https://diplomatique.org.br/megamineracao-nao-sao-acidentes/
Em menos de um mês assistimos a dois graves acontecimentos que materializam os impactos negativos da megamineração – um na Argentina, outro no Brasil. Os desastres não são acidentes. A voracidade das transnacionais pressiona governos por novas desregulamentações que garantam seu acesso aos recursos naturais e flexibili
Ana Maria Fernández
A ruptura da barragem Fundão e o grave dano da barragem de Santarém, na mina Samarco Mineração S.A., no dia 5 de novembro de 2015, em Mariana, Minas Gerais, produziu uma corrente de lodo com resíduos da exploração mineral que destruiu o povoado de Bento Rodrigues, provocando um número de vítimas mortais ainda não conhecido com precisão e contaminando a Bacia do Rio Doce, que abastece de água quinze importantes cidades. A Samarco explora minério de ferro por meio de uma joint venture integrada pelas empresas Vale (Brasil) e BHP Billiton (anglo-australiana). Essas empresas, as duas maiores mineradoras do mundo, descreveram o evento protagonizado pela Samarco como um “lamentável e triste acidente”.1
Por sua vez, na Argentina, a mina de ouro e prata Veladero está a mais de 4,2 mil metros do nível do mar, sobre a cordilheira dos Andes, no departamento de Iglesias, acima da localidade de Jáchal, província de San Juan. Ela pertence à empresa Barrick Gold, com sede no Canadá, companhia que está entre as dez maiores mineradoras do mundo, a primeira em extração de ouro. No dia 11 de outubro de 2015, ela deixou vazar 1 milhão de litros de água com cianeto, que atingiram o leito do Rio Potrerillos. A contaminação da água para consumo afetou o abastecimento de Jáchal e comprometeu gravemente a produção agrícola rio abaixo.
Em ambos os casos, caracterizá-los como acidente é uma forma a mais de naturalizar uma lógica que invisibiliza ou minimiza a importância dos impactos sociais e ecológicos da megamineração. Esses projetos geraram múltiplas e crescentes resistências. As estratégias empresariais incluem desde a coerção direta em alguns casos até campanhas de disseminação de fundos em instituições e comunidades, financiamento de campanhas eleitorais e pressão para que o Estado aprofunde e amplie as medidas de fomento e defesa da atividade2 já promovidas pela estratégia mineral do Banco Mundial3 nos anos 1990. Um conjunto de normas legais, reformas constitucionais que outorgam a decisão sobre os recursos naturais a estados ou províncias e a criação de competências de controle ambiental dependentes das próprias áreas que têm como incumbência promover a mineração são parte das razões que tornaram possíveis projetos como os de Veladero e da Samarco.
A própria existência desses projetos é expressão de uma correlação de forças em que resistências foram ignoradas e sub-representadas politicamente com vistas a favorecer um modelo de “desenvolvimento” mineral que subordina as demais prioridades àquela de obter divisas. Desde as reformas estruturais operadas nos marcos do grande endividamento e dos condicionantes externos gerados pelo neoliberalismo, com sua aposta dogmática no capital estrangeiro, até as urgências dos governos progressistas ante a recorrente restrição externa, a obtenção de divisas é o principal fator interno de aceitação da megamineração.
Entre os motivos externos, encontra-se a demanda real por minerais, muitos deles estratégicos para os países compradores.4 Esse é claramente o caso da exploração de ferro para abastecer a demanda da China. Ademais, a hegemonia da valorização financeira, o comportamento especulativo dos capitais e a visão dominante, que incentiva a busca de lucros extraordinários, alimentam os investimentos na megamineração.
Graças às condições extremas que garantem alta rentabilidade para os projetos construídos na América Latina, as empresas conseguem se capitalizar nas principais Bolsas de Valores. Nesse sentido, o negócio da megamineração é uma atividade não apenas de extração, mas também de valorização das empresas de mineração e seus derivados financeiros.
Considerando os elevados custos dos processos de fechamento das minas e os eventuais ônus de enfrentar a responsabilidade para com eventos como os produzidos por Veladero e Samarco, é relevante levar em conta que parte substancial do negócio da mineração provém da externalização desses danos colaterais, para os quais é funcional o quadro jurídico flexível criado para atrair investimentos. Esse negócio também recorre a formas societárias e mecanismos que permitem obter lucro durante parte do ciclo de vida do projeto, quebrar em seguida a empresa e/ou transferir ao Estado e à sociedade uma parte substancial dos custos.
Nesse sentido, nos dois casos observa-se a estratégia das empresas de minimizar suas próprias responsabilidades econômicas e tentar transferi-las para os trabalhadores, sugerindo sua suposta negligência; para a natureza, argumentando que um terremoto poderia ter provocado a quebra da barragem da Samarco e que o intenso frio no congelamento de uma válvula teria causado o evento da Veladero; ou então para o Estado, alegando o atraso em um procedimento de controle ou avaliação. Em aparente paradoxo, a flexibilidade ambiental definida como uma condição para o investimento é o argumento apresentado para tentar não tirar as consequências da falta de cuidado para com a população e o meio ambiente.
De forma análoga, a justificativa para a megamineração em nome da criação de empregos não é apenas questionável à luz dos resultados. Os vazamentos de cianeto ou as rupturas de barragens põem em discussão não só a qualidade desses empregos em relação ao risco, mas também as consequências para as ocupações em todos os demais setores afetados pelos impactos negativos de tais eventos.
Em suma, a megamineração concentra localmente os impactos negativos e desloca para o exterior grande parte dos benefícios. Por isso, ela é o oposto de uma atividade que contribui para o desenvolvimento e menos ainda para o “bem viver”.5 Não é a estratégia de marketing de “mineração responsável” ou da “responsabilidade social corporativa” que permitirá evitar ou reduzir os danos irreversíveis e as externalidades da megamineração. Além disso, a construção de um imaginário que vê no extrativismo exportador um modelo sem alternativa a não ser discutir seus modos de fazer acaba obscurecendo outras possibilidades de produção. O mesmo ocorre quando se alegam “razões de Estado” para tentar justificar o sacrifício de alguns ecossistemas e modos de vida a fim de obter divisas em busca de equilíbrios externos. Em qualquer caso, expressa-se uma hierarquia de valores que os movimentos de resistência tornam visível e colocam em questão.
Qual é o valor da água e da vida perdidas em Bento Rodrigues e em todos os ecossistemas impactados? É essa incomensurabilidade que funda a permanência e o aprofundamento dos conflitos com a megamineração. Nem reduzir a probabilidade de ocorrência, nem mitigar os danos, nem indenizar ou compensar podem resolver os conflitos. Não se trata de um tipo de capital para ser convertido em outro, porque para grande parte da sociedade a vida não é capital.
É por isso que não se pode pensar o conteúdo do conflito de modo equivalente a uma disputa em torno de dinheiro. Mesmo supondo que existisse a disponibilidade de ferramentas mais sofisticadas de cálculo e as mais aprimoradas formas de “governança”, elas não poderiam resolver os conflitos gerados pela megamineração. Porque, antes de tudo, trata-se de uma questão moral e política: como usamos os ecossistemas? Quem decide sobre sua utilização? No entanto, a megamineração resulta da imposição de uma forma de uso que atende aos interesses de corporações internacionais sobre os demais atores e usos.
Nem os Andes podem ser reduzidos ao ouro que se explora em Veladero, na Argentina, nem o planalto de Minas Gerais se reduz ao ferro a ser extraído pela Samarco. Se esses projetos existem hoje é porque se impôs uma maneira de olhar para os ecossistemas envolvidos como se eles fossem territórios antes improdutivos e quase “desabitados”, aos quais seria necessário levar investimentos para “desenvolvê-los” e torná-los “competitivos”. Trata-se, porém, de uma construção social cuidadosamente naturalizada, com muitas dimensões implícitas que são subtraídas do debate público. Não por acaso a busca da “licença social para operar” é uma tarefa empreendida somente quando a exploração é um fato consumado; no melhor dos casos, trata-se de formas de gestão dos conflitos gerados pela pressão da atividade da mineração sobre os grupos sociais cujo uso preexistia ao uso imposto. O consentimento prévio e informado das comunidades ainda não saiu do papel. Enquanto isso, as questões-chave continuam pendentes: que mineração é necessária para que projeto de sociedade? Quais seriam os projetos alternativos de produção com capacidade de gerar mais e melhores postos de trabalho com qualidade e estabilidade, e com o protagonismo das populações locais nas áreas disputadas pela mineração? Quais seriam os resultados de projetos produtivos alternativos se estes tivessem a mesma promoção que tem hoje o setor da mineração?
Resolver a restrição externa apostando em ganhar divisas ao atrair investimentos em mineração para a exportação é muito caro não só porque isso primariza nossas economias, mas também porque se entrega um valor incomensurável em troca de algumas divisas que continuarão a ser insuficientes, reproduzindo-se o círculo de entrega da natureza em troca de capital. A restrição externa deve ser tratada de forma diferente. Um repertório tradicional de ações deverá incluir ainda a substituição de importações, moderando a importação de certos bens de consumo de luxo e o aumento do valor agregado das exportações. Essas políticas exigem apoio político da maioria para superar a inércia rentista das elites e dos grupos concentrados de poder. Além disso, considerando que tanto o Brasil quanto a Argentina exportaram no interior da América Latina mais produtos industriais que para o resto do mundo, o aprofundamento do Sucre,6 ou sua evolução para uma moeda de troca latino-americana, e a adoção de políticas ativas de complementaridade ajudariam a criar postos de trabalho reais e reduzir a restrição externa. Somos obrigados a explorar novas formas de equilíbrio externo e inovar. Isso porque os impactos da megamineração não são acidentes. A voracidade das transnacionais pressiona os governos para novas desregulamentações que garantam seu acesso aos recursos naturais e aumentem a flexibilidade das normas ambientais e trabalhistas.7 E elas estão avançando, dos Andes até a Amazônia.
* Ana Maria Fernández é professora da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires e pós-doutoranda no Ippur/UFRJ.
1 “Vale diz que é ‘mera acionista’ da Samarco”, Brasil 247, 11 nov. 2015.
2 Clarissa Reis Oliveira, Quem é quem nas discussões do novo Código da Mineração, Ibase, Rio de Janeiro, 2014.
3 Banco Mundial, “A Mining Strategy for Latin America and the Caribbean” [Estratégia de mineração para América Latina e Caribe], World Bank Technical Paper n.345, Washington, 1996.
4 Monica Bruckmann, Recursos naturales y la geopolítica de la integración sudamericana, Red Unesco/Universidad de las Naciones Unidas sobre Economía Global y Desarrollo Sustentable, 2011.
5 Eugenio Zaffaroni, La Pachamama y los humanos, Colihue, Buenos Aires, 2011.
6 Carlos Zúñiga Romero (comp.), “Tratado constitutivo del sistema unificado de compensación regional de pagos (SUCRE)”, Revista de Derecho Económico, Tomo 3, Universidad Católica de Santiago de Guayaquil, 2011.
7 A discussão atual do Código da Mineração no Brasil é reveladora desses intentos. Ver Juliana Malerba, “Mais além da mineração: as pretensões do novo código mineral quanto ao acesso à água e à terra”, Brasil em 5, 12 out. 2015.
AINDA AS VEIAS ABERTAS
Megamineração: não são acidentes
por Ana Maria Fernández
dezembro 7, 2015
Em menos de um mês assistimos a dois graves acontecimentos que materializam os impactos negativos da megamineração – um na Argentina, outro no Brasil. Os desastres não são acidentes. A voracidade das transnacionais pressiona governos por novas desregulamentações que garantam seu acesso aos recursos naturais e flexibili
Ana Maria Fernández
por Antônio Cruz/Agência Brasil
A ruptura da barragem Fundão e o grave dano da barragem de Santarém, na mina Samarco Mineração S.A., no dia 5 de novembro de 2015, em Mariana, Minas Gerais, produziu uma corrente de lodo com resíduos da exploração mineral que destruiu o povoado de Bento Rodrigues, provocando um número de vítimas mortais ainda não conhecido com precisão e contaminando a Bacia do Rio Doce, que abastece de água quinze importantes cidades. A Samarco explora minério de ferro por meio de uma joint venture integrada pelas empresas Vale (Brasil) e BHP Billiton (anglo-australiana). Essas empresas, as duas maiores mineradoras do mundo, descreveram o evento protagonizado pela Samarco como um “lamentável e triste acidente”.1
Por sua vez, na Argentina, a mina de ouro e prata Veladero está a mais de 4,2 mil metros do nível do mar, sobre a cordilheira dos Andes, no departamento de Iglesias, acima da localidade de Jáchal, província de San Juan. Ela pertence à empresa Barrick Gold, com sede no Canadá, companhia que está entre as dez maiores mineradoras do mundo, a primeira em extração de ouro. No dia 11 de outubro de 2015, ela deixou vazar 1 milhão de litros de água com cianeto, que atingiram o leito do Rio Potrerillos. A contaminação da água para consumo afetou o abastecimento de Jáchal e comprometeu gravemente a produção agrícola rio abaixo.
Em ambos os casos, caracterizá-los como acidente é uma forma a mais de naturalizar uma lógica que invisibiliza ou minimiza a importância dos impactos sociais e ecológicos da megamineração. Esses projetos geraram múltiplas e crescentes resistências. As estratégias empresariais incluem desde a coerção direta em alguns casos até campanhas de disseminação de fundos em instituições e comunidades, financiamento de campanhas eleitorais e pressão para que o Estado aprofunde e amplie as medidas de fomento e defesa da atividade2 já promovidas pela estratégia mineral do Banco Mundial3 nos anos 1990. Um conjunto de normas legais, reformas constitucionais que outorgam a decisão sobre os recursos naturais a estados ou províncias e a criação de competências de controle ambiental dependentes das próprias áreas que têm como incumbência promover a mineração são parte das razões que tornaram possíveis projetos como os de Veladero e da Samarco.
A própria existência desses projetos é expressão de uma correlação de forças em que resistências foram ignoradas e sub-representadas politicamente com vistas a favorecer um modelo de “desenvolvimento” mineral que subordina as demais prioridades àquela de obter divisas. Desde as reformas estruturais operadas nos marcos do grande endividamento e dos condicionantes externos gerados pelo neoliberalismo, com sua aposta dogmática no capital estrangeiro, até as urgências dos governos progressistas ante a recorrente restrição externa, a obtenção de divisas é o principal fator interno de aceitação da megamineração.
Entre os motivos externos, encontra-se a demanda real por minerais, muitos deles estratégicos para os países compradores.4 Esse é claramente o caso da exploração de ferro para abastecer a demanda da China. Ademais, a hegemonia da valorização financeira, o comportamento especulativo dos capitais e a visão dominante, que incentiva a busca de lucros extraordinários, alimentam os investimentos na megamineração.
Graças às condições extremas que garantem alta rentabilidade para os projetos construídos na América Latina, as empresas conseguem se capitalizar nas principais Bolsas de Valores. Nesse sentido, o negócio da megamineração é uma atividade não apenas de extração, mas também de valorização das empresas de mineração e seus derivados financeiros.
Considerando os elevados custos dos processos de fechamento das minas e os eventuais ônus de enfrentar a responsabilidade para com eventos como os produzidos por Veladero e Samarco, é relevante levar em conta que parte substancial do negócio da mineração provém da externalização desses danos colaterais, para os quais é funcional o quadro jurídico flexível criado para atrair investimentos. Esse negócio também recorre a formas societárias e mecanismos que permitem obter lucro durante parte do ciclo de vida do projeto, quebrar em seguida a empresa e/ou transferir ao Estado e à sociedade uma parte substancial dos custos.
Nesse sentido, nos dois casos observa-se a estratégia das empresas de minimizar suas próprias responsabilidades econômicas e tentar transferi-las para os trabalhadores, sugerindo sua suposta negligência; para a natureza, argumentando que um terremoto poderia ter provocado a quebra da barragem da Samarco e que o intenso frio no congelamento de uma válvula teria causado o evento da Veladero; ou então para o Estado, alegando o atraso em um procedimento de controle ou avaliação. Em aparente paradoxo, a flexibilidade ambiental definida como uma condição para o investimento é o argumento apresentado para tentar não tirar as consequências da falta de cuidado para com a população e o meio ambiente.
De forma análoga, a justificativa para a megamineração em nome da criação de empregos não é apenas questionável à luz dos resultados. Os vazamentos de cianeto ou as rupturas de barragens põem em discussão não só a qualidade desses empregos em relação ao risco, mas também as consequências para as ocupações em todos os demais setores afetados pelos impactos negativos de tais eventos.
Em suma, a megamineração concentra localmente os impactos negativos e desloca para o exterior grande parte dos benefícios. Por isso, ela é o oposto de uma atividade que contribui para o desenvolvimento e menos ainda para o “bem viver”.5 Não é a estratégia de marketing de “mineração responsável” ou da “responsabilidade social corporativa” que permitirá evitar ou reduzir os danos irreversíveis e as externalidades da megamineração. Além disso, a construção de um imaginário que vê no extrativismo exportador um modelo sem alternativa a não ser discutir seus modos de fazer acaba obscurecendo outras possibilidades de produção. O mesmo ocorre quando se alegam “razões de Estado” para tentar justificar o sacrifício de alguns ecossistemas e modos de vida a fim de obter divisas em busca de equilíbrios externos. Em qualquer caso, expressa-se uma hierarquia de valores que os movimentos de resistência tornam visível e colocam em questão.
Qual é o valor da água e da vida perdidas em Bento Rodrigues e em todos os ecossistemas impactados? É essa incomensurabilidade que funda a permanência e o aprofundamento dos conflitos com a megamineração. Nem reduzir a probabilidade de ocorrência, nem mitigar os danos, nem indenizar ou compensar podem resolver os conflitos. Não se trata de um tipo de capital para ser convertido em outro, porque para grande parte da sociedade a vida não é capital.
É por isso que não se pode pensar o conteúdo do conflito de modo equivalente a uma disputa em torno de dinheiro. Mesmo supondo que existisse a disponibilidade de ferramentas mais sofisticadas de cálculo e as mais aprimoradas formas de “governança”, elas não poderiam resolver os conflitos gerados pela megamineração. Porque, antes de tudo, trata-se de uma questão moral e política: como usamos os ecossistemas? Quem decide sobre sua utilização? No entanto, a megamineração resulta da imposição de uma forma de uso que atende aos interesses de corporações internacionais sobre os demais atores e usos.
Nem os Andes podem ser reduzidos ao ouro que se explora em Veladero, na Argentina, nem o planalto de Minas Gerais se reduz ao ferro a ser extraído pela Samarco. Se esses projetos existem hoje é porque se impôs uma maneira de olhar para os ecossistemas envolvidos como se eles fossem territórios antes improdutivos e quase “desabitados”, aos quais seria necessário levar investimentos para “desenvolvê-los” e torná-los “competitivos”. Trata-se, porém, de uma construção social cuidadosamente naturalizada, com muitas dimensões implícitas que são subtraídas do debate público. Não por acaso a busca da “licença social para operar” é uma tarefa empreendida somente quando a exploração é um fato consumado; no melhor dos casos, trata-se de formas de gestão dos conflitos gerados pela pressão da atividade da mineração sobre os grupos sociais cujo uso preexistia ao uso imposto. O consentimento prévio e informado das comunidades ainda não saiu do papel. Enquanto isso, as questões-chave continuam pendentes: que mineração é necessária para que projeto de sociedade? Quais seriam os projetos alternativos de produção com capacidade de gerar mais e melhores postos de trabalho com qualidade e estabilidade, e com o protagonismo das populações locais nas áreas disputadas pela mineração? Quais seriam os resultados de projetos produtivos alternativos se estes tivessem a mesma promoção que tem hoje o setor da mineração?
Resolver a restrição externa apostando em ganhar divisas ao atrair investimentos em mineração para a exportação é muito caro não só porque isso primariza nossas economias, mas também porque se entrega um valor incomensurável em troca de algumas divisas que continuarão a ser insuficientes, reproduzindo-se o círculo de entrega da natureza em troca de capital. A restrição externa deve ser tratada de forma diferente. Um repertório tradicional de ações deverá incluir ainda a substituição de importações, moderando a importação de certos bens de consumo de luxo e o aumento do valor agregado das exportações. Essas políticas exigem apoio político da maioria para superar a inércia rentista das elites e dos grupos concentrados de poder. Além disso, considerando que tanto o Brasil quanto a Argentina exportaram no interior da América Latina mais produtos industriais que para o resto do mundo, o aprofundamento do Sucre,6 ou sua evolução para uma moeda de troca latino-americana, e a adoção de políticas ativas de complementaridade ajudariam a criar postos de trabalho reais e reduzir a restrição externa. Somos obrigados a explorar novas formas de equilíbrio externo e inovar. Isso porque os impactos da megamineração não são acidentes. A voracidade das transnacionais pressiona os governos para novas desregulamentações que garantam seu acesso aos recursos naturais e aumentem a flexibilidade das normas ambientais e trabalhistas.7 E elas estão avançando, dos Andes até a Amazônia.
* Ana Maria Fernández é professora da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires e pós-doutoranda no Ippur/UFRJ.
1 “Vale diz que é ‘mera acionista’ da Samarco”, Brasil 247, 11 nov. 2015.
2 Clarissa Reis Oliveira, Quem é quem nas discussões do novo Código da Mineração, Ibase, Rio de Janeiro, 2014.
3 Banco Mundial, “A Mining Strategy for Latin America and the Caribbean” [Estratégia de mineração para América Latina e Caribe], World Bank Technical Paper n.345, Washington, 1996.
4 Monica Bruckmann, Recursos naturales y la geopolítica de la integración sudamericana, Red Unesco/Universidad de las Naciones Unidas sobre Economía Global y Desarrollo Sustentable, 2011.
5 Eugenio Zaffaroni, La Pachamama y los humanos, Colihue, Buenos Aires, 2011.
6 Carlos Zúñiga Romero (comp.), “Tratado constitutivo del sistema unificado de compensación regional de pagos (SUCRE)”, Revista de Derecho Económico, Tomo 3, Universidad Católica de Santiago de Guayaquil, 2011.
7 A discussão atual do Código da Mineração no Brasil é reveladora desses intentos. Ver Juliana Malerba, “Mais além da mineração: as pretensões do novo código mineral quanto ao acesso à água e à terra”, Brasil em 5, 12 out. 2015.
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