NARRATIVA FEMININA NA ESTAÇÃO DA ÁGUA
Michèle Sato
Pantanal
Mato-Grossense, fevereiro de 2014.
O telefonema, a visita, o ofício, as informações pro
supermercado, uma farmacinha para as necessidades básicas e muito repelente.
Foram as primeiras sensações de preparo ao lado do excitamento de toda viagem,
em especial quando se vai a campo aguçar olhares, ouvidos, falas, gestos e
sentidos.
No dia 21 de fevereiro, Takeshi, o antropólogo de doutorado de Tsukuba, chegou
minutos antes das 7 horas, dando pistas claras de que a pontualidade é mesmo
uma cultura japonesa. Quando disse isso a ele, ele me olhou afirmando que eu
seria também pontual. Não era uma pergunta, mas uma afirmação. E ele mesmo
adicionou o comentário: “coisa da cultura japonesa, de respeitar pessoas e o
seu tempo”. Sempre achei que era a vida paulistana, adensada pelos 5 anos na Inglaterra.
Mas naquele momento, a simples explicação japonesa me bastava.
Mas o primeiro a chegar foi o Péricles Bambam, amigo do Luigi
que me chama de “submãe” que veio no dia anterior, excitado com outra viagem ao
Pantanal. E com a chegada de Régis e Maiumy no dia seguinte, eu começava a ter a
sensação de que os mirins já não eram tão mirins, pelo menos na altura, eles já
não eram os menores. E assim saímos de Boa Esperança, no encontro marcado das
aventuras cartográficas das Esperanças do Mundo (Figura 1).
Figura 1: do Boa Esperança à Esperança do Mundo
(Michèle Sato)
Herman e Júlio foram super hábeis no trato dos
adolescentes, que os ad-miravam com os olhos cheios de orgulho. Não só na hora
de ouvir o Herman tocar violão, mas também nas músicas de rock que chegavam
pelos celulares, que tomavam vidas (quase) próprias, me dando pistas que o
aparelho era mais do que comunicação oral. Fotografias, anotações, músicas,
jogos, internet e as demoradas mensagens escritas que o Herman adora enviar
pelo celular... (ai).
Fui conversando com a Ros e Di mais longamente no carro, que animadamente
narravam suas vidas, desejos, belezas e expectativas de quem adora estudar. Giseli,
a grande companhia grande, conduzia os adolescentes com a prudência de sempre,
enquanto os meninos recebiam a presença viva da Lili, que mostrava alegria em viajar
com a gente ao Pantanal. Giselly só se uniu com a gente no dia seguinte,
quando íamos de barco para Joselândia.
Assim a água, por
seus reflexos, duplica o
mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador, envolvendo-o numa nova
experiência onírica (...) O verdadeiro olho da terra é a água. Nos nossos
olhos, é a água que sonha. Na natureza é novamente a água que vê, é novamente a
água que sonha (BACHELARD, 2002, p. 33 e 51).
Figura 2: Base avançada de pesquisa da UFMT - Baía das Pedras
(Michèle Sato)
Não restava a menor dúvida de que “há mais olhos na água do
que cabelo na terra”. Então seria o dito popular de Joselândia tão verdadeiro
como a filosofia fenomenológica de Sorbonne? A frase do Manoel de Barros veio imediatamente
na memória:
Desde o começo dos tempos, água e chão
se amam. Eles se entram amorosamente e se fecundam. Nascem formas rudimentares
de seres e de plantas, filhos dessa fecundação. As águas são a epifania da
natureza (BARROS, 2010, p. 18 – grifo meu).
Estes pensamentos povoaram minha mente na expedição de barco que Manoel, o barqueiro, nos ensinava com destreza. Contava sobre os bichos, plantas, águas, problemas e seres da água – um negrinho da água que surgia aos olhos e imaginação dos moradores do Pantanal. Perguntei se ele era malvado, ou se protegia as águas, mas Manoel disse apenas que ele parecia desfrutar das águas, sem a menor ponderação utilitarista da minha pergunta... Mas ele não deve ter nem notado minha cara de sem-graça na pergunta que evidenciava meu positivismo.
Manoel apontou dois grandes problemas ambientais: um “driving force” chamado hidrelétrica de Manso, que deixou aquela região da Reserva Particular do Patrimônio da Natureza (RPPN) permanentemente alagada, sem a seca. O Sesc tem registro diário há vários anos, e comparando os níveis da água no mesmo período, em fases distintas – antes e depois de manso – o resultado é impressionante, pois o nível da água dobrou no local. Pegamos a fotocópia destes registros, e a Giseli fará a análise climática por meio deles. Com isso, as macrófitas encontram o habitat ideal de proliferação e fixação: aglomeram-se pelas margens e formam verdadeira ilhas que vão estrangulando as passagens da água. Visitando estes locais de barco, dificilmente se acredita que tais ilhas foram formadas pela proliferação das macrófitas (figura 3).
Figura 3: expedição de barco (Sesc Pantanal)
(Luigi Sousa)
A chegada em Joselândia me mostrava algo inédito: as cercas ao rdor de algumas casas, inexistentes no ano passado. Seria efeito do legado da “propriedade particular” que o Pantanal, reserva da Biosfera, imprimia na região, modificando os hábitos daquela gente, na implacável aparição do capital? Confrontava a paisagem, o legado Chico Mendes, que aniquilava a noção de propriedade, na criação das reservas extrativistas. O trabalhador poderia se beneficiar pela natureza sem ser dono dela...
Os cursos e oficinas na escola Maria Moura foram maravilhosos! Encantou-me a didática humorada do Júlio, no desfile de diversas ecotécnicas como exemplos dos Projetos Ambientais Escolares Comunitários (PAEC) que possibilitariam a escola e a comunidade enfrentarem a mudança do clima. Queria ter tido a presença da Tere (WWF), na sua fantástica abordagem sobre a pegada ecológica! A junção destes projetos, sonhos e discursos sempre são caldos vigorosos que nos deixam animados.
Também me surpreendi com a performance dos adolescentes, que realizavam suas entrevistas com os estudantes da escola Maria Moura. Articulados, bem informados e vivendo plenamente o mundo das ciências, numa oportunidade singular que talvez só consigam dar valor quando a maturidade chegar. Eles entrevistaram 27 estudantes (figura 4) que percebem que Joselândia está mais quente e que a falta de água pode trazer problemas graves, contudo, não parecem tão dispostos a mudar o hábito alimentar e diminuir o consumo de carne vermelha. Mas estabelecem relações com o tipo de transporte, o desmatamento ou a cultura ameaçada na intrínseca conexão ambiental das vidas humanas e não-humanas ali pulsantes. Penso que o processo formativo é essencial, que consiga realmente sensibilizar a escola para abrir diálogos com a comunidade e promover estes “articulamentos” na construção dos PAEC.
Figura 4: jovens pesquisadores entrevistando jovens de Joselândia
(Michèle Sato)
O retorno para casa encontrou novas águas... entre as baías, corixos e rios, a chuva nos brindava com a sensação da aprendizagem constante – coisas marcantes que renascem na alma, como uma flor de lótus que enamora perfumando as noites pantaneiras (Figura 5). As águas despertam o nascer e o renascer cíclico de quem ousa sonhar por um mundo melhor para todos: a pesquisa no GPEA são quimeras de amor em lutas inconclusivas.
A água é uma matéria
que vemos nascer e crescer em toda parte. A fonte é um nascimento irresistível,
um nascimento continuo. Imagens tão grandiosas marcam para sempre o
inconsciente que as ama. Suscitam devaneios sem fim (BACHELARD, 2002, p. 15).
Figura 5: Dama da noite
(Michèle Sato)
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
BARROS,
Manoel. Menino do mato. São Paulo: Leya,
2010.
AGRADECIMENTOS
Aos Projetos e parceiros:
ClimBAP, INAU, WWF, SESC, SEDUC, ELPC e “identidades e emancipação das mulheres
do campo”. Aos guardas-parque do Sesc, dona Doca da base avançada, moradores,
professores e estudantes de Joselândia. E mais carinhosa e essencialmente, aos
pesquisadores caminhantes do GPEA, cartógrafos de um mundo melhor.
*
No comments:
Post a Comment