Friday, 7 March 2014

Michèle Sato - relato de pesquisa (fevereiro 2014)



NARRATIVA FEMININA NA ESTAÇÃO DA ÁGUA

Michèle Sato
Pantanal Mato-Grossense, fevereiro de 2014.

O telefonema, a visita, o ofício, as informações pro supermercado, uma farmacinha para as necessidades básicas e muito repelente. Foram as primeiras sensações de preparo ao lado do excitamento de toda viagem, em especial quando se vai a campo aguçar olhares, ouvidos, falas, gestos e sentidos.

No dia 21 de fevereiro, Takeshi, o antropólogo de doutorado de Tsukuba, chegou minutos antes das 7 horas, dando pistas claras de que a pontualidade é mesmo uma cultura japonesa. Quando disse isso a ele, ele me olhou afirmando que eu seria também pontual. Não era uma pergunta, mas uma afirmação. E ele mesmo adicionou o comentário: “coisa da cultura japonesa, de respeitar pessoas e o seu tempo”. Sempre achei que era a vida paulistana, adensada pelos 5 anos na Inglaterra. Mas naquele momento, a simples explicação japonesa me bastava.

Mas o primeiro a chegar foi o Péricles Bambam, amigo do Luigi que me chama de “submãe” que veio no dia anterior, excitado com outra viagem ao Pantanal. E com a chegada de Régis e Maiumy no dia seguinte, eu começava a ter a sensação de que os mirins já não eram tão mirins, pelo menos na altura, eles já não eram os menores. E assim saímos de Boa Esperança, no encontro marcado das aventuras cartográficas das Esperanças do Mundo (Figura 1).

Figura 1: do Boa Esperança à Esperança do Mundo
(Michèle Sato)

Herman e Júlio foram super hábeis no trato dos adolescentes, que os ad-miravam com os olhos cheios de orgulho. Não só na hora de ouvir o Herman tocar violão, mas também nas músicas de rock que chegavam pelos celulares, que tomavam vidas (quase) próprias, me dando pistas que o aparelho era mais do que comunicação oral. Fotografias, anotações, músicas, jogos, internet e as demoradas mensagens escritas que o Herman adora enviar pelo celular... (ai).

Fui conversando com a Ros e Di mais longamente no carro, que animadamente narravam suas vidas, desejos, belezas e expectativas de quem adora estudar. Giseli, a grande companhia grande, conduzia os adolescentes com a prudência de sempre, enquanto os meninos recebiam a presença viva da Lili, que mostrava alegria em viajar com a gente ao Pantanal. Giselly só se uniu com a gente no dia seguinte, quando íamos de barco para Joselândia.

Tive encantamento de passarinho quando entrei nos chalés da Base Avançada de Pesquisa da UFMT (Figura 2). Que lugar maravilhoso! Aquela sensação de se dormir na cama que está logo acima da água é indescritível. Meus sonhos encontraram Bachelard, misturados com os desejos de eternizar aquele momento de contato tão íntimo e intenso com a água. Os reflexos translúcidos das árvores me davam a impressão de que elas viviam também na água, esparramando suas virtudes do chão da terra ao umedecimento para além dos sonhos e orvalhos de Gaston Bachelard:

Assim a água, por seus reflexos, duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador, envolvendo-o numa nova experiência onírica (...) O verdadeiro olho da terra é a água. Nos nossos olhos, é a água que sonha. Na natureza é novamente a água que vê, é novamente a água que sonha (BACHELARD, 2002, p. 33 e 51).

Figura 2: Base avançada de pesquisa da UFMT - Baía das Pedras
(Michèle Sato)

Não restava a menor dúvida de que “há mais olhos na água do que cabelo na terra”. Então seria o dito popular de Joselândia tão verdadeiro como a filosofia fenomenológica de Sorbonne? A frase do Manoel de Barros veio imediatamente na memória:

Desde o começo dos tempos, água e chão se amam. Eles se entram amorosamente e se fecundam. Nascem formas rudimentares de seres e de plantas, filhos dessa fecundação. As águas são a epifania da natureza (BARROS, 2010, p. 18 – grifo meu).

No devaneio da imaginação, eu estava ali naquele lugar para estudar os mitos e, de fato, os santuários católicos que cada casa de Joselândia desvelavam eram também a epifania que ligava a água com a mitologia. Águas são femininas - são festejos, canoas, pureza, origem e simultaneamente morte. Como traduzi-las? Era o pensamento que me afligia de tempos em tempos, querendo trocar as lentes do meu óculos para além de olhar, conseguir também imaginar, perceber, sonhar e delirar a poesia que circunda a água e a mulher.

Estes pensamentos povoaram minha mente na expedição de barco que Manoel, o barqueiro, nos ensinava com destreza. Contava sobre os bichos, plantas, águas, problemas e seres da água – um negrinho da água que surgia aos olhos e imaginação dos moradores do Pantanal. Perguntei se ele era malvado, ou se protegia as águas, mas Manoel disse apenas que ele parecia desfrutar das águas, sem a menor ponderação utilitarista da minha pergunta... Mas ele não deve ter nem notado minha cara de sem-graça na pergunta que evidenciava meu positivismo.

Manoel apontou dois grandes problemas ambientais: um “driving force” chamado hidrelétrica de Manso, que deixou aquela região da Reserva Particular do Patrimônio da Natureza (RPPN) permanentemente alagada, sem a seca. O Sesc tem registro diário há vários anos, e comparando os níveis da água no mesmo período, em fases distintas – antes e depois de manso – o resultado é impressionante, pois o nível da água dobrou no local. Pegamos a fotocópia destes registros, e a Giseli fará a análise climática por meio deles. Com isso, as macrófitas encontram o habitat ideal de proliferação e fixação: aglomeram-se pelas margens e formam verdadeira ilhas que vão estrangulando as passagens da água. Visitando estes locais de barco, dificilmente se acredita que tais ilhas foram formadas pela proliferação das macrófitas (figura 3).

Figura 3: expedição de barco (Sesc Pantanal)
(Luigi Sousa)

A chegada em Joselândia me mostrava algo inédito: as cercas ao rdor de algumas casas, inexistentes no ano passado. Seria efeito do legado da “propriedade particular” que o Pantanal, reserva da Biosfera, imprimia na região, modificando os hábitos daquela gente, na implacável aparição do capital? Confrontava a paisagem, o legado Chico Mendes, que aniquilava a noção de propriedade, na criação das reservas extrativistas. O trabalhador poderia se beneficiar pela natureza sem ser dono dela...

Os cursos e oficinas na escola Maria Moura foram maravilhosos! Encantou-me a didática humorada do Júlio, no desfile de diversas ecotécnicas como exemplos dos Projetos Ambientais Escolares Comunitários (PAEC) que possibilitariam a escola e a comunidade enfrentarem a mudança do clima. Queria ter tido a presença da Tere (WWF), na sua fantástica abordagem sobre a pegada ecológica! A junção destes projetos, sonhos e discursos sempre são caldos vigorosos que nos deixam animados.

Também me surpreendi com a performance dos adolescentes, que realizavam suas entrevistas com os estudantes da escola Maria Moura. Articulados, bem informados e vivendo plenamente o mundo das ciências, numa oportunidade singular que talvez só consigam dar valor quando a maturidade chegar. Eles entrevistaram 27 estudantes (figura 4) que percebem que Joselândia está mais quente e que a falta de água pode trazer problemas graves, contudo, não parecem tão dispostos a mudar o hábito alimentar e diminuir o consumo de carne vermelha. Mas estabelecem relações com o tipo de transporte, o desmatamento ou a cultura ameaçada na intrínseca conexão ambiental das vidas humanas e não-humanas ali pulsantes. Penso que o processo formativo é essencial, que consiga realmente sensibilizar a escola para abrir diálogos com a comunidade e promover estes “articulamentos” na construção dos PAEC.

Figura 4: jovens pesquisadores entrevistando jovens de Joselândia
(Michèle Sato)

As noites foram agradáveis em Joselândia, entre poesias, desenhos, “com-versa” e amizade, o tempo de cantar, poetar, jogar e rir. Este ano creio que a diversão foi uma característica marcante, talvez porque os mirins realmente não seja mais tão mirins, e suas brincadeiras tenham mais ressonâncias nos nossos mundos, repercutindo em gargalhadas prazerosas de quem aprende a construir “confetos” (conceitos com afetos).

O retorno para casa encontrou novas águas... entre as baías, corixos e rios, a chuva nos brindava com a sensação da aprendizagem constante – coisas marcantes que renascem na alma, como uma flor de lótus que enamora perfumando as noites pantaneiras (Figura 5). As águas despertam o nascer e o renascer cíclico de quem ousa sonhar por um mundo melhor para todos: a pesquisa no GPEA são quimeras de amor em lutas inconclusivas.

A água é uma matéria que vemos nascer e crescer em toda parte. A fonte é um nascimento irresistível, um nascimento continuo. Imagens tão grandiosas marcam para sempre o inconsciente que as ama. Suscitam devaneios sem fim (BACHELARD, 2002, p. 15).

Figura 5: Dama da noite
(Michèle Sato)

REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
BARROS, Manoel. Menino do mato. São Paulo: Leya, 2010.

AGRADECIMENTOS
Aos Projetos e parceiros: ClimBAP, INAU, WWF, SESC, SEDUC, ELPC e “identidades e emancipação das mulheres do campo”. Aos guardas-parque do Sesc, dona Doca da base avançada, moradores, professores e estudantes de Joselândia. E mais carinhosa e essencialmente, aos pesquisadores caminhantes do GPEA, cartógrafos de um mundo melhor.

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