Wednesday 1 May 2013

na boca do povo

revista poranduba
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Ribeirinho. Waldemar Magalhães, de 68 anos, sempre pede ajuda ao Neguinho do Pastoreio
Ribeirinhos da Ilha do Mato Grande relatam visões de figuras míticas, que passam por gerações



Um minhocão que desbarranca a beira do rio; um neguinho peralta que trança as crinas dos cavalos; um bicho baixinho e peludo que rouba crianças que não são batizadas. Dentre os vários privilégios de visitar o Pantanal e entender o modo de vida daqueles que lá vivem há décadas, está a possibilidade de conhecer histórias deslumbrantes sobre as figuras míticas da região. Ouvir ribeirinhos contando causos fantásticos envolvendo essas figuras e perceber no olhar deles o quanto acreditam naquilo que relatam é uma experiência gratificante.
MINHOCÃO
Uma das lendas pantaneiras mais famosas – se não a mais – é o “minhocão”. Não há um morador do local que nunca tenha ouvido falar e mais da metade afirma com convicção que já viu a figura pelas águas do Rio Paraguai. Segundo os ribeirinhos, é um bicho com cara e pele de porco e formato de minhoca grande, como uma canoa de um pau só. Ele nada rapidamente derrubando tudo o que estiver às margens do rio, seja casa, gente, árvore ou apenas terra. “Tem um conhecido meu que foge do minhocão há mais de 20 anos. Tudo o que ele constrói na beira do rio o minhocão derruba”, conta a ribeirinha Nilza Mariana Arruda, de 50 anos, nascida e criada na Ilha do Mato Grande (Serra do Amolar).
NEGUINHO DO PASTOREIO
Se o minhocão tem fama de destruidor, o “Neguinho do Pastoreio” (que os ribeirinhos pronunciam “pastorejo”), apesar das peraltices, é considerado bom moço. O ribeirinho Waldemar Magalhães, de 68 anos, conta que a figura é reconhecida como “dona dos animais”. “Quando uma rês desaparece do rebanho e a gente procura, procura e não acha, é só pedir para o Neguinho do Pastoreio que ele traz ela de volta”.
Mas ele cobra pelo serviço: quando o pedido é feito, é preciso deixar um pouco de fumo ou um copo de pinga em cima do curral. Segundo o ribeirinho Waldemar, não tem erro: no mais tardar três dias depois, lá está a rês de volta. “Aí a gente acende uma vela para o Neguinho no mesmo lugar, em cima do curral”. A confiança na figura é tão inabalável, que ninguém mais “perde tempo” procurando bicho perdido no mato. “Eu não tenho mais a preocupação de sair procurando bezerro morro acima. Eu só peço pro Neguinho e ele traz de volta”, conta Waldemar, garantindo que perdeu as contas de quantas cabeças de gado a figura já trouxe de volta para o pasto.
Mas ele também apronta das suas; por ser o “dono dos animais”, ele se acha no direito de brincar com eles. “Ele é negro e baixinho, parece uma criança. Sempre escuto o assovio dele quando deixo os animais soltos e, no dia seguinte, encontro os cavalos com as crinas trançadas”, conta Olinfa Rodrigues, de 39 anos, relatando o episódio em que o filho, então com 12 anos, deu de cara com a figura. “Ele foi colocar gravetos na fogueira que acendemos para espantar os mosquitos e viu o Neguinho, quieto, parado, entre dois burrinhos. Quando ele viu meu filho, saiu em disparada e sumiu no mato”.
CURUPIRA
Por falar em crianças, batizálas logo ao nascer, em casa ou na igreja, é uma ação importantíssima para os ribeirinhos pantaneiros. Do contrário, o “curupira” pode roubá-las. A figura é pequena e peluda e carrega as crianças para o mato, deixando os pais desesperados. Olinfa acompanhou um desses “sequestros” quando ainda era criança. “Eu morava no Palmital, do outro lado da serra, e um menino de oito anos, que não era batizado, sumiu. Os pais deixavam ele muito sozinho, sabe?”. Uma noite os pais chegaram em casa e não encontraram o filho. No dia seguinte, depois de horas de buscas, encontraram a criança, ilesa, no meio de um graveteiro, um mato cheio de espinhos. “Ninguém entendeu como o menino foi parar lá no meio sem se machucar”, conta Olinfa, que estava junto quando encontraram a criança.
Contraponto
A ciência pode discordar da existência do “minhocão”, mas reconhece os episódios que levaram a população ribeirinha a acreditar na existência da figura. “O Rio Paraguai, em virtude de seu curso natural, vai solapando as margens do rio, ou seja, vai derrubando as suas margens. Esses terrenos erodidos se caracterizarem como verdadeiras armadilhas para a população, principalmente para as crianças, criando inclusive o risco de os ribeirinhos perderem suas moradias”, explica o professor e pesquisador do curso de Geografia da UFMS, Aguinaldo Silva. De acordo com o professor, é importantíssimo preservar este tipo de lenda dentro das comunidades, pois são elas que verificam de perto e têm a possibilidade de relatar os acontecimentos. “Nunca deixei transparecer dúvidas em relação a qualquer história contada por eles. Nas minhas pesquisas de campo, estimulo o relato dos moradores da região e fico feliz em conhecer as explicações deles para os fatos”.
Filha cresceu ouvindo relatos do pai
A professora e pesquisadora Marivaine da Silva Brasil, bióloga doutora em fitotecnia, cresceu ouvindo o pai, comandante experiente de navios, contar que via cenas inexplicáveis no Rio Paraguai, que ele atribuía ao minhocão. “Não tenho como duvidar da palavra do meu pai. Cresci ouvindo ele, que era da marinha mercante, contar que tinha visto o minhocão no Rio Paraguai. Por que ele inventaria isso?”
Publicado em 23/02/2012
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Autora: Bruna Lucianer

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