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“Vejo uma viagem em seu futuro”
Publicado por admin - Thursday, 23 May 2013
ANDRÉ FRANCISCO PILON
Há algumas décadas, pessoas sem grandes recursos, ao consultar cartomantes, ouviam, com esperança e alegria, entre outras notícias alvissareiras (núpcias ou, quem sabe, a sorte grande), a previsão de uma viagem futura, a quebrar a rotina diária, que, garantido o pão nosso de cada dia, não apresentava grandes novidades e poderia ser bastante tranquila, a salvo das constantes ameaças de hoje, como violência, acidentes de trânsito, estresse etc.
O dinheiro era para uma sobrevivência digna, que dispensava os chamarizes traiçoeiros dos símbolos de prestígio, vestuário sofisticado, carros de luxo e tantas outras coisas que a publicidade despeja na cabeça das pessoas para que não se julguem párias de uma sociedade voltada para o consumo. Naquelas décadas, a identidade pessoal poderia ser construída por traços de caráter, realização no trabalho, dedicação aos estudos, às artes, aos esportes, pelo serviço ao próximo.
Qual a mensagem que o sistema atual transmite aos jovens, através da indústria de entretenimento, das competições “esportivas” e da própria escola, voltada para as “habilidades de mercado”? O próprio sistema “educacional” estabelecido utilizou, recentemente, como critério de avaliação, apenas Português e Matemática, para afirmar que não havia diferenças de rendimento entre escolas de tempo integral e parcial, ignorando outros aspectos cruciais para a formação integral da pessoa humana.
Para as Nações Unidas (Unece), a educação é tanto uma esperança quanto um perigo: ela pode questionar, inovar e criar, desenvolver autoconfiança e capacidade de organização, reconhecer as poderosas forças que impulsionam os atuais estilos de vida; mas também pode encorajar a aceitação conformada do status quo como algo normal, estiolando a curiosidade, a inovação e fazendo as pessoas esperarem passivamente pelos outros para agir, quando a ação deve ser coletiva.
Graças aos aportes milionários de recursos públicos e privados, a tecnologia, como panaceia para todos os males, reina hoje soberana, apesar da má governança, das políticas públicas orientadas por poderosos lobbies, da administração precária dos programas de saúde, educação, segurança etc. Para as diarreias infantis, seria prioritário criar cabras transgênicas ou saneamento básico, mudanças políticas, socioeconômicas, culturais e institucionais para que as mães amamentem os filhos?
Um dos principais erros conceituais “é querer fazer ciência para solucionar problemas pontuais e localizados, sem tratar o fenômeno geral, que justamente tem a capacidade de resolver problemas pontuais” (Volpato). É preciso caminhar da noção de violência urbana à compreensão da violência dos processos de urbanização, baseada nos interesses imobiliários, na concentração dos empregos em locais determinados pelo poder econômico, em prejuízo de áreas onde a maioria da população reside.
Publicidade tendenciosa de “estilos de vida”, manobras de mercado, influência dos mass media, ausência de espaços culturais e de convivência, centros urbanos degradados e violentos, áreas superedificadas, ausência de “verde”, massificação, ruído, estresse e insegurança promovem os shopping centers como espaço público de convivência daqueles que não têm acesso a clubes esportivos e espetáculos musicais e teatrais não massificados (cujo acesso também carece de segurança).
A ideologia do “cada um por si” destrói a solidariedade humana e a consequência é que todos – agora juntos – vão para o mesmo buraco. Face ao conúbio entre corporações de negócios e instituições a elas favoráveis, as práticas verdes e as inovações ecológicas são travadas e sofrem resistência na própria raiz do sistema. A liberdade de escolha é automaticamente definida, limitada e prescrita por tecnologias incorporadas por grandes corporações e se autoperpetuam.
Por que apenas aqueles que ganham com obras são beneficiados, enquanto as populações vivem em cidades caóticas, com um custo de vida cada vez mais elevado, com empregos temporários, que não oferecem garantia de estabilidade? Por que os adolescentes que nem trabalham nem estudam, mas ainda não delinquiram, não recebem atenção? Viagens não são mais vaticinadas, pois estão ao alcance de todos, mas as “viagens” de hoje em dia parecem não estar conduzindo a bom porto.
Entender um problema é compreender as relações entre as coisas e o contexto em que se dão essas relações. Pessoas com valores diferentes interpretam a “mesma” evidência de formas diferentes (Kahan); a informação tem um papel menor face às águas barrentas das emoções, dos valores e da ética (Etzioni; Dietz). Caiu por terra o ideal iluminista de que o pecado, os vícios e a maldade resultariam apenas da ignorância e que, uma vez “informadas”, as pessoas optariam pelo bem comum.
Todos os eventos (as viagens espaciais, a disputa de uma partida de futebol, a construção de pirâmides ou catedrais) dependem de configurações dinâmicas, que entrelaçam pessoas, grupos, sistemas social, político, econômico, artefatos e tecnologias, ambientes naturais e construídos, envolvendo quatro dimensões de mundo, que se conjugam para produzir os eventos e manter ou alterar o status quo, sofrendo as consequências, maléficas ou benéficas (dimensões íntima, interativa, social e biofísica).
A questão assume proporções globais: desde o final da década de 1980, os países do “campo socialista” entraram num período de mudanças sociais e econômicas profundas, que resultaram no surgimento de novos problemas. Um dos mais importantes é o da pobreza: o desemprego tornou-se um fato sólido, a diferenciação de rendimentos e salários aumentou, a insegurança também, devido à criminalidade crescente, não apenas nas ruas, mas também na esfera pública e nos negócios privados.
Para gerar novas formas de entender as coisas e estar-no-mundo, capacidade crítica e operacional para efetuar mudanças, é necessário trabalhar com os nichos socioculturais de ensino-aprendizagem, núcleos que se diferenciem do sistema, com semiosfera própria, constituída por novos paradigmas e significados, envolvendo novos conceitos de crescimento, riqueza, trabalho, poder e liberdade, cuja disseminação é imperativa para fazer face aos perigos do mundo atual.
O dinheiro era para uma sobrevivência digna, que dispensava os chamarizes traiçoeiros dos símbolos de prestígio, vestuário sofisticado, carros de luxo e tantas outras coisas que a publicidade despeja na cabeça das pessoas para que não se julguem párias de uma sociedade voltada para o consumo. Naquelas décadas, a identidade pessoal poderia ser construída por traços de caráter, realização no trabalho, dedicação aos estudos, às artes, aos esportes, pelo serviço ao próximo.
Qual a mensagem que o sistema atual transmite aos jovens, através da indústria de entretenimento, das competições “esportivas” e da própria escola, voltada para as “habilidades de mercado”? O próprio sistema “educacional” estabelecido utilizou, recentemente, como critério de avaliação, apenas Português e Matemática, para afirmar que não havia diferenças de rendimento entre escolas de tempo integral e parcial, ignorando outros aspectos cruciais para a formação integral da pessoa humana.
Para as Nações Unidas (Unece), a educação é tanto uma esperança quanto um perigo: ela pode questionar, inovar e criar, desenvolver autoconfiança e capacidade de organização, reconhecer as poderosas forças que impulsionam os atuais estilos de vida; mas também pode encorajar a aceitação conformada do status quo como algo normal, estiolando a curiosidade, a inovação e fazendo as pessoas esperarem passivamente pelos outros para agir, quando a ação deve ser coletiva.
Graças aos aportes milionários de recursos públicos e privados, a tecnologia, como panaceia para todos os males, reina hoje soberana, apesar da má governança, das políticas públicas orientadas por poderosos lobbies, da administração precária dos programas de saúde, educação, segurança etc. Para as diarreias infantis, seria prioritário criar cabras transgênicas ou saneamento básico, mudanças políticas, socioeconômicas, culturais e institucionais para que as mães amamentem os filhos?
Um dos principais erros conceituais “é querer fazer ciência para solucionar problemas pontuais e localizados, sem tratar o fenômeno geral, que justamente tem a capacidade de resolver problemas pontuais” (Volpato). É preciso caminhar da noção de violência urbana à compreensão da violência dos processos de urbanização, baseada nos interesses imobiliários, na concentração dos empregos em locais determinados pelo poder econômico, em prejuízo de áreas onde a maioria da população reside.
Publicidade tendenciosa de “estilos de vida”, manobras de mercado, influência dos mass media, ausência de espaços culturais e de convivência, centros urbanos degradados e violentos, áreas superedificadas, ausência de “verde”, massificação, ruído, estresse e insegurança promovem os shopping centers como espaço público de convivência daqueles que não têm acesso a clubes esportivos e espetáculos musicais e teatrais não massificados (cujo acesso também carece de segurança).
A ideologia do “cada um por si” destrói a solidariedade humana e a consequência é que todos – agora juntos – vão para o mesmo buraco. Face ao conúbio entre corporações de negócios e instituições a elas favoráveis, as práticas verdes e as inovações ecológicas são travadas e sofrem resistência na própria raiz do sistema. A liberdade de escolha é automaticamente definida, limitada e prescrita por tecnologias incorporadas por grandes corporações e se autoperpetuam.
Por que apenas aqueles que ganham com obras são beneficiados, enquanto as populações vivem em cidades caóticas, com um custo de vida cada vez mais elevado, com empregos temporários, que não oferecem garantia de estabilidade? Por que os adolescentes que nem trabalham nem estudam, mas ainda não delinquiram, não recebem atenção? Viagens não são mais vaticinadas, pois estão ao alcance de todos, mas as “viagens” de hoje em dia parecem não estar conduzindo a bom porto.
Entender um problema é compreender as relações entre as coisas e o contexto em que se dão essas relações. Pessoas com valores diferentes interpretam a “mesma” evidência de formas diferentes (Kahan); a informação tem um papel menor face às águas barrentas das emoções, dos valores e da ética (Etzioni; Dietz). Caiu por terra o ideal iluminista de que o pecado, os vícios e a maldade resultariam apenas da ignorância e que, uma vez “informadas”, as pessoas optariam pelo bem comum.
Todos os eventos (as viagens espaciais, a disputa de uma partida de futebol, a construção de pirâmides ou catedrais) dependem de configurações dinâmicas, que entrelaçam pessoas, grupos, sistemas social, político, econômico, artefatos e tecnologias, ambientes naturais e construídos, envolvendo quatro dimensões de mundo, que se conjugam para produzir os eventos e manter ou alterar o status quo, sofrendo as consequências, maléficas ou benéficas (dimensões íntima, interativa, social e biofísica).
A questão assume proporções globais: desde o final da década de 1980, os países do “campo socialista” entraram num período de mudanças sociais e econômicas profundas, que resultaram no surgimento de novos problemas. Um dos mais importantes é o da pobreza: o desemprego tornou-se um fato sólido, a diferenciação de rendimentos e salários aumentou, a insegurança também, devido à criminalidade crescente, não apenas nas ruas, mas também na esfera pública e nos negócios privados.
Para gerar novas formas de entender as coisas e estar-no-mundo, capacidade crítica e operacional para efetuar mudanças, é necessário trabalhar com os nichos socioculturais de ensino-aprendizagem, núcleos que se diferenciem do sistema, com semiosfera própria, constituída por novos paradigmas e significados, envolvendo novos conceitos de crescimento, riqueza, trabalho, poder e liberdade, cuja disseminação é imperativa para fazer face aos perigos do mundo atual.
André Francisco Pilon é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP
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