõe diretamente ao pensamento de Rousseau, cujo projeto era educar as mulheres em direção a uma passividade tida como “natural” ou biológica, e questiona essa natureza quando diz que esse destino lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade.
A partir da publicação de O segundo sexo, esse suposto destino biológico das mulheres passa a ser questionado e forma-se a ideia de que o “sexo” é biológico e o gênero é socialmente construído. Embora não seja a iniciadora do movimento feminista – em vários momentos históricos anteriores, ocorreram iniciativas políticas de mulheres que buscavam alterar a posição subalterna na sociedade, como a luta das sufragistas –, o fato é que a obra de Beauvoir é um marco na produção teórica feminista do século 20, que influenciou as Ciências Sociais – o já mencionado trabalho de Rubin é tributário das reflexões de Beauvoir – e abriu debates importantes.
Suas proposições sobre a mulher como categoria universal vieram a ser interrogadas pela teoria feminista e pelo pensamento da filósofa norte-americana Judith Butler, que segue a trilha do pensador francês para desconstruir o corpo “natural” e afirmá-lo tão cultural quanto o gênero. Butler não está sozinha nessa perspectiva: o também historiador e conterrâneo Thomas Laqueur já mencionava a “invenção do sexo”. Se em Scott a pergunta era “como o gênero funciona nas relações sociais?”, em Butler a pergunta se desloca para “como o gênero funciona na definição ontológica de sujeito?”. Mais do que um problema epistemológico, uma das questões que esse deslocamento põe em xeque é o desafio de pensar as relações sociais de gênero não mais a partir da distinção sexo/gênero, mas de um trinômio sexo/gênero/desejo no qual a heterossexualidade compulsória possa ser interrogada.
Judith Butler (Foto Thomas Karlsson)
Judith Butler: debate com Beauvoir sobre o par sexo/gênero (Foto: Thomas Karlsson/Divulgação)
Rubin, cuja influência sobre o trabalho de Butler é notória, percebe que a elaboração acerca da sexualidade diante do gênero provida pelo sistema sexo/gênero, conceito por ela proposto em 1975, não dá conta da especificidade da sexualidade. Segundo a autora, há uma hierarquia de valores sexuais, na qual a sexualidade considerada “boa”, “normal” e “natural” seria idealmente heterossexual, marital, monogâmica, reprodutiva e não comercial. Deve ser concebida por um casal, relacional, ocorrer com pessoas da mesma geração e dentro de casa. Não deve envolver pornografia, objetos de fetiche, brinquedos sexuais ou papéis que não o masculino e o feminino. Qualquer sexo que viole este modelo é considerado “mau”, “não natural” e “anormal”.
Partindo das contribuições de Rubin e de uma crítica à influência do existencialismo em Beauvoir, Butler estabelece um debate sobre a distinção sexo/gênero, para ela ainda inscrita na tradição cartesiana que orientou o pensamento ocidental sobre o sujeito. Butler vê na divisão sexo/gênero a ideia de que pensar o sexo como natural e o gênero como socialmente construído mantém um modelo binário. Trata-se, então, de discutir como e se a noção de gênero decorre do sexo, decorrência na qual ela aponta uma forma de afirmação de uma “unidade metafísica”. Para Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito. Seu gesto político-histórico foi afirmar que não há a verdade do gênero. Ao indicar que não há essência ou identidade nas características corporais, a autora propõe três dimensões contingentes da corporeidade, escapando, assim, do binarismo de gênero: sexo anatômico, aquele dado pela biologia; identidade de gênero, entendida como uma construção social; e performance de gênero, sendo o elemento do performativo aquilo que perturba a associação sexo/gênero e explicita sua arbitrariedade.
A partir do questionamento da verdade do gênero, Butler sugere que os debates teóricos que dizem respeito a estabelecer uma prioridade entre os termos gênero, diferença sexual e sexualidade estão atravessados por um outro problema: a permanente dificuldade de determinar onde começa e termina o biológico, o psíquico, o discursivo e o social. Butler entende que a diferença sexual é o lugar no qual se coloca a questão da relação entre o biológico e o cultural, quando afirma que “gênero é a parte da diferença sexual que aparece como social”, o que se articula com os debates que surgirão na emergência do debate sobre a desconstrução do conceito de gênero.
Em 1945; na Filosofia, coube a Beauvoir iniciar reflexão sobre subalternidade feminina (Albert Harlingue)
Tendo emergido nos Estados Unidos no final da década de 1980, a teoria queer tem com os estudos de gênero uma relação de afinidade e de tensão. Afinidade por compartilhar da percepção da sexualidade como construção social, ponto no qual o conceito de gênero tanto contribui para afirmar. Já a tensão decorre da percepção de que os estudos de gênero, inadvertidamente, reiteravam a norma heterossexual. Esse é um dos argumentos de Butler em sua crítica a Beauvoir. A filósofa norte-americana, de notório compromisso com o pensamento pós-estruturalista francês, denuncia que os tradicionais pares opositivos são principalmente hierárquicos e reguladores de diferenças, tema caríssimo à teoria queer bem expresso no exemplo de Miskolci, “a heterossexualidade precisa da homossexualidade para sua própria definição”.
Os estudos queer articulam-se com o pós-estruturalismo também na medida em que questionam a ontologia de um sujeito – masculino, heterossexual, europeu, branco, senhor e normal – em prol da percepção deste sujeito como uma categoria de poder e opressão em relação ao modelo heterossexual, mas não apenas. Se as tensões são de fácil identificação, as afinidades com os estudos de gênero ainda mais. Nos dois campos, a sexualidade é percebida como construção social, sendo os estudos de gênero mais voltados para a diferença sexual e suas formas de opressão na sociedade, e a teoria queer mais voltada para a heteronormatividade e também suas formas de opressão na sociedade.
Este breve percurso histórico aponta para o fazer e o desfazer do conceito de gênero, seus usos em campos como as Ciências Sociais, a Antropologia, a Filosofia e a teoria queer, e, sobretudo, sua mobilização política no debate sobre diferenças sociais baseadas na sexualidade e na corporalidade. Gênero, para além de uma dimensão da pessoa, aspecto crucial na alta modernidade, constitui-se em um eixo de classificação que organiza as relações sociais. Destaca-se a importância das possibilidades de pensar o corpo como uma superfície regulada, com desdobramentos na obra de Butler e em suas reflexões sobre gênero e identidade. Nesse sentido, o conceito de gênero pode mobilizar um debate político necessário e atual sobre como diferenças sexuais se materializam em corpos biológicos, porque o processo de discussão – ou de desconstrução – da heterossexualidade normativa passa pela crítica às identidades de gênero e suas consequências nas relações sociais. Uma das consequências dessa reflexão é pensar na impossibilidade de separação e de contraste de campos pretensamente opostos, como natureza/cultura e masculino/feminino, para ficar com os mais emblemáticos no que diz respeito ao debate sobre os estudos de gênero e os estudos queer. Sendo assim, gostaria de concluir indicando a impossibilidade de pensar como, em determinados contextos, a tensão entre preservar e superar o conceito de gênero parece a forma mais estratégica de continuar enfrentando as discriminações sexuais e sociais. TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA CULT 219

MARIA LUIZA HELBORN é doutora em Antropologia Social pela UFRJ, professora associada do Instituto de Medicina Social da UERJ e autora de Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário (Garamond)

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